Consultor tributário

Sigilo fiscal do Rerct e a proteção da confiança pelo STF

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

2 de junho de 2021, 12h29

O Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (Rerct), criado pela Lei nº 13.254/16, para declaração espontânea dos ativos, recursos, bens ou direitos mantidos no exterior, de origem lícita, precisa ser aplicado dentro dos pressupostos de legalidade e de proteção da boa fé, sob pena de falência da credibilidade do Estado brasileiro perante todos os seus cidadãos.   

Spacca
Os programas de "Offshore Voluntary Disclosure", nos mais de 50 países que os adotaram, com suas especificidades, funcionaram como medidas de "justiça de transição" [1]. Basearam-se numa espécie de "arrependimento eficaz" para todos aqueles que possuíam recursos no exterior de origem lícita e não declarados. 

No Brasil, este programa, fundado na confiança legítima, alcançou indiscutível êxito, ao permitir o ingresso de R$ 169,9 bilhões declarados na economia do país e, com isso, logrou reduzir os impactos da crise econômica sobre os cofres da União, dos Estados e dos Municípios, com arrecadação de R$ 46,8 bilhões. E isto só foi possível graças à adesão dos contribuintes que acreditaram na motivação baseada na confiança e nos parâmetros de aplicação do regime.

Muito desta adesão significativa representou confiança na Receita Federal e no Brasil, que merece encômios pelo modo transparente com que conduziu todo o processo, pela regulamentação que se foi adaptando pelo "Perguntas e Respostas" e evidência de respeito à boa fé. Por isso, as tentativas de reabertura do programa, para exigir comprovação de origem dos recursos, por inversão do ônus da prova, contrariam o texto da lei de transação do regime especial, mas também o próprio princípio constitucional da moralidade administrativa (artigo 37).

Quanto ao sigilo das declarações, o Supremo Tribunal Federal, na ADI 5729, julgada em 8/3/2021, estabeleceu a seguinte Tese: "É constitucional a vedação ao compartilhamento de informações prestadas pelos aderentes ao Rerct com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, bem como a equiparação da divulgação dessas informações à quebra do sigilo fiscal". Esta parte final é de extrema relevância, que corrobora outro aspecto da ementa: "Dentre as garantias, foi prevista a preservação do sigilo das informações prestadas (artigo 7º, §§ 1º e 2º, objeto desta ADI). 4. Não há inconstitucionalidade nos dispositivos impugnados".

E, para melhor clareza, o relator, ministro Roberto Barroso, fez bem em consignar: "Compreendido o programa como espécie de transação, é possível estabelecer que as regras especiais de sigilo são exemplos de garantia dada a quem opta por aderir a ele. Enquanto 'regras do jogo', devem ser, tanto quanto possível, mantidas e observadas, a fim de assegurar a expectativa legítima do aderente e proporcionar segurança jurídica na transação".

Portanto, o STF resguardou a confiança legítima dos contribuintes, como parte substancial da segurança jurídica, pela adesão fundada na boa fé e com respeito à legalidade e garantia de sigilo fiscal das declarações, sem qualquer impedimento às investigações válidas que possam identificar formas de origem ilícitas nos valores repatriados, como já ocorreu em diversas situações.

Conforme o artigo 9º da Lei nº 13.254/2016, somente poderia excluído do Rerct o contribuinte que apresentasse declarações ou documentos falsos relativos à titularidade e à condição jurídica dos recursos, bens ou direitos declarados. A declaração não é bastante para afirmar qualquer definitividade da anistia. Contudo, somente com processo judicial em curso, com sigilo preservado, poderiam ser colhidos estes documentos. 

Porém, como recorda o artigo 31 da IN RFB nº 1.627/2016, a divulgação ou a publicidade das informações presentes no Rerct implicariam efeito equivalente à quebra do sigilo fiscal, sujeitando o responsável às penas previstas na Lei Complementar nº 105, de 10/1/2001, e no artigo 325 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7/12/1940 — Código Penal. 

Deveras, pelo Rerct, a declaração de regularização não poderá ser, por qualquer modo, utilizada: 1) como único indício ou elemento para efeitos de expediente investigatório ou procedimento criminal; ou 2) para fundamentar, direta ou indiretamente, qualquer procedimento administrativo de natureza tributária ou cambial em relação aos recursos dela constantes (artigo 4º, § 12 da Lei nº 13.254/2016).

O Rerct não trouxe nenhuma hipótese de inversão do ônus da prova. Se a Administração tem suspeita de alguma ilicitude, terá que fazer carga da prova. Neste caso, como prescreve o § 2º do artigo 9º, a instauração ou a continuidade de procedimentos investigatórios quanto à origem dos ativos objeto de regularização somente poderá ocorrer se houver evidências documentais adicionais à declaração do contribuinte, apuradas em procedimento apartado.

Numa síntese, afastada qualquer forma de "inversão do ônus da prova", a exclusão somente autorizaria a derrubada integral dos benefícios da anistia caso verificada eventual utilização do Rerct para recursos de origem ilícita. Logo, quando presentes motivos adicionais à Dercat para investigações, o sigilo fiscal não se faz oponível, desde que a quebra provenha de decisão judicial, ao que a Dercat nunca foi obstáculo.  

Importante lembrar que ao optar pela regularização dos ativos, o particular aceitou toda a extensão do programa do Rerct, segundo um regime baseado em presunção legal, para oferecer à tributação rendimentos que, em muitos casos, sequer poderiam ser considerados como renda, tudo sob a forma de "ganho de capital", admitido como zero o valor de aquisição e afastados outros redutores do valor do tributo devido.

Como bem destaca Luís Eduardo Schoueri, ao tratar sobre a modalidade de tributação por ganho de capital da Lei nº 13.254/16, in verbis:

"É, portanto, irrelevante a verdadeira proveniência de tais ativos, sendo, inclusive, possível a incidência do Imposto de Renda sobre situações em que sequer se poderia cogitá-la. Por exemplo, um ativo oriundo de uma indenização ou de uma doação, que não estaria sujeito ao imposto, torna-se, em virtude da regularização, passível de tributação pelo fato de que é considerado como se ganho de capital fosse" [2].

De fato, ao optar pela regularização dos ativos, o particular se submeteu a todos os aspectos legais, dos mais gravosos (ampliação da base de cálculo, tipos que não seriam tributados) aos mais benéficos (aplicação de alíquota única, anistia etc), para apuração do montante devido com simplificação e objetividade.

O tratamento de ganho de capital foi adotado como único critério da Lei nº 13.254/16 para a tributação no regime especial de repatriação. Neste caso, o dólar fixou um câmbio objetivo, por uma presunção absoluta, para assegurar a simplificação necessária ao regime. Este pressuposto não se pode afastar, portanto, sob pena de total descaracterização da praticabilidade adotada no regime especial em tela.

Entretanto, como no Brasil até o passado é incerto, como diria o saudoso Roberto Campos, ao analisar o artigo 6º da Lei nº 13.254/16, a Cosit, por meio da Solução de Consulta nº 678/2017, concluiu que, malgrado a norma adote o regime jurídico do ganho de capital aplicável aos valores repatriados no âmbito no Rerct, numa apreciação inteiramente subjetiva, não seria coerente com o ordenamento o emprego dessa sistemática de tributação, na medida em que a natureza jurídica do ganho de capital implicaria a necessidade de uma alienação, fato que não ocorre no âmbito de repatriação dos ativos outrora alocados no estrangeiro.

Pois bem. Com base nesta Solução de Consulta Cosit nº 678/2017, de modo reiterado e acrítico, diversas autuações fiscais foram produzidas recentemente, com único fundamento na sua conclusão, que deliberadamente exclui o tratamento do Rerct, para adotar o regime de alíquotas da tributação de pessoas físicas.

Sequer leva-se em conta que, na situação da consulta, o contribuinte, no transcurso do processo de regularização, dissolveu a empresa, liquidou seu patrimônio e o restituiu ao Brasil, em seu favor. Por conta disso, ofereceu à tributação pelo IRPF, a título de ganho de capital, a diferença entre o valor tributado no Rerct e aquele repatriado, como devolução do capital da empresa. Daí o contribuinte indagar se, no momento da repatriação feita em nome de pessoa física, tributar-se-ia o eventual acréscimo patrimonial como ganho de capital ou se, ao revés, seriam aplicadas as alíquotas progressivas do regime de pessoa física.

Em síntese, eis a conclusão trazida pela Cosit:

"Em razão dos fatos e fundamentos expostos, soluciono a Consulta respondendo ao Consulente que a devolução de capital, correspondente à participação acionária regularizada no âmbito do Rerct, de pessoa jurídica situada no exterior, recebida por pessoa física residente no Brasil, transferidos ou não para o País está sujeita à tributação sob a forma de recolhimento mensal obrigatório (carnê-leão), no mês do recebimento, e na Declaração de Ajuste Anual, calculados conforme a tabela progressiva mensal e anual, respectivamente".

Assim, para a Cosit, a base de cálculo dos valores oferecidos à repatriação de recursos não poderia assumir a "natureza jurídica" de ganho de capital. E, numa espécie de "revisão" da própria lei, a Cosit assume a seguinte hermenêutica: por não ser "possível" aplicar o regime legal de ganho de capital, dever-se-ia empregar o regime de tributação das pessoas físicas pautadas nas alíquotas progressivas da Lei nº 7.713/88.

Como dito, o uso da base de ganho de capital, como se o valor de aquisição fosse zero, no âmbito do Rerct, sempre foi algo vantajoso para o próprio Fisco. Tanto pela simplificação quanto pelo aumento expressivo da base de cálculo. Querer, agora, modificar a forma de tributação, com glosa do regime, é um excesso de ilegalidade que resulta em claro efeito de confisco, defeso pelo artigo 150, IV da Constituição.   

O Rerct, como "regime especial", opera com as hipóteses de isenção parcial e anistia (exclusão do crédito tributário), bem assim com o perdão de outras obrigações dos regimes ordinários de tributação (dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias). Logo, inafastável o artigo 111, I, II e III, do CTN, que exige interpretação literal das leis que tragam regimes mais favoráveis ao contribuinte.

A interpretação especificadora ou literal dos regimes especiais, a exemplo do Rerct, serve, ao mesmo tempo, a dois propósitos: 1) impede o alargamento do benefício fiscal pela via interpretativa 2) e, igualmente, a sua restrição indevida pelo intérprete. Assim, nas hipóteses em que o legislador dispensou ao contribuinte presunções absolutas sujeitas à sua adesão, descabe à Administração Tributária pretender desconsiderar o direto de opção mediante interpretação mais gravosa.

O Rerct, como regime especial, ampara-se no § 2º do artigo 43 do CTN, como forma de autorizar o legislador a prescrever o critério temporal de incidência, que traz a seguinte redação: "Na hipótese de receita ou rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará a sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo". Foi justamente o que fez a Lei nº 13.254/16, ao definir a incidência no seu artigo 6º e o ganho de capital como critério para disponibilidade do rendimento.

O mais grave dos equívocos na aplicação do Rerct está em desconsiderar os efeitos de praticabilidade decorrentes do direito de opção do contribuinte. Supor que a tributação dos valores repatriados tivesse que se dar mediante a aplicação das alíquotas progressivas destinadas às pessoas físicas seria o mesmo que descumprir todo o sistema de legalidade que resguardava o Rerct.

Sempre ao amparo da presunção de inocência, o Rerct exige a prevalência do ônus da prova de quem acusa, e que o benefício da dúvida não pode ser motivo para desqualificação dos atos praticados, para impor regimes mais gravosos, como cobranças com alíquotas progressivas e outros.

Em conclusão, a Administração submete-se ao dever de presumir como verdadeiros os fatos declarados pelos particulares; e, para afastar essa presunção, é dever do Fisco provar, cabalmente, quais os lançamentos contábeis presentes nos Livros Fiscais que não mereceriam fé. Ora, tanto mais quando a Lei nº 13.254/16 afasta expressamente qualquer inversão do ônus da prova. O artigo 9º do Decreto no 70.235/1972, sempre prescreveu que "a exigência do crédito tributário e a aplicação de penalidade isolada (…) deverão estar instruídos com todos os termos, depoimentos, laudos e demais elementos de prova indispensáveis à comprovação do ilícito". Nesse particular, quer-se significar que o ônus da prova é exclusivo da Administração.


[1] "Progress has been massive and has already translated in to more than half a million taxpayers disclosing their assets held offshore to the tax administrations of their countries of residence, with at least 50 billion euros in additional revenues identified in countries that have put in place voluntary disclosure programmes and similar initiatives to allow taxpayers to come forward to correct their past tax transgressions. Financial institutions are now working closely with governments to prepare the implementation of the CRS". (OECD. Update on Tax Transparency. Secretary-General Report to G20 Finance Ministers. Washington, April 2016).

[2] Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo; GALDINO, Guilherme. Imposto de renda sobre variação cambial de recursos repatriados no âmbito do RERCT. In: Revista de Direito Tributário Atual, nº 39, São Paulo: IBDT, 2018, p. 304.

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    é professor titular de Direito Financeiro e Livre Docente de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), vice-presidente da International Fiscal Association (IFA) e advogado.

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