Opinião

Quando a Suprema Corte dos EUA declarou uma oração inconstitucional

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2 de junho de 2021, 6h36

A ideia de Estado laico foi responsável pela separação dos assuntos entre Igreja e Estado, que teve nascimento na Revolução Francesa (1789-99). Esta laicidade foi introduzida na Constituição dos Estado Unidos da América em 1791, por meio da Primeira Emenda à Constituição. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 expõe em seu artigo 5º, inciso VI, que todas as pessoas são iguais perante a lei e que é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Além disso, o artigo 19, I, ratifica um caráter laico do Estado.

Apesar do conceito de separação entre Estado e religião ser bem definido, há diversas interpretações a respeito da aplicabilidade desta laicidade na sociedade, sendo objeto desta análise a ideia de laicidade nas escolas públicas. Para introduzir o debate, é essencial expor a decisão polêmica e marcante da Suprema Corte dos Estados Unidos da América no caso Engel v. Vitale, 370 US 421 (1962), que versava sobre a inconstitucionalidade da oração nas escolas públicas.

O estado de Nova York, em meados da década de 60, aprovou uma lei que estimulava a oração juramentada nas escolas do estado, antes do início das aulas. A oração tinha o seguinte texto: "Deus todo-poderoso, reconhecemos nossa submissão ao Senhor, e imploramos por suas bênçãos sobre nós, nossos pais, nossos professores e nosso país. Amém".

A recomendação foi adotada  por William J. Vitale, diretor da escola pública Herricks Union Free School District, de New Hyde Park, Nova York, por instrução do Conselho de Regentes do Estado — uma agência governamental criada pela Constituição daquele estado federado —, que redigiu a oração supracitada integrando-a na "Declaração sobre Treinamento Moral e Espiritual nas Escolas". Esta foi publicada com apelo a todos os homens e mulheres "de boa vontade", que dariam vida ao programa ao apoiar o ato.

Tal atitude foi reprovada por um grupo de pais de dez alunos, liderado por Steven I. Engel, um homem judeu que ajuizou uma ação na justiça federal alegando a inconstitucionalidade da oração. Os argumentos de Engel e dos outros autores eram que a referida oração violava a cláusula de liberdade de religião prevista na Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, a chamada "Establishment Clause", que proibia o Congresso de estabelecer uma religião oficial ou de dar preferência a uma religião, instituindo a separação entre a Igreja e o Estado.

Diz a "establishment clause": "O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos".

Com isso, Engel alegava que qualquer tipo de apoio, direto ou indireto, dado pelo Estado a uma determinada religião seria inconstitucional, recorrendo também aos escritos de Thomas Jefferson — criador da metáfora de parede entre Estado e Igreja. A questão levantada pelos pais dos alunos contava com o apoio de entidades que atuaram como amicus curiae — terceiros que possuíam um profundo interesse na questão jurídica do caso — como American Civil Liberties e American Jewish Committee.

Em contestação, Vitale defendeu a constitucionalidade da norma com o argumento de que a oração não era compulsória, existindo a possibilidade de os alunos permanecerem em silêncio ou simplesmente saírem da sala de aula. Além disso, a oração era neutra e não estaria sendo vinculada a nenhuma religião específica, não tinha dinheiro público envolvido e que o ato não caracteriza o estabelecimento de uma religião oficial. Deste modo, obteve apoio da Arquidiocese de Nova York e de procuradores-gerais de vinte estados da União.

Com entendimento da constitucionalidade da oração pela Corte Federal de Apelações de Nova York e de outras instâncias, o caso Engel v. Vitale chegou à Suprema Corte em 1962 e foi decidido no mesmo ano. Por um quórum de seis votos a um, a Suprema Corte reverteu a decisão e declarou a inconstitucionalidade da oração.

Em breve resumo, pode-se dizer que a Suprema Corte entendeu que o aproveitamento do sistema escolar para encorajar a prática de oração violava a cláusula constitucional estabelecida na Primeira Emenda à Constituição, não existindo dúvida de que a invocação de bênçãos de "Deus-Todo-Poderoso" em sala de aula é uma atividade religiosa. Com isso, tornou-se irrelevante o fato de a oração ser neutra e facultativa.

Com votos seguindo o relator Justice Hugo L. Black, os juízes da Suprema Corte usaram argumentos históricos do país para enfatizar os perigos de grupos poderosos que representam diferentes religiões lutarem entre si para impor suas crenças particulares sobre o governo, com objetivo de estabelecer uma religião oficial. Bem como enfatizaram, sobre a finalidade da establishment clause: "(…) Seu primeiro e mais imediato propósito baseava-se na crença de que uma união de governo e religião tende a destruir o governo e degradar a religião. (…) Outro propósito da Cláusula de Estabelecimento baseava-se na consciência do fato histórico de que as religiões estabelecidas pelo governo e as perseguições religiosas andam de mãos dadas."

De outro lado, o único voto divergente foi o do juiz J. Stewart, pois ele entendeu que a decisão das autoridades era um incentivo aos alunos que quisessem compartilhar a herança espiritual do país.

É importante salientar que a decisão do caso Engel v. Vitale foi objeto de grandes debates polêmicos, com apoiadores e críticos. O entendimento histórico foi base para julgamentos seguintes que restringiram a oração proposta pelo Estado nas escolas públicas.

Em 1985, foi decidido pela Suprema Corte no caso Wallace v. Jeffree: uma lei do Estado do Alabama que permitia um minuto para oração ou meditação foi tida como inconstitucional. Em 1992, a oração dirigida pelo clero nas cerimônias de formatura do ensino médio também foi declarada inconstitucional, no caso Lee v. Weisman. A decisão mais recente foi do caso Santa Fe Independent School District v. Doe, no ano 2000, em que a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade das orações prévias ao lance inicial nos jogos de futebol do ensino médio, por um quórum de seis votos a três, pois entenderam que a oração violava a "establishment clause".

Diante do exposto, conclui-se que a parede entre Estado e religião nas escolas é bem definida pelo entendimento da Suprema Corte dos Estados Unidos da América; porém, faz-se necessário observar que o tema é bastante controverso no país, tanto no âmbito escolar quanto nas outras áreas da sociedade. Vale lembrar que há tradições religiosas em cerimônias presidenciais (apesar de serem facultativas) e em cédulas de dólar, nas quais está estampada a frase "In God We Trust", o que leva a um extenso debate sobre existência completa da separação entre Estado e Igreja, ou se apenas há a manutenção da herança e tradição religiosa do país.

No Brasil, o conceito de liberdade religiosa para o Supremo Tribunal Federal é bem diferente do entendimento da Suprema Corte dos EUA. Em 2017, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4.439), do Distrito Federal, proposta pelo Procuradoria-Geral da República, em um quórum de seis votos a cinco, sendo o voto de minerva o da ministra Cármen Lúcia.

A ação não questionava o ensino religioso nas escolas públicas do Brasil, pois este é previsto na Constituição Federal, em seu artigo 210, § 1º, mas sim a aplicação deste, alegando que o modelo de ensino religioso não poderia estar vinculado a nenhuma religião, pois violava a laicidade do Estado estabelecida pela norma constitucional.

O apontamento do Procurador-Geral da República foi o artigo 33, caput e seus parágrafos, da Lei nº 9.394 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação — LDB), que estabelecia o ensino religioso como disciplina integrante da formação básica do cidadão, fazendo parte do quadro normal de disciplinas das escolas públicas em nível fundamental, apesar desta matéria ser facultativa.

O § 1º, do artigo 33 da LDB estipulava os sistemas de ensino como reguladores do conteúdo da disciplina de ensino religioso, além destes serem responsáveis por definir normas para a habilitação e admissão de professores. Além disso, o § 2º, indicava que os sistemas de ensino deveriam ouvir entidades civis constituídas por denominações religiosas diversas para definir os conteúdos do ensino religioso.

Por tais razões, o Procurador-Geral da República entendia que o caráter confessional ou interconfessional do ensino religioso violava a laicidade do Estado, previsto no artigo 19, inciso I da Constituição Federal de 1988: "É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público".

Além disso, a ação questionava também o acordo firmado entre o governo do Brasil e a Santa Fé, no Vaticano, em 2008, referente ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil. Este acordo foi promulgado pelo Decreto 7.107/2010 e trazia em seu artigo 11 o seguinte texto:

"A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa.
§1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação."

Para a Procuradoria-Geral da República, a maneira de adequar a laicidade do estado, prevista no artigo 19, I, da Constituição com o ensino religioso seria a adoção de um modelo não-confessional. Nesta perspectiva, a disciplina teria como conteúdo a apresentação das religiões e suas práticas, a história e dimensões sociais destas, além de serem ministradas por professores que não tomassem partido de determinada religião, ou seja, pessoas neutras e não vinculadas às igrejas ou confissões religiosas.

Foi relator o ministro Luís Roberto Barroso, que votou pela procedência do pedido de inconstitucionalidade: "(…)eu devo dizer que a simples presença do ensino religioso em escolas públicas já constitui uma exceção feita pela Constituição à laicidade do Estado. Por isso mesmo, a exceção não pode receber uma interpretação ampliativa para permitir que o ensino religioso seja vinculado a uma específica religião". O voto foi acompanhado pela ministra Rosa Weber e pelos ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Luiz Fux.

Votaram pela improcedência da ação os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia. O entendimento majoritário foi o de que a Constituição Federal garante aos alunos o exercício pleno do direito subjetivo ao ensino religioso, desde que seja expressamente de forma voluntária, sendo este ensino ministrado como disciplina em horário normal das aulas de escolas públicas de ensino fundamental. O conteúdo da disciplina pode ser confessional, baseado nos dogmas específicos da crença do aluno, não se confundindo com outros ramos como história ou filosofia das religiões.

O Supremo Tribunal Federal, em sua maioria, entendeu que existe um binômio entre Laicidade de Estado/Consagração da Liberdade religiosa, uma vez que a Constituição Federal garante a voluntariedade das matrículas para ensino religioso, com respeito aos ateus e agnósticos, bem como impede de forma implícita a criação artificial pelo Poder Público de seu próprio ensino religioso, além de proibir o favorecimento ou hierarquização de interpretações religiosas.

Ante o exposto, pode-se afirmar que a controvérsia acerca da liberdade religiosa no entendimento da Suprema Corte (EUA) e do Supremo Tribunal Federal se dá em torno da coerção. Neste sentido, a Suprema Corte entende que a oração nas escolas públicas, mesmo que de forma facultativa e não direcionada a nenhuma religião, viola a cláusula de liberdade religiosa estipulada na Primeira Emenda à Constituição. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal teve um entendimento diferente, decidindo que o ensino religioso pode ser confessional, ou seja, a pregação de religiões e crenças específicas em escolas públicas não violaria a laicidade do Estado, prevista no artigo 19, inciso I, da Constituição Federal de 1988.

Referências Bibliográficas:
JUSTIA US Supreme Court. Disponível em: >https://supreme.justia.com/cases/federal/us/370/421/#tab-opinion-1943887< Acesso em 1/5/2021.

STF conclui julgamento sobre ensino religioso nas escolas públicas. Brasília, 27 de set. de 2017. Disponível em: >http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=357099<. Acesso em 1/5/2021.

THE ESTABLISHMENT CLAUSE AND THE SCHOOLS: A LEGAL BULLETI, ACLU. Disponível em: >https://www.aclu.org/other/establishment-clause-and-schools-legal-bulletin< Acesso em 1/5/2021.

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