Consultor Jurídico

Opinião: Sobre o uso de câmeras nos imóveis em plataformas virtuais

30 de julho de 2021, 18h19

Por Luis Felipe Salomão, Caroline Somesom Tauk

imprimir

1) Introdução
Em 2017, na Flórida, nos Estados Unidos, um casal alugou um apartamento usando a plataforma do Airbnb e encontrou, no quarto, uma câmera escondida que armazenada as gravações em um cartão de memória [1].

Spacca
Em 2018, no Brasil, usando a mesma plataforma para reservar um estúdio, um casal encontrou uma câmera escondida que gravava a área do quarto e transmitia as imagens em tempo real [2].

Duas histórias em dois países. Em comum, a utilização de bens e serviços prestados no ambiente da chamada economia de compartilhamento e questões relacionadas à privacidade.

Situações como estas vêm se repetindo ao redor do mundo [3] e poderiam acontecer em quaisquer dos mais de 190 países em que esse tipo de plataforma está disponível.

O que ocorre, em verdade? São apenas experiências negativas? Ou há graves ilícitos civis e criminais?

O objetivo deste breve texto é buscar responder a estas perguntas.

Outrossim, é bem de ver que o presente estudo trata de discussão bem diversa daquela apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça em recente julgado (REsp 1.819.075/RS), que cuidou da natureza jurídica da atividade de cessão de imóvel intermediada por plataformas digitais e analisou se condomínios residenciais poderiam impedir que os proprietários nelas disponibilizassem seus imóveis [4].

2) A economia de compartilhamento e a criatividade empresarial
O modelo de negócio praticado, por exemplo, pela plataforma do Airbnb se insere na chamada economia colaborativa, economia da confiança ou economia de compartilhamento (sharing economy, na literatura estrangeira).

A convergência de crises econômicas, da revolução da tecnologia da informação e de crescentes preocupações com recursos ambientais impulsionou atividades baseadas em novas formas de acesso e utilização de bens e serviços, coordenadas por meio de plataformas online [5].

Na Segunda Revolução Industrial, que se estende por todo o século 20, a concentração de recursos de forma hierarquizada era vista como um sinal de eficiência econômica. Todavia, no século 21, a internet e o avanço da inteligência artificial abrem espaço para um processo cooperativo e descentralizado de gestão e oferta de bens e serviços comuns, dando origem a um modelo econômico que vem se mostrando mais eficiente que o anterior [6].

Não é difícil entender os motivos.

Primeiro, o compartilhamento de informações por meio da internet não se sujeita a limites de espaço e tempo e é acessível a todos, em qualquer lugar do mundo, de forma assíncrona, o que tornou, pela primeira vez, o custo marginal da informação quase zero. A internet e a tecnologia digital facilitaram antigas formas de compartilhamento de informações e introduziram outras novas, criando uma mudança profunda no comportamento das pessoas e na dinâmica de mercado, pavimentando o caminho para a chamada Revolução Digital [7]. Um exemplo simples, porém importante, foi o Napster, um serviço de streaming de música criado em 1999 que permitia o compartilhamento de arquivos em rede, por meio do download, pelos usuários, de um determinado arquivo diretamente do computador de outros usuários de maneira descentralizada [8]. Após diversos processos judiciais, a empresa encerrou suas atividades em 2001, perdendo a batalha judicial travada com a indústria fonográfica dos Estados Unidos [9]. O padrão de consumo de música por meio de CDs, no entanto, nunca mais foi o mesmo.

Segundo, a inovação tecnológica iniciada no ambiente da música e da cultura em geral logo se espalha para a atividade comercial e industrial e gera, então, uma reestruturação na organização econômica e social. Novas estruturas colaborativas e modelos de negócios incorporam consumidores como co-produtores ativos no processo de criação de valor no mercado [10]. Exemplo dessa cooperação social unida à tecnologia digital ocorre no fornecimento de bens e serviços usando seus próprios carros e casas, como feito por Uber e Airbnb, conhecidos por todos.

Terceiro, para que essas relações entre estranhos produzam bons resultados, é preciso que estejam baseadas na confiança. Por isso, o uso constante da classificação do cliente feita nas plataformas digitais desempenha um papel fundamental nas transações feitas por meio da internet. É que "pegar uma carona" ou dormir na residência de um desconhecido exige uma cooperação social diversa da existente em situações em que usamos um taxi ou um hotel [11].

As mudanças descritas acima são resumidas por Ricardo Abramovay ao identificar três transformações teóricas que marcam a sociedade contemporânea, decorrentes da atuação em conjunto da colaboração social com as tecnologias digitais: a oferta descentralizada de bens e serviços, os menores custos de transação e o surgimento de uma economia baseada na confiança existente nas relações interpessoais [12].

3) A noção dinâmica do direito à privacidade
Na sua origem, como fica claro na publicação de Warren e Brandeis, norte-americanos que, em 1890, defenderam a construção jurídica do "direito de ser deixado só" (right to be alone[13], o conceito de privacidade apresentava dimensão individualista, vista como o direito ao isolamento individual, de ter a sua vida íntima resguardada em relação à esfera pública.

Essa concepção se explica, na lição do italiano Stefano Rodotá, pelas circunstâncias do nascimento da privacidade, associada à desagregação da sociedade feudal e ao desenvolvimento da sociedade burguesa na segunda metade do século 19, que reunia condições materiais que permitia a esta satisfazer o desejo de separação da vida privada da vida em comunidade, mantendo excluída a classe operária neste primeiro momento.

As transformações na sociedade impostas pelas tecnologias da informação e a importância que ganhou a discussão sobre a circulação e o controle de informações pessoais implicaram em uma redefinição do conceito. A compreensão do direito de privacidade, além de se referir ao "direito de estar só"  que tem um aspecto essencial e continua sendo aplicado para impedir o acesso a informações que refletem a clássica necessidade de sigilo, como as relacionadas à saúde ou a hábitos sexuais , passa a incluir também o "direito de manter o controle sobre as próprias informações", nas palavras de Rodotá [14].

É que a tecnologia faz a esfera privada exposta a contínuas ameaças, o que tornou necessária uma ampliação da definição de privacidade, para que outras categorias de informações recebessem proteção jurídica, em especial aquelas que têm o potencial de serem usadas para finalidades discriminatórias.

Não por acaso, as legislações de proteção de dados, a exemplo da Lei Geral de Proteção de Dados brasileira (Lei 13.709/2018, artigo 5º, inciso II), conferem proteção reforçada a informações sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa e opinião política ao considerá-las dados pessoais sensíveis.

As tecnologias digitais permitem a vendedores e fornecedores de serviços, assim como a órgãos públicos, a aquisição de uma diversidade de informações pessoais, desde hábitos de consumo a orientações políticas, criando uma estrutura que permite a vigilância sobre os usuários e cidadãos [15].

A vigilância por meio de câmeras de vídeo, disseminadas em espaços públicos e privados, aparece como mais uma forma de expressão do controle sobre comportamentos inadequados ou ilícitos. Seu uso deve ser avaliado, portanto, à luz dos riscos que oferece à privacidade.

4) Segurança, vigilância e câmeras no interior das acomodações
As plataformas de locações digitais estabelecem padrões para ajudar a direcionar o comportamento de anfitriões e hóspedes/locatários.

Apenas como exemplo, estabelece o Airbnb que "câmeras não são permitidas na sua acomodação, a não ser que sua presença tenha sido informada previamente e que elas estejam visíveis; a presença de câmeras é proibida em espaços privados (como banheiros ou quartos de dormir)" [16].

É preciso preservar a inafastável importância do direito à privacidade dos ocupantes do imóvel, como realização da dignidade da pessoa humana.

No entanto, é bem verdade que, se devem ser garantidos os direitos fundamentais dos hóspedes/locatários, não é menos relevante que o proprietário tem alicerçado na Constituição Federal seu direito de propriedade e os instrumentos para sua defesa, lembrando que referido direito deve ser exercido de modo a cumprir sua função social (artigo 5º, incisos XXII e XXIII).

Há, portanto, diante da colisão de direitos fundamentais, necessidade de se fazer a ponderação para se chegar a um resultado constitucionalmente adequado, por meio da atribuição geral de pesos às normas em conflito [17].

Sob esse pano de fundo, as medidas de defesa do patrimônio, por meio da instalação de câmeras, serão consideradas lícitas se forem indispensáveis e adequadas para a finalidade pretendida e se sua adoção se fizer pelo meio menos gravoso possível para os direitos de terceiros. É dizer: devem observar o princípio proporcionalidade [18].

Considerando os interesses em conflito, a privacidade dos ocupantes, de um lado, e o direito de propriedade e segurança do proprietário do outro, a instalação de: 1) câmeras visíveis; 2) com consentimento prévio dos ocupantes; e 3) fora de áreas de intimidade da acomodação (quartos de dormir e banheiros), causa uma interferência aceitável no direito à privacidade, em razão do modo como é exercida a vigilância, e possui maior peso relativo do que os interesses dos ocupantes do imóvel.

Violados esses requisitos, pensamos que há ilícito civil, sujeito à reparação do dano.

Imagine a situação em que a utilização das câmeras de vídeo foge dos padrões e requisitos previstos nos itens 1, 2 e 3 acima: referimo-nos às câmeras escondidas, em qualquer cômodo do imóvel, ainda que em áreas de não intimidade, assim como às câmeras visíveis, cuja presença não é informada aos ocupantes ou instalada nos locais reservados à intimidade.

Nesse caso, possui maior peso o direito à privacidade dos ocupantes do imóvel, já que merecem preferência os valores existenciais em detrimento dos meramente patrimoniais. 

5) A repercussão criminal da violação da privacidade
No caso narrado na introdução deste texto, relembrando o casal que, após celebrar negócio por intermédio de plataforma de locação, encontrou uma câmera escondida que gravava o ambiente do quarto, temos que, à época, a conduta de filmar o interior de um imóvel para captar imagens íntimas, sem o consentimento dos ocupantes, embora configurasse evidente ilícito civil, não configurava ilícito penal, por ausência de previsão legal [19].

Casos como esse ensejaram a criação do tipo penal do artigo 216-B (registro não autorizado da intimidade sexual), inserido em dezembro de 2018 nos crimes contra a dignidade sexual no Código Penal, vindo a preencher a lacuna que havia. Confira-se:

"Artigo 216-B  Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa".

Nas situações que estamos analisando, o sujeito ativo, em geral, será o proprietário, quem detém a posse ou é responsável por cuidar do imóvel e o disponibiliza na plataforma virtual. Por sua vez, o sujeito passivo é o locatário ou o hóspede do imóvel, assim como todos aqueles que tiveram sua privacidade violada no ambiente filmado, ainda que não figurem no contrato celebrado por intermédio da plataforma. É o caso, por exemplo, de eventuais visitantes do hóspede que tenham passado a noite na acomodação e suas cenas de intimidade filmadas.

É relevante um esclarecimento com relação às condutas punidas. Em atenção ao princípio da fragmentariedade, o legislador não incluiu no tipo penal do artigo 216-B as situações em que não há cenas de nudez, ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado. Dessa forma, se não forem captadas as referidas cenas, a conduta de filmar terceiros no interior do imóvel, ainda que usando câmeras escondidas ou sem o consentimento, não configura o tipo penal do artigo 216-B, sob pena de violar o princípio da legalidade (artigo 1º do CP), remanescendo apenas o ilícito civil.

Com relação aos elementos subjetivos, o tipo penal é doloso, exigindo a consciência e vontade do responsável pelo imóvel de praticar as condutas.

A consumação está condicionada ao evento naturalístico, ou seja, à ocorrência de uma das ações típicas, as quais admitem tentativa. Por exemplo, se o casal que citamos no início deste tópico tivesse percebido o uso da câmera escondida antes que fossem feitas as filmagens das cenas de intimidade e paralisassem a gravação, haveria tentativa. Por fim, a divulgação das cenas é indiferente para a consumação, podendo configurar o crime do artigo 218-C, em concurso material.

6) Conclusão
A admissão do monitoramento por câmeras de vídeo no interior de imóveis disponibilizados em plataformas virtuais afirma-se como uma estratégia constitucionalmente adequada para a acomodação de valores existenciais e patrimoniais, desde que sejam observados os requisitos listados no texto, quais sejam, a instalação de: 1) câmeras visíveis; 2) com consentimento prévio dos ocupantes; e 3) fora de áreas de intimidade da acomodação.

A frequência com que ocorrem episódios envolvendo gravações por câmeras escondidas ou não autorizadas no interior de acomodações, um dos motivos que ensejaram, aliás, a criação da figura típica do artigo 216-B do CP e a previsão de requisitos, pelas próprias plataformas, para a instalação das câmeras, demonstra como a vigilância está presente nos modelos de negócio inseridos na economia de compartilhamento.

Abusos na utilização do monitoramento interferem ilegalmente na esfera privada dos ocupantes do imóvel e podem causar danos irreparáveis, inclusive a sua integridade psíquica.

Curiosa e paradoxalmente, a chamada economia da confiança, que tem como uma de suas marcas a construção de relações entre estranhos baseadas na confiança interpessoal, parece ter seus bons resultados dependentes de um constante monitoramento entre usuários e fornecedores. Reduzir a vigilância praticada por estes modelos de negócio aumentaria a privacidade, no entanto, poderia colocar em risco a eficiência e o sucesso que as plataformas vêm alcançando.

Vigiar as refeições, vigiar o sono, vigiar o lazer… Os problemas relacionados à falta de privacidade que George Orwell apontava no extraordinário livro "1984" podem ter pontos de contato com a realidade atual. "The big brother is watching you", diziam os letreiros e avisos espalhados pela cidade retratada no livro [20].

É, com certeza, tema para futuras reflexões.

 


[1] Casal descobre câmera escondida em apartamento alugado pelo Airbnb. Estadão. 14 jul. 2017. Disponível: [https://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento]. Acesso: 17.03.2021.

[2] FUTEMA, Fabiana. Casal descobre câmera em hospedagem do Airbnb em São Vicente. Veja. 29 jan. 2018. Disponível: [https://veja.abril.com.br/economia/casal-descobre-camera-em-hospedagem-do-airbnb-em-sao-vicente/]. Acesso: 17.03.2021.

[3] Situação similar ocorrida na Irlanda: SILVA, Victor Hugo. Família descobre que estava sendo filmada em Airbnb (e isso é permitido). Tecnoblog. 08 abr 2019. Disponível: [https://tecnoblog.net/285045/familia-camera-escondida-airbnb/]. Acesso: 17.03.2021.

[5] MCAFEE, Andrew; BRYNJOLFSSON, Erik. Race against the machine: how the digital revolution is accelerating innovation, driving productivity, and irreversibly transforming employment and the economy. MIT Sloan School of Management, Jan. 2012. Disponível: [http://digital.mit.edu/research/briefs/brynjolfsson_McAfee_Race_Against_the_Machine.pdf]. Acesso: 17.03.2021.

[6] ABRAMOVAY, Ricardo. A Economia Híbrida do Século XXI, in COSTA, Eliane; AGUSTINI, Gabriela (orgs) De Baixo para Cima. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2014, p. 12. Disponível: [http://ricardoabramovay.com/wp-content/uploads/2015/02/A-Economia-H%C3%ADbrida_do-S%C3%A9culo-XXI_De-Baixo-para-Cima_Abramovay_12_2014.pdf]. Acesso: 17.03.2021.

[7] MCKNIGHT, Lee W; BAILEY, Joseph P. An introduction to internet economics. MIT Press Cambridge, MA, v.1, issue 1&2, Jan. 1995. Disponível: [https://quod.lib.umich.edu/cgi/t/text/idx/j/jep/3336451.0001.123/–introduction-to-interneteconomics?rgn=main;view=fulltext]. Acesso: 17.03.2021.

[8] Disponível: [https://br.napster.com/]. Acesso: 17.03.2021.

[9] LAMONT, Tom. Napster: the day the music was set free. The Guardian, 23 fev. 2013. Disponível: [https://www.theguardian.com/music/2013/feb/24/napster-music-free-file-sharing]. Acesso: 17.03.2021.

[10] SOUZA, Carlos Affonso Pereira de; LEMOS, Ronaldo, op. cit., p. 1760.

[11] WHELAN, Glen. Trust in Surveillance: A Response to Etzioni. Journal of Business Ethics. Jan, 2018, p. 6. Disponível: [https://ssrn.com/abstract=3098908]. Acesso: 17.03.2021.

[12] ABRAMOVAY, Ricardo. Op. cit, p. 4.

[13] WARREN, Samuel D; BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy. Harvard Law Review, vol. 4, no. 5, dec. 1890, pp. 193-220. Disponível: [https://www.cs.cornell.edu/~shmat/courses/cs5436/warren-brandeis.pdf]. Acesso: 17.03.2021.

[14] RODOTÁ, Stefano. Op. cit, p. 92-93.

[15] FILHO, Eduardo Tomasevicius. Em direção a um novo 1984? A tutela da vida privada entre a invasão de privacidade e a privacidade renunciada. R. Fac. Dir. Univ. São Paulo, v. 109, jan./dez. 2014, p. 129 – 169, aqui, p. 149.

[16] Disponível: [https://www.airbnb.com.br/trust/home-safety]. Acesso: 17.03.2021.

[17] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5ª ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2015, p. 374-377.

[18] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 532.

[19] CUNHA, Rogério Sanches. Breves comentários às Leis 13.769/18 (prisão domiciliar), 13.771/18 (Feminicídio) e 13.772/18 (registro não autorizado de nudez ou ato sexual). Disponível em: [https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2018/12/20/breves-comentarios-leis-13-76918-prisao-domiciliar-13-77118-feminicidio-e-13-77218-registro-nao-autorizado-de-nudez-ou-ato-sexual/] Acesso: 17.03.2021.

[20] ORWELL, George. 1984. Trad: Wilson Veloso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1953.