Opinião

A regulamentação jurídica da biodiversidade no Brasil à luz dos critérios ESG

Autores

  • Alexandre Sion

    é advogado sócio-fundador do Sion Advogados presidente da Associação Brasileira de Direito da Energia e do Meio Ambiente (ABDEM) pós-doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca na Espanha doutorando em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa Portugal mestre em Direito Internacional Comercial (LL.M) pela Universidade da Califórnia Estados Unidos especialista em Direito Constitucional e pós-graduado em Direito Civil e Processual Civil (FGV).

  • Bárbara Maria Acquarone Colaço Fiuza

    é pós-graduanda em Direito da Mineração pelo Centro de Estudos em Direito e Negócios pós-graduada em Direito do Estado e Regulação pela Fundação Getúlio Vargas – FGV/RJ foi pesquisadora bolsista do Programa de Iniciação Científica da PUC/RJ com o tema Direito Internacional das Mudanças Climáticas é advogada sênior das práticas ambiental e minerária do escritório Sion Advogados associada da Abdem–Associação Brasileira de Direito da Energia e Meio Ambiente e associada da UBAA–União Brasileira da Advocacia Ambiental.

  • Izadora Gabriele dos Santos Oliveira

    é advogada no escritório Sion Advogados pós-graduanda em Direito Ambiental coautora do livro "Direito ambiental economia e relações internacionais: terras raras guerra comercial e Teoria dos Jogos"; associada da Abdem–Associação Brasileira de Direito da Energia e Meio Ambiente associada da UBAA–União Brasileira da Advocacia Ambiental e membro da Laclima.

2 de junho de 2021, 14h05

O termo Environmental, social and corporate governance (ESG) refere-se a standards utilizados por investidores para análise de potencial investimento, sendo bons indicadores de riscos. A preocupação com aspectos ambientais, sociais e de governança, todavia, não é inovadora, já que é entendida como uma evolução da sustentabilidade corporativa idealizada por John Elkington na década de 1990, a partir do tripé da sustentabilidade [1]. Inegável, porém, que a agenda ESG tem ganhado cada vez mais visibilidade no mercado e na sociedade.

Transcendendo a questão de investimentos, a agenda ESG contribui para que as empresas reconheçam seu papel na proteção ambiental e na promoção de uma sociedade justa e equânime. Dentre as questões levantadas por investidores para concessão de investimentos sustentáveis está a conservação da biodiversidade.

A biodiversidade refere-se às interações entre os diversos organismos; logo, não é a quantidade da fauna e flora em um determinado lugar que determinará a biodiversidade, mas sim as relações entre esses organismos. Ponto fulcral é pensar no que queremos conservar quando falamos em conservação da biodiversidade. Notadamente, a ideia de conservação não deve se ater isoladamente às espécies, mas aos processos que as mantém e a como elas estão ligadas umas às outras [2].

No que se refere às obrigações relativas ao acesso à biodiversidade brasileira, a "lei da biodiversidade" (Lei Federal 13.123/15 [3]) passou a regulamentar, em âmbito interno, o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado, bem como a repartição justa e equitativa dos benefícios auferidos por esse acesso. A Lei 13.123/15 internaliza a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), ratificada pelo Decreto Federal 2.519/98.

Os objetivos da CDB são 1) a conservação da diversidade biológica; 2) a utilização sustentável de seus componentes; e 3) a repartição dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos mediante o acesso ao patrimônio genético e a transferência adequada de tecnologias [4].

Em março de 2021, o Brasil depositou na Organização das Nações Unidas a Carta de Ratificação sobre Acesso e Repartição de Benefícios do Protocolo de Nagoya. Dentre outros pontos, o Protocolo, ratificado pelo Decreto Legislativo 136/2020, abrange o pagamento de royalties, estabelecimento de joint ventures, financiamento de pesquisas, compartilhamento de resultados, transferência de tecnologia e capacitação, bem como o acesso de um país a recursos genéticos (como plantas e animais) de outro.

Com o depósito da Carta de Ratificação, o Brasil poderá assumir papel de destaque no mercado com aumento do desenvolvimento de negócios, haja vista que é considerado o país com maior biodiversidade do mundo. O potencial de desenvolvimento deste mercado é muito elevado e deve ser estimulado por intermédio da pesquisa e experimentação científica com base nas propriedades genéticas das espécies nativas [5]. A adesão ao Protocolo de Nagoya garante ao Brasil um posicionamento estratégico, na medida em que, ao estabelecer os compromissos de conservação da biodiversidade e equidade na remuneração decorrente do uso dos recursos genéticos, contribui para a segurança jurídica das operações e para a previsibilidade da exploração e seu retorno monetário ou não.

O Relatório de Riscos Globais do Fórum Econômico Mundial de 2020 identificou a perda de biodiversidade como o segundo risco com maior impacto e o terceiro mais provável para a próxima década [6]. Diante disso, a conservação da biodiversidade tem se tornado um dos principais focos do desenvolvimento sustentável e um dos importantes critérios de práticas ESG. Assim, a Lei 13.123/15 deve ser observada nos âmbitos interno e externo no que tange ao acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado, de forma a impulsionar o mercado com o viés de desenvolvimento sustentável.

Quanto ao conhecimento tradicional associado, reconhecer a cultura dos povos tradicionais é essencial, já que existe um componente histórico nos ambientes resultante dos diversos processos que neles ocorrem. Muitas vezes, os povos tradicionais têm um papel muito importante nos processos que geram e mantém a biodiversidade, apresentando pluralidade no emprego das espécies a partir das peculiaridades culturais.

De outra sorte, "é vedado o acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado por pessoa natural estrangeira" [7], salvo se empreendido por pessoa jurídica estrangeira associada a uma instituição nacional de pesquisa científica e tecnológica.

Entende-se que existe acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado quando há a promoção de pesquisa, seja ela experimental ou teórica, com o objetivo de produção de novos conhecimentos. De igual modo, o acesso é verificado no caso de realização de desenvolvimento tecnológico obtido pela pesquisa ou experiência prática, de forma a desenvolver novos materiais ou produtos ou aperfeiçoar ou desenvolver novos processos com finalidade de exploração econômica.

A esse respeito, considera-se acesso ao patrimônio genético quando a pesquisa e/ou o desenvolvimento tecnológico é feito em espécies, em condições in situ e, no caso de espécies domesticadas ou cultivadas, nos meios onde naturalmente tenham desenvolvido suas características distintivas próprias [8].

Outrossim, também considera-se patrimônio genético brasileiro as espécies mantidas em condições ex situ [9], desde que encontradas no território nacional, na plataforma continental, mar territorial e zona econômica exclusiva [10].

Uma excelente ferramenta para avaliar se o acesso está sendo realizado em patrimônio genético brasileiro é a "Flora do Brasil 2020", que integra o Programa Reflora. Trata-se de uma iniciativa do governo brasileiro cujo objetivo principal é o resgate de imagens de espécimes da flora e fungos brasileiros e das informações a eles associadas, depositados nos herbários estrangeiros para a construção do Herbário Virtual Reflora [11].

Outra ferramenta a ser utilizada é a lista de animais e vegetais, domesticados ou cultivados, empregados nas atividades agrícolas, elaborada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento [12]. Tais listas são de extrema relevância para assegurar aos destinatários da LF 13.123/15 o conhecimento das regras sobre a realização do acesso ao patrimônio genético e cumprimento das demais obrigações acessórias.

Por sua vez, o conhecimento tradicional associado são todas as práticas ou utilidades diretas e indiretas para a biodiversidade realizadas por populações indígenas, comunidades e agricultores tradicionais que repassam seus conhecimentos entre as gerações. Tal conhecimento pode ser adquirido por contato direto com as populações ou por fontes secundárias como livros, feiras, filmes, artigos, dentre outros [13].

Para a realização de pesquisa ou desenvolvimento tecnológico com conhecimento tradicional associado é necessária a obtenção de consentimento prévio e informado mediante a assinatura do Termo de Consentimento Prévio; registro audiovisual do consentimento; parecer do órgão oficial competente, por exemplo, a Fundação Nacional do Índio (Funai) no caso de conhecimento de populações indígenas; adesão na forma prevista em protocolo comunitário e negociação do Acordo de Repartição de Benefícios (ARB) [14].

Em especial quanto ao acesso ao conhecimento tradicional associado de populações indígenas e tribais, a LF 13.123/15 traz os conceitos da Convenção 169 da OIT, aprovada pelo Decreto Legislativo 143/02. Em seu artigo 6º, a Convenção estabelece que os governos deverão "consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente". Logo, o consentimento deve ser prévio, livre e informado, em reconhecimento ao direito dos indígenas e povos tribais a serem ouvidos, de forma adequada, sobre todos os projetos capazes de impactar-lhes os territórios, o modo de vida e que possa acarretar o deslocamento de suas terras [15][16].

No entanto, em caso de acesso ao conhecimento tradicional associado de origem não identificável não se faz necessário o consentimento prévio e informado [17], haja vista a impossibilidade de verificar a origem de tal conhecimento. Neste caso, o empreendedor obriga-se tão somente à celebração do ARB na modalidade monetária.

A rigor, a necessidade de cadastro do acesso não se aplica ao processo produtivo completo, mas tão somente à fabricação do produto intermediário, ou seja, "produto cuja natureza é a utilização em cadeia produtiva, que o agregará em seu processo produtivo, na condição de insumo, excipiente e matéria-prima, para o desenvolvimento de outro produto intermediário ou de produto acabado" (artigo 1º, XVII, da LF 13.123/15).

No entanto, a despeito disso, faz-se necessária a emissão de Atestado de Regularidade de Acesso, por meio do qual haja a demonstração do número do cadastro do acesso e o nome científico das espécies, bem como a procedência das amostras in natura, sob pena de responsabilização solidária entre o responsável pelo acesso e o usuário que explora economicamente o produto acabado.

Muito embora não seja necessário o cadastro para os produtos acabados oriundos do acesso ao patrimônio genético e/ou conhecimento tradicional associado, faz-se necessária a notificação perante o Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético (SISGen), no qual o usuário que explora economicamente o produto acabado se obriga a declarar o cumprimento dos requisitos da LF 13.123/15 e indicar a modalidade de repartição de benefícios a ser estabelecida em acordo.

A obrigatoriedade de repartição dos benefícios resultantes da exploração econômica de produto acabado ou material reprodutivo oriundo de acesso ao patrimônio genético brasileiro ou ao conhecimento tradicional associado, ainda que produzido fora do Brasil, é outro ponto de extrema relevância trazido pela LF 13.123/15.

A repartição de benefícios deve ser efetuada sempre que o componente do patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado for um dos elementos principais de agregação de valor. Entende-se como agregação de valor de determinado produto o seu apelo mercadológico, bem como as características funcionais do produto, logo aquelas que determinem suas principais características ou ampliem o seu rol de atividades ou ação do produto [18].

Assim, para que um produto oriundo de patrimônio genético e/ou conhecimento tradicional associado possa ser explorado economicamente, deve ser realizada a notificação perante o Conselho do Patrimônio Genético (CGen) e apresentado o ARB a ser firmado com a União, por meio do MMA.

A rigor, a repartição de benefícios pode ser monetária, hipótese em que o valor será depositado no Fundo Nacional de Repartição de Benefícios (artigo 25, §4º, da LF 13.123/15) no percentual de 1% sobre a receita líquida advinda da comercialização de produto acabado ou material produtivo oriundo de acesso do patrimônio genético [19], ou não monetária, ocasião em que será celebrado o ARB-NM no percentual de 0,75% sobre a receita líquida anual a ser aplicado, por exemplo, em projetos para a conservação ou uso sustentável da biodiversidade [20].

Recentemente, foi publicada a Portaria 144/21 do MMA [21], que determina os procedimentos a serem observados para a proposição, análise e assinatura do ARB-não monetária. A norma estipula prazos para a execução do ARB-NM, quais sejam, 1) até um ano para valores até R$ 1 milhão; 2) até dois anos para valores entre R$ 1.000.000,01 e R$ 3 milhões e 3) até três anos para valores superiores a R$ 3.000.000,01.

Destaca-se que a LF 13.123/15 trouxe a restrição de incidência da repartição de benefícios no produto acabado ou material reprodutivo nas atividades agrícolas, que são o último elo da cadeia produtiva, de forma a evitar o efeito em cascata sobre os alimentos, o que poderia levar a uma desvantagem competitiva neste setor [22].

Por fim, há de se pontuar que o Decreto 8.772/16, que regulamenta a LF 13.123/15, estabeleceu as infrações cometidas contra o patrimônio genético e conhecimento tradicional, cuja sanção administrativa de multa pode atingir o valor de R$ 10 milhões quando a infração for cometida por pessoa jurídica. Outrossim, a imposição de sanções relativas ao uso indevido do patrimônio genético brasileiro e conhecimento tradicional associado pode ensejar graves impactos à reputação da empresa, podendo prejudicar a sua posição de mercado.

Diante do exposto, é importante que a LF 13.123/15 seja efetivamente cumprida pelas empresas nacionais e estrangeiras por ocasião do acesso ao patrimônio genético e conhecimento tradicional associado, seja como forma de proteção aos interesses nacionais no uso da biodiversidade brasileira, seja como forma de demonstração de que as operações das empresas incorporam práticas ambientais em suas atividades como instrumento de ESG.

Referências bibliográficas
BESSA ANTUNES, P. Direito Ambiental. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2020.

BRASIL. Decreto Federal nº 2.519, de 16 de março de 1998. Diário Oficial da União, Brasília, 17 mar. 1998.

BRASIL. Lei Federal nº 13.123, de 20 de maio de 2015. Diário Oficial da União, Brasília, 14 maio 2015.

BRASIL. Portaria MMA nº 144, de 22 de abril de 2021. Diário Oficial da União, Brasília, 23 abr. 2021.

DEFINIÇÕES. UFMG, Belo Horizonte, 2021. Patrimônio Genético.

FLORA do Brasil 2020. Jardim Botânico do Rio de Janeiro. 2020.

GUETTA, M.; BENSUSAN, N. Tutela dos conhecimentos tradicionais face à sua diversidade. Série Direito, Economia e Sociedade, São Paulo, 2017.

KOHLMANN, G. Destravando a agenda da Bioeconomia: soluções para impulsionar o uso sustentável dos recursos genéticos e conhecimento tradicional no Brasil. Instituto Escolhas, São Paulo, jan. 2021.

MAZZARO, M.; FERREIRA, S. N. A tutela jurídica do patrimônio genético na Constituição Federal: Acesso à Biodiversidade. 2018.

SION, A. O. Conflito aparente de princípios constitucionais ambientais e indigenistas. 2009. V. 1. Cap. 9, p. 143-174.

SION, A. O. A OIT 169 e os intervenientes no processo de licenciamento. Belo Horizonte: Direito Ambiental a Conta Gotas, 10 jul. 2019. 1 vídeo (4:25 min).

WEF. Relatório Global de Riscos 2020. World Economic Forum, Geneva, 2020.


[1] A teoria do The Triple Bottom Line considera aspectos ambientais, sociais e econômicos.

[2] GUETTA; BENSUSAN. 2017. p. 120.

[3] Anteriormente tratada pela MP 2.186-16/01, que vigorou cerca de 15 anos.

[4] BESSA ANTUNES. 2020. p. 594.

[5] KOHLMANN. 2021. p. 3.

[6] WEF. 2020.

[7] artigo 11, § 1º, da LF 13.123/15.

[8] DEFINIÇÕES. 2021.

[9] Condições em que o patrimônio genético é mantido fora de seu habitat natural.

[10] artigo 1º, I, da LF 13.123/15.

[11] FLORA… 2020.

[12] MAZZARO; FERREIRA. 2018. p. 361.

[13] artigo 2º, IX, da LF 13.123/15.

[14] Idem, artigo 9º.

[15] BESSA ANTUNES. 2020. p. 1240.

[16] SION. A OIT…; SION. Conflito… 2009. p. 156.

[17] artigo 2º, III, da LF 13.123/15.

[18] Idem, artigo 2º, XVIII.

[19] Ibidem, artigo 20.

[20] Ibidem, artigo 22.

[21] Publicada em 22.04.21.

[22] MAZZARO; FERREIRA. Op. cit. p. 362.

Autores

  • é advogado, sócio-fundador do Sion Advogados, presidente da Associação Brasileira de Direito da Energia e do Meio Ambiente (ABDEM), doutorando em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal, mestre em Direito Internacional Comercial (LL.M) pela Universidade da Califórnia, Estados Unidos, especialista em Direito Constitucional e pós-graduado em Direito Civil e Processual Civil (FGV).

  • é pós-graduanda em Direito da Mineração pelo Centro de Estudos em Direito e Negócios, pós-graduada em Direito do Estado e Regulação pela Fundação Getúlio Vargas – FGV/RJ, foi pesquisadora bolsista do Programa de Iniciação Científica da PUC/RJ com o tema Direito Internacional das Mudanças Climáticas, é advogada sênior das práticas ambiental e minerária do escritório Sion Advogados, associada da Abdem–Associação Brasileira de Direito da Energia e Meio Ambiente e associada da UBAA–União Brasileira da Advocacia Ambiental.

  • é advogada no escritório Sion Advogados, pós-graduanda em Direito Ambiental, coautora do livro "Direito ambiental, economia e relações internacionais: terras raras, guerra comercial e Teoria dos Jogos"; associada da Abdem–Associação Brasileira de Direito da Energia e Meio Ambiente, associada da UBAA–União Brasileira da Advocacia Ambiental e membro da Laclima.

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