Opinião

O míssil nos credores do governo... E o meteoro nas instituições e na democracia!

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31 de julho de 2021, 12h43

A fala desta sexta-feira (30/7) do ministro da Economia, Paulo Guedes, representou mais um ataque à segurança jurídica e ao Estado de Direito. As dívidas judiciais nada mais representam que a submissão de governos passados, atuais ou futuros à lei.

De forma desmedida, manifestou-se com a pretensão de que o Judiciário deveria desconsiderar obrigações constitucionalmente postas e há muito conhecidas pelo próprio Poder Executivo — por exemplo, a questão do Fundef é discutida há mais de 15 anos. Bem apontou o ministro Edson Fachin caber "à União, devedora e inadimplente, cuja contumácia, no caso, é revelada insofismavelmente pela data da propositura da ação, pelo alongamento do trâmite e pelos diversos incidentes processuais, avaliar e assumir as consequências dos riscos inadequadamente previstos'. Ou seja, a União litiga, abusa de seu direito de recorrer, coloca-se de forma irredutível em posições jurídicas claramente absurdas e depois não quer adimplir suas obrigações?

Guedes trabalhava para enviar uma primeira versão do orçamento no fim deste mês, para o próximo ano. "Nós estamos mapeando um meteoro que pode atingir a Terra. Temos que disparar um míssil para impedir que o meteoro atinja a Terra", afirmou. "Estamos ainda processando. As informações estão chegando. Pode ter certeza de que nós não furaríamos o teto não é por causa do Bolsa Família. Tudo está sendo programado. Agora, às vezes vem coisas dos outros Poderes que nos atingem e aí nós temos que fazer um plano de combate imediato. Já tem uma fumaça no ar", afirmou à imprensa, sem dar detalhes.

Caberia questionar ao ministro, oportunamente, se o tal "meteoro" não teria origem no cinturão do próprio Ministério da Economia. Veja-se, 15 anos de discussão apontam, necessariamente, para 15 anos de correção e juros. A duração razoável do processo levaria, obrigatoriamente, a uma dívida significativamente menor.

Não apenas isso, o deputado Marcelo Ramos, vice-presidente da Câmara, se manifestou via Twitter sobre o pronunciamento do ministro da Economia quando destacou o óbvio: a impossibilidade do caminho do calote, e a alternativa democrática para a gestão das dívidas judiciais, via acordos consensuais, previstos na Constituição e já regulados em lei. "A fala do ministro Guedes a respeito das dívidas judiciais do Governo nos parece bastante inadequada. Chama de 'meteoro' o valor devido aos cidadãos que buscaram no Judiciário a reparação de danos causados no passado. Esses cidadãos aguardaram por anos, muitas vezes décadas, o direito de ver reparado um dano sofrido. O reparo é pago por meio de precatórios. São dívidas constituídas e que devem ser pagas. O direito ao recebimento dos precatórios está previsto na Constituição da República, artigo 100. O Judiciário não criou 'meteoros'. Apenas protege a Constituição e garante o direito dos cidadãos. O Congresso respeita a Constituição. E colabora de forma republicana com a gestão responsável, mas democrática, do país. Editada em 11 de setembro de 2020, a Lei n. 14.057/2020, de minha autoria, sensível à constante necessidade de boa gestão das finanças do país, regulou de forma democrática como o governo federal poderia gerir o tema das dívidas judiciais (…)".

Para que se compreenda o disparate que representa a fala do ministro Paulo Guedes, vale rememorar que a Constituição Federal estabelece, em seu artigo 5º, XXXV ("A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direitos"), o princípio do acesso à Justiça como direito fundamental na ordem jurídica brasileira. Muitas das vezes, ao acionar o Judiciário, o jurisdicionado busca a reparação de um dano, sendo tal motivação frequente quando determinado cidadão ou empresa ajuíza uma ação contra a União, conhecida historicamente pelas práticas irregulares, desapropriações sem indenizações justas, tributos inconstitucionais, contratos desrespeitados, e por aí vai. O Judiciário impõe as reparações, mas o litígio protelatório da União empurra o desfeixe dos casos por anos, décadas. Diversos credores falecem, e seus herdeiros seguem na luta inglória. Quando, finalmente, chega-se ao final, e o Judiciário determina o pagamento — a emissão do precatório —, o que pode fazer a União? Pagar, correto? Segundo nosso ministro Guedes, não.

O ministro Guedes parece desconhecer nossa Constituição, que prevê a observância da legalidade, própria de uma democracia. O Estado lesa, o Judiciário condena, o cidadão é ressarcido. O "meteoro", na verdade, nada mais é do que o ressarcimento, mediante precatório, como diz a Constituição. Anualmente, os valores relativos aos precatórios expedidos até o dia 1º de julho são inscritos no orçamento do exercício seguinte do ente público, conforme disciplinado pelo artigo 100, §5º, da Constituição: "É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos, oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente".

As manifestações de repúdio pipocam por todo o país, com destaque à nota expedida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) na certeza de que qualquer tentativa como a aventada pelo ministro Paulo Guedes não encontrará respaldo no Congresso Nacional, tampouco subsistirá a um eventual controle de constitucionalidade pelos órgãos do Poder Judiciário, firmemente comprometidos com as bases democráticas.

A expedição de um precatório só ocorre quando o trâmite processual é integralmente percorrido, com o esgotamento de todos os recursos cabíveis, consolidando a condenação judicial — é o chamado "trânsito em julgado". Esse trâmite, quando a União é a devedora, leva anos a fio, na maioria dos casos décadas, mediante a apresentação de uma diversidade de recursos — sem contar a possibilidade de que uma nova ação seja ajuizada com vistas à desconstituição da decisão definitiva formada no processo originário, reabrindo uma discussão que, em tese, já havia sido finalizada (a ação rescisória). A Fazenda Pública é conhecida por se valer de todas as ferramentas processuais existentes (e até inexistentes, haja visto a grande ocorrência de condenações por litigância de má-fé), tudo para postergar, ao máximo, a expedição de precatórios — demonstrando verdadeiro descaso com a abrupta majoração dos valores discutidos ao longo do tempo em razão incidência dos juros de mora invariavelmente impostos nas condenações judiciais, e desprezo com o credor. Entenda-se, cidadão brasileiro que sofreu a lesão a anos e anos… Ou seus herdeiros e sucessores.

Na tentativa de incentivar a solução consensual de litígios judiciais contra a Fazenda Pública, trazendo racionalidade econômica e celeridade às demandas cujo caminho natural é a expedição de precatórios, e atento à realidade do país, afetada pela pandemia do novo coronavírus, o deputado Marcelo Ramos apresentou ao Congresso Nacional projeto de lei que, aprovado, culminou na promulgação da Lei 14.057/2020. Como acertadamente retrata o deputado, o diploma "prevê a possibilidade de acordos, com reduções e alongamento de prazo, o que atende aos interesses do Brasil, sem violar o direito dos cidadãos". O artigo 2º, parágrafo 1º, estabelece que os acordos podem ser firmados mesmo após o trânsito em julgado, desde que o precatório não tenha sido integralmente pago. O artigo 2º, parágrafo 3º, estabelece que o desconto pode ir até 40% e para prevenir que cheguemos a uma situação extremada, o artigo 3º, parágrafo 1º, I, alínea "'a", possibilita "(…) Até oito parcelas em casos em que o precatório ainda não tenha sido requisitado, ou seja, permite o alongamento destas dívidas em oito anos — prazo mais que suficiente para equilibrar as contas de curto prazo e atravessar o momento de crise, sem violação de direitos constitucionais".

A referida lei, inclusive, trata expressamente da matéria do Fundef, permitindo que tais precatórios sejam objeto de acordo, assegurando que os repasses obedeçam à destinação originária atinente à educação: "Os repasses de que trata o caput deste artigo deverão obedecer à destinação originária, inclusive para fins de garantir pelo menos 60% (sessenta por cento) do seu montante para os profissionais do magistério ativos, inativos e pensionistas do ente público credor, na forma de abono, sem que haja incorporação à remuneração dos referidos servidores" (artigo 7º, parágrafo único).

Na mesma linha manifestou-se o Supremo Tribunal Federal nesta sexta-feira (30/7), reiterando a necessidade de pagamento dos precatórios, e indicando que a única alternativa legítima, e constitucional, para a gestão das dívidas judiciais e pagamentos de precatórios está previsto no artigo 100, parágrafo 20, da Constituição, que veio agora a ser regulamentado pela Lei 14.057/2020.

A exposição de motivos trazida no texto expressa o que se espera de um poder efetivamente republicano e democrático:

“É de todos conhecida a situação de emergência em saúde pública de importância internacional atualmente vivida pelo País, em decorrência da pandemia do coronavírus (COVID-19).
O enfrentamento a tal situação excepcional, segundo noticiou recentemente o ministro da Economia, Sr. Paulo Guedes, poderá custar aos cofres públicos o equivalente a R$ 800 bilhões, a serem potencialmente desembolsados nos próximos três meses. Tal circunstância, por óbvio, impactará severamente os orçamentos deste exercício e dos próximos, considerando-se inclusive e especialmente a necessidade de endividamento pela União. Por essa razão, verifica-se relevante esforço legislativo dessa Casa, em diversas medidas propostas (e algumas delas já aprovadas) com o intuito de disciplinar o uso de recursos públicos durante a pandemia, bem como de minimizar o seu impacto negativo nas contas públicas dos próximos anos…. Assim, considerando-se a iminente disponibilidade econômica de recursos vinculados aos precatórios e sentenças judiciais, bem como da ausência de regulamentação dos acordos envolvendo precatórios de grande valor, justifica-se o presente Projeto…
Situação similar se dá com o enorme volume de ações judiciais contra a Fazenda Pública já transitadas em julgado em favor dos particulares. Em tais casos, verifica-se que a União já se consolidou enquanto devedora, restando, na fase executiva do processo, discutir apenas quanto será pago e quando será expedido o precatório. Em muitas situações, pequenas divergências de valor entre as partes arrastam o processo por anos a fio, somando-se às condenações correção monetária e juros de mora, que aumentam substancialmente os montantes devidos.
Os acordos previstos em relação a tais casos
que, a despeito de ainda não terem sido convertidos em precatórios, muito provavelmente o serão no futuro não apenas possibilitam a destinação, já no próximo exercício, de relevantes montantes ao pagamento das dívidas incorridas no enfrentamento do coronavírus, como também resultarão em significativa redução dos litígios envolvendo a Fazenda Pública, desafogando o Poder Judiciário e permitindo uma defesa técnica mais eficiente de maior qualidade pelos advogados públicos. O mesmo ocorrerá com ações judiciais que, a despeito de não transitadas em julgado, provavelmente terão desfecho favorável ao particular, em função de reiterada jurisprudência já formada pelos Tribunais.
Em resumo, este Projeto de Lei tem por escopo permitir que a União faça uma melhor gestão de suas dívidas judiciais que, conforme se pode ver do gráfico abaixo, tem crescido anualmente:

Reprodução

Vale frisar, contudo, que o texto proposto pretende atingir tal objetivo de melhorar a gestão de gastos sem impor ao particular uma solução principesca, de cima para baixo. Preza-se, aqui, por estimular uma saída consensual entre a União e seus credores como a melhor e mais democrática alternativa para se lidar com o dispêndio relacionado aos precatórios federais.
A União, em respeito ao princípio da separação de poderes, mais notadamente em respeito ao Poder Judiciário, sempre honrou com o pagamento dos precatórios federais. Qualquer medida impositiva, que possa ser entendida como um abalo à condição de boa pagadora da União, certamente será perniciosa ao Tesouro Nacional, na medida em que impactará o chamado Risco-Brasil. A alternativa que aqui apresentamos, pelo contrário, privilegia o acordo entre União e seus credores, de forma séria, democrática e transparente.
Sabedores da importância do presente Projeto de Lei para a superação da situação de emergência em saúde pública decorrente da pandemia do coronavírus, e cientes de que a presente medida contribuirá ainda para o desafogamento do Poder Judiciário e para o exercício mais célere e eficiente da Justiça, conclamamos os nossos pares a garantir a aprovação desta proposição".

Compreende-se post do deputado em seu Twitter nesta sexta-feira, quando diz ser "impressionante que o ministro da Economia se mostre surpreendido com tema antigo, cotidiano e devido constitucionalmente, e que não tenha atentado para as possibilidades de negociação a partir da lei… (…) A fala tem conotação autoritária, pouco informada, com claro objetivo populista, quando o Brasil, os credores, o Congresso e o Judiciário não toleram mais calotes – PECs para parcelar os débitos unilateralmente. Gestão de dívida judicial do governo pode e deve ser realizada de forma democrática, mediantes acordos, previstos na Lei 14.057/2020".

Após todo o esforço da Câmara e a aprovação do texto em regime de urgência, o ministro Guedes opta por outro caminho. Despreza a democracia, pressiona o Congresso, desrespeita o Judiciário e parte para a via do calote ao credor, ao brasileiro. A incapacidade de tramitar reformas adequadas, realizar uma gestão pública com um mínimo de eficiência, combater o inimigo verdadeiro (o coronavirus), o ministro Guedes traz como solução proposta um "míssil". Míssil na democracia, na imagem do país perante o mundo, e na esperança do povo brasileiro. O Brasil não tolera mais este tipo de solução. É hora de um basta.

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