Opinião

A definição do perito judicial pelas partes

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30 de julho de 2021, 9h11

A escolha do perito judicial pelas partes (CPC, artigo 471)
Há um inegável influxo privatista no novo
Código de Processo Civil (CPC). Inúmeras regras foram estabelecidas para amplificar a participação das partes na condução do procedimento: desde uma cláusula geral de negociação processual até a previsão de uma série de convenções processuais típicas ao longo de toda a codificação. Entre as convenções processuais típicas, encarta-se a possibilidade de as partes escolherem consensualmente o perito que será responsável pela elaboração do laudo pericial (CPC, artigo 471).

Pretende-se, neste breve texto, responder a duas indagações que podem surgir a partir dessa convenção processual típica: 1) o magistrado está adstrito às conclusões externadas pelo perito eleito pelas partes em seu trabalho técnico?; 2) não satisfeito com as conclusões apresentadas pelo perito eleito pelas partes, o magistrado pode determinar a produção de uma nova perícia, com base no disposto no artigo 480 do CPC?

Ambas as indagações precisam ser analisadas sob a perspectiva de que o novo CPC buscou amplificar a participação das partes na conformação do procedimento e, com isso, romper com o traço essencialmente publicista do CPC/73. Essa premissa é importante sobretudo para a análise de convenções sobre matéria probatória, impregnada de inúmeras máximas publicistas: "O juiz é o destinatário das provas", "a busca da verdade real legitima a iniciativa probatória do juiz" etc. É preciso conferir efetivo respeito à liberdade de autorregramento das partes, limitando o controle judicial às situações previstas em lei.

O magistrado está adstrito às conclusões externadas pelo perito eleito pelas partes?
Essa primeira indagação possui uma resposta mais objetiva e menos controversa. O próprio diploma processual a resolve, ao prever que o magistrado não está vinculado às conclusões do laudo pericial (CPC, artigos 371 e 479), sem fazer distinções ao laudo produzido pelo perito nomeado pelo magistrado ou pelo perito escolhido pelas partes.

De fato, seja durante a vigência do CPC/73, seja após a promulgação do CPC/15, a jurisprudência e o entendimento doutrinário convergem a respeito da inexistência de vinculação do magistrado ao laudo, sob pena de tornar o perito o verdadeiro responsável pelo julgamento da causa.

Por outro lado, é evidente que a desconsideração das conclusões do perito, sobretudo por envolver matéria essencialmente técnica, deve ser precedida de exaustiva motivação do magistrado, conforme previsto no próprio artigo 479 do CPC/15. Como bem destaca Fredie Didier Jr. [1], "o juiz não pode simplesmente ignorar a perícia produzida; segundo, para desconsiderá-la, deve dizer claramente as razões dessa decisão".

Por sua vez, na hipótese em que o laudo pericial foi produzido por perito indicado pelas partes, o ônus da motivação da decisão judicial recrudesce ainda mais. Afinal, nesses casos específicos, no exercício regular de seu poder negocial, as partes optaram por limitar a iniciativa probatória do magistrado, com a definição de um perito consensual, em contraponto à nomeação de um perito de confiança do juiz. Nesse contexto, não é legítimo que o laudo técnico seja desconsiderado pelo magistrado em decorrência exclusiva da circunstância de ele eventualmente discordar da nomeação do expert pelas partes.

O ônus argumentativo, portanto, revela-se ainda maior, uma vez que deve ser efetivamente demonstrado que a escolha ajustada pelas partes não foi desprezada pelo Estado-juiz.

Não satisfeito com as conclusões apresentadas pelo perito, o magistrado pode determinar a produção de uma nova perícia?
Essa indagação diz respeito à possibilidade (ou não) de o magistrado determinar, inclusive sem requerimento das partes, a produção de uma segunda perícia, com nomeação de um novo perito, com fundamento no artigo 480 do CPC. O dispositivo prevê, de forma genérica, que o "juiz determinará, de ofício ou a requerimento da parte, a realização de nova perícia quando a matéria não estiver suficientemente esclarecida".

A reposta a essa indagação, contudo, relaciona-se com a análise de dois aspectos essenciais: 1) a finalidade da prova produzidas nos autos e o seu respetivo destinatário; e 2) a necessidade de observância da vontade das partes no âmbito da nova legislação processual.

1) A finalidade da prova e a posição do magistrado enquanto condutor da instrução probatória: qual é a finalidade da prova no processo civil? Prevalecia, majoritariamente, durante a vigência do CPC/73, o entendimento de que a finalidade da prova era promover o livre convencimento motivado do magistrado. Entendia-se que os poderes instrutórios conferidos ao juiz deviam ser amplos e quase ilimitados, com vistas a atender ao escopo social e político da jurisdição.

O juiz podia apreciar livremente a prova dos autos; determinar, independentemente de requerimento das partes, a produção de qualquer prova que reputasse necessária, além de afastar eventuais requerimentos de prova irrelevantes ao seu convencimento. Trata-se de uma visão do processo civil de inegável feição publicista, centrada na figura do magistrado enquanto protagonista da relação jurídico-processual, responsável por buscar, por conta própria, a verdade real sobre os fatos da lide.

No novo diploma processual, que possui diversas e esparsas disposições que outorgam às partes uma maior integração e condução do procedimento, esse entendimento não pode mais ter espaço. O juiz permanece sendo, naturalmente, destinatário das provas dos autos, mas não o único, nem, tampouco, reúne todas as iniciativas probatórias disponíveis.

A prova também serve para dar às partes elementos acerca da viabilidade do direito deduzido judicialmente ou, até mesmo, para possibilitar a definição de estratégias  isto é, possibilitar às partes agir de maneira informada dentro e fora do processo. Não por outra razão, aliás, o artigo 371 do CPC/15, em silêncio proposital, retirou o advérbio livremente antes previsto no artigo 131 do CPC/73.

2) A necessidade de observância da manifestação de vontade das partes e a liberdade convencional: deve-se analisar, também, a própria dicção do artigo 471 do CPC. De acordo com o parágrafo terceiro do mencionado dispositivo, a "a perícia consensual substitui, para todos os efeitos, a que seria realizada por perito nomeado pelo juiz". Em outras palavras, para todos os efeitos, o laudo pericial elaborado pelo perito consensual deverá ter mesma força probante daquele que seria realizado por perito escolhido pelo juiz.

Desse modo, embora o artigo 480 do CPC autorize ao juiz, inclusive de ofício, a designação de uma nova perícia, com nomeação de um novo perito, essa prerrogativa deve ser limitada nos casos em que o primeiro laudo foi elaborado por perito designado pelas partes. Afinal, as partes, amplamente cientes das regras de distribuição regular do ônus probatório, optaram por estabelecer o profissional responsável pela produção do laudo técnico a ser apresentado nos autos.

As partes possuem expectativa legítima, pois assegurada pela própria legislação, de que o laudo elaborado pelo mencionado perito será utilizado como elemento probatório para prolação de sentença, com a mesma força probatória e substituindo o trabalho pericial que seria produzido pelo perito nomeado pelo juiz. Possuem legítima expectativa de que as conclusões externadas pelo perito consensual não serão desprezadas em prol de premissa adotadas por outro perito.

Pode-se sustentar, por outro lado, que a limitação da iniciativa probatória do magistrado afetaria negativamente a busca da denominada verdade real, o que não se coadunaria com os escopos políticos e sociais da jurisdição. Não se pode simplesmente desconsiderar, contudo, mormente após autorização expressa do ornamento jurídico, a manifestação de vontade externada pelas partes e a existência de uma liberdade convencional. A nova legislação processual, ao prever inúmeras disposições que possibilitam uma maior interação das partes na condução do procedimento, além de consagrar uma cláusula geral de convenções processuais atípicas, denota uma opção sistemática de conformação do ordenamento à liberdade convencional das partes, inclusive de uma validez apriorística dos acordos processuais [2].

Como assinala Antonio Cabral [3], "havendo margem de liberdade para conformação do procedimento pelas partes, e em se verificando efetiva atuação voluntária dos litigantes, o Estado não pode sobre eles se sobrepor". Nesse contexto, a resposta à indagação elencada acima (a possibilidade de determinação de uma segunda perícia, com nomeação de um segundo perito por parte do juiz) é negativa. A liberdade das partes, de acordo com a conformação estabelecida pelo ordenamento jurídico-processual, deve prevalecer sobre os poderes instrutórios gerais ao magistrado, relegando-se eventual insuficiência probatória à aplicabilidade das regras de distribuição do ônus da prova. A possiblidade de uma nova perícia avaliada exclusivamente pelo magistrado, com nomeação de um novo perito, esvaziaria inteiramente a incidência e a própria ratio legis do artigo 471 do CPC.

Até porque, conquanto não esteja vinculado ao resultado do trabalho pericial, o juiz está vinculado, por outro lado, à norma convencional ajustada entre as partes, que possui o condão de derrogar a norma legislada. Do contrário, não haveria razão para as partes acordarem, previamente, questões relacionadas ao processo, tal qual a definição do perito, caso não houvesse mínima segurança com relação à incidência concreta e efetiva da convenção processual.

Não vislumbramos óbice, por outro lado, na hipótese em que o laudo técnico se revelar efetivamente inconclusivo, que o magistrado determine às partes que definam um novo perito consensual para elaboração de um segundo trabalho pericial. Parece-nos, contudo, que também aí prevalecerá a livre manifestação das partes acerca da necessidade ou não de produção de uma segunda perícia. Isto é, as partes poderão optar, ainda assim, pela manutenção apenas do primeiro laudo pericial, com a sentença resolvendo-se de acordo com a aplicabilidade das regras de distribuição do ônus probatório.

Em sentido contrário, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Arenhart não apenas admitem a possibilidade, inclusive ex officio, de designação de uma segunda perícia pelo magistrado, com nomeação de um novo perito, como também consideram possível ao juiz "afastar essa eleição das partes e valer-se de prova pericial comum" [4].

O posicionamento adotado se baseia em premissas centrais distintas daquelas utilizados neste artigo, mais especificamente: 1) a inexistência de vinculação do magistrado a "um 'negócio processual' do qual não participou e que pode comprometer a sua atividade"; 2) a concepção de que o juiz seria o único destinatário da prova produzida nos autos, de modo que "pode, em reputando inadequado esse contrato processual, afastar as suas consequências e nomear outro profissional".

No entanto, além de possibilitar uma maior participação das partes no procedimento e na própria instrução probatória, o novo diploma processual prevê a eficácia imediata das convenções processuais, que implicam na derrogação da norma legislada em favor da norma convencional.

As partes não podem, naturalmente, celebrar convenção processual sobre situações jurídicas de terceiros (incluindo o magistrado), diante do princípio da relatividade dos contratos. Não é legitimo às partes convencionarem sobre as prerrogativas do juiz, como, por exemplo, com o estabelecimento de horário em que será realizada eventual audiência, uma vez que, nessa hipótese, haveria interferência direta nas atividades cartorárias, na agenda do juiz etc.

Mas essa, na nossa visão, não é a hipótese aqui discutida. Não há dúvida de que a eleição consensual do perito gera efeitos sobre a atuação do juiz, na medida que terá o condão de influir na formação do seu convencimento. Mas a opção do legislador, por ocasião da edição do novo CPC, foi a de excluir da atividade exclusiva do juiz a prerrogativa de nomear o perito que atuará na causa. Ao elegerem o perito, portanto, as partes não interferem diretamente em nenhuma prerrogativa exclusiva do juiz, mas, na verdade, exercem uma prerrogativa que lhe foi assegurada expressamente pelo legislador. Nesse caso, os poderes do juiz, inclusive probatórios, estão subordinados e limitados ao agir das partes.

Por isso, mesmo adotando-se a posição de que o magistrado não é parte da convenção processual, "o juiz se vincula porque tem o dever de aplicar a norma convencional, seja quando a regra do acordo conformar o procedimento, seja para dar cumprimento à avença nos casos em que outros sujeitos tiverem que adimplir. Afinal, no Estado de Direito (rule of law), não é só a norma legislada que deve ser aplicada pelo juiz, mas também a norma convencional definida no limite da autonomia privada"  [5].

Conclusão
Eis, então, as repostas às duas indagações formuladas neste artigo: 1) o magistrado não está adstrito às conclusões do perito designado pelas partes (artigos 371 e 479 do CPC); no entanto, o afastamento das conclusões do perito eleito pelas partes impõe ao magistrado um ônus argumentativo maior do que o afastamento das conclusões do perito designado pelo juiz; 2) o magistrado não pode determinar a produção de uma segunda perícia pela simples razão de discordar das conclusões apresentadas pelo perito eleito pelas partes ou da própria indicação do profissional; eventual insuficiência ou imprestabilidade do laudo deve ser suprida pelos demais elementos probatórios existentes nos autos, à luz da regra de distribuição do encargo probatório.

 

Referências bibliográficas
CABRAL. Antonio do Passo. Convenções Processuais. 2a Ed. Salvador: Juspodivm. 2018.

DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 17a ed. Salvador: Juspodivm. Vol. I, 2015, p. 134/135.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. 2a Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 27/28.


[1] DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. II. Salvador: Juspodvm. 2016, p. 289

[2] CABRAL, Antonio do Passo. Convenções Processuais. 2a Ed. Salvador: Juspodivm. 2018, p. 163.

[3] CABRAL, Antonio do Passo. Convenções Processuais. 2a Ed. Salvador: Juspodivm. 2018, p. 162.

[4] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. 2a Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 27/28.

[5] CABRAL, Antonio do Passo. Convenções Processuais. 2a Ed. Salvador: Juspodivm. 2018, p. 256.

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