Controvérsias Jurídicas

Revogar a anistia é uma afronta à Constituição

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

3 de junho de 2021, 8h01

A Constituição Federal consagrou o sistema acusatório como pedra angular do Estado democrático de Direito. A separação de funções entre quem investiga, acusa e julga, os princípios do juiz e promotor natural, proibição de provas ilícitas, vedação de juízos e tribunais de exceção, publicidade do processo, fundamentação das decisões judiciais, inércia e imparcialidade do juiz, são alguns dos que regem o processo penal constitucional. Do mesmo modo, reserva legal, anterioridade e prescrição das infrações penais (ressalvado o racismo e as ações de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado democrático) são fundamentos do direito penal constitucional.

Não se admite elaboração de leis por encomenda, especificamente para alcançar fatos já ocorridos. Se a lei deve ser anterior, obviamente não pode ser posterior, do que decorre sua impossibilidade de retroagir para prejudicar o agente. Prevista no artigo 5º, XL, da Carta Magna, a irretroatividade da lei penal in pejus proíbe a edição de regras que prejudiquem situações jurídicas já consolidadas.

A violação deste princípio constitucional sensível sob qualquer pretexto, injeta o vírus da anarquia no sistema normativo e abre as portas para o arbítrio. A interpretação constitucional exige parâmetros mínimos de estabilidade, sendo inadmissíveis critérios subjetivos abertos e conceitos ideológicos ditados pela conveniência do momento, por mais nobre que seja a justificativa para a manobra hermenêutica.

A superação do dogma positivista do século 19, com seu apego à literalidade estrita, permitiu ao Poder Judiciário a interpretação principiológica do ordenamento jurídico, sem as amarras da interpretação gramatical. O brocardo de que o juiz é um escravo da lei foi apropriado pelo direito penal nazista para justificar atrocidades. Não é isso que se quer. No entanto, permitir um ambiente onde cada um cria seu direito próprio, a partir de suas vontades, pode levar ao mesmo caminho.

O princípio de que a lei penal não pode ser elaborada após o fato para agravá-lo é tão relevante que não pode ser suprimido ou restringido nem mesmo emenda constitucional, erigindo-se à categoria de núcleo constitucional intangível (CF, artigo 60, § 4º, IV). À vista disto, não há como desconsiderá-lo ou superá-lo, qualquer que seja o motivo.

A anistia é uma lei penal voltada para o passado, objetivando promover o esquecimento jurídico de um crime já cometido. Uma vez aprovada, provoca a extinção da punibilidade do agente, nos termos do art. 107, II, do CP. Sua revogação provocaria o reaparecimento do delito já apagado e reacenderia seus efeitos penais, numa autêntica repristinação inconstitucional da infração anistiada. “A anistia, já se disse, é o esquecimento jurídico que tem por objeto fatos (não pessoas) definidos como crimes, de regra, políticos, militares ou eleitorais, excluindo-se, normalmente, os crimes comuns”[1].

Em 20 de maio de 2021, o STJ decidiu pela recepção da Lei de Anistia pela Constituição Federal. O tema foi abordado no AgResp nº 1648236-SP, de relatoria do min. Reynaldo Soares da Fonseca, no julgamento de recurso contra a rejeição de denúncia ofertada pelo MPF, por crime praticado por torturadores durante a ditadura em 17/01/1976. O Parquet argumentou tratar-se de crime contra a humanidade e, portanto, imprescritível de acordo com o Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos) e o Estatuto de Roma. A denúncia foi rejeitada com base nos artigos 395, II e III, CPP; art. 1º, § 1º da Lei nº 6.683/79 (Lei de Anistia); artigo 4º, § 1º da E.C nº 26/85 e art. 10, § 3º da Lei nº 9.882/99.

Em Recurso Especial, o MPF sustentou a incompatibilidade da Lei da Anistia (Lei nº 6.683/79) com o Texto Constitucional, posicionamento que não é inovador, uma vez que o parecer da OAB em 1979, relatado por Sepúlveda Pertence, já propunha a exclusão do § 2º da Lei nº 6.683/79: “Ora, a amplitude com a qual se definiu como conexos aos crimes políticos, os de qualquer natureza a eles relacionados, tem o único sentido de prodigalizar anistia aos homicídios, violências e arbitrariedades policiais de toda a sorte, perpetrados nos desvãos da repressão política”.[2]

Ao enfrentar o tema, STJ afirmou que não é possível utilizar tipo penal descrito em tratado internacional para tipificar condutas internamente, sob pena de violação do princípio da legalidade (CF, artigo 5º, XXXIX) e da irretroatividade da lei penal gravosa ao réu (CF, artigo 5º, XL). Quanto à imprescritibilidade, decidiu também que a punição de crimes cometidos há mais de 45 anos romperia com princípios constitucionais fundamentais[3].

As razões do não recebimento da denúncia de crimes cometidos na ditadura e a recepção da Lei de Anistia pela CF/88, já tinham sido abordadas no STF pelo então min. Eros Grau, em julgado que transcrevemos em parte[4]: “A chamada Lei da Anistia veicula uma decisão política assumida naquele momento e deve interpretada a partir da realidade em que foi conquistada. Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem constitucional, sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável (…)”.

Mais recentemente, o STF ratificou o entendimento de que os crimes cometidos entre 02/09/1961 a 15/07/1979, no âmbito da ditadura, não devem ser revisitados a título de persecução penal, vez que abarcados pela Lei de Anistia.[5] A Lei da Anistia determinou a extinção da punibilidade dos crimes de natureza política e conexos, salvo os que já tinham condenação transitada em julgado, materializando a opção do Estado brasileiro de garantir a transição pacífica do Estado de exceção para o Democrático de Direito.

As três décadas de arbítrio estatal deixaram cicatrizes no tecido social, notadamente os atos de violência praticados por aqueles que agiam em nome do Estado. Entretanto, certa ou errada, a lei optou pela via da conciliação e determinou a extinção da punibilidade de todos os envolvidos. Este foi o preço assumido para garantir uma transição do regime de força para a normalidade institucional.

A revogação da anistia é juridicamente impossível, sob pena provocar revogação de norma constitucional irrevogável, assim, “uma vez concedida, não pode a anistia ser revogada, porque a lei posterior revogadora prejudicaria os anistiados, em clara violação ao princípio constitucional de que a lei não pode retroagir para prejudicar o acusado (CF, art. 5º, XL) ”.[6]

A Constituição Federal não é uma folha em branco a ser preenchida de acordo com a conveniência do momento, mas um texto rígido e principiológico, a partir do qual está estruturado todo o ordenamento jurídico subalterno. A impossibilidade de revogação da anistia não é uma opção política ou um desejo ideológico, mas uma realidade jurídica que não pode ser transposta. Esta não é uma posição de direita, de centro ou de esquerda, mas uma posição do Direito, resguardando o respeito a nossa Constituição Federal.


[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. Vol.1, SaraivaJur, 2020, p. 978.

[2] Parecer da OAB ao projeto de lei da anistia, com tramitação no Congresso Nacional em 1979.

[3] STJ, REsp 1.798.903/RJ

[4] STF, ADPF nº 153/DF

[5] STF, Extradição 1.362/DF, cf. ADPF 153, Rel. Min. Eros Grau, no voto do Min. Celso de Melo, Tribunal Pleno, DJe 60/08/2010.

[6] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte Geral, Vol.1, SaraivaJur, 2021, p. 571.

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