Opinião

O que a conciliação pode ensinar à reforma tributária?

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30 de julho de 2021, 7h14

Neste momento em que parece engrenar no país uma discussão consistente sobre a legislação tributária, é válido buscar inspiração em instrumentos que trazem bons resultados para enriquecer o debate. É o caso da transação, uma forma de resolução alternativa de litígios entre poder público e empresas, tendo como característica marcante a simplicidade a eficiência.

No Rio Grande do Sul, é prática recorrente pela Procuradoria-Geral do Estado (PGE-RS) desde 2009, estando prevista desde 2015 na Lei 14.794, que instituiu o Sistema Administrativo de Conciliação e Mediação, além das diversas portarias e resoluções da PGE-RS nesse período. Depois de mais de uma década, esse instrumento representa, segundo dados da PGE-RS, 78% do total de parcelamentos ativos no estado, a maior parte deles referente ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). De R$ 1,8 bilhão de recolhimentos negociados entre empresas e poder público, R$ 1,4 bilhão deve entrar no Tesouro por meio de transações tributárias.

Ou seja, esse instrumento mudou completamente a sistemática da recuperação de passivos fiscais do estado, e já é hoje a principal fonte de arrecadação da dívida ativa do Rio Grande do Sul. Qual a razão do seu sucesso? Ora, trata-se de uma ferramenta inovadora capaz de contemplar, de forma eficiente, as limitações e necessidades dos atores envolvidos. A criação da transação é resultado da iniciativa de profissionais competentes e de contribuintes dispostos a buscar soluções criativas que viabilizem a atividade econômica e, ao mesmo tempo, assegurem a regularidade fiscal.

A importância da transação não se limita a uma exceção bem-vinda, aplicada na impossibilidade de cobrar o crédito tributário pelas vias ordinárias, mas representa, sim, um avanço político que se estabelece cada vez mais fortemente na conjuntura atual. Com uma escolha muito mais bem estruturada de palavras, o procurador da Fazenda Nacional João Aurino de Melo Filho resume:

"A Administração Pública moderna abandonou a antiga diretriz autoritária e autônoma, adotando uma postura aberta e participativa, no âmbito da qual o administrado é compreendido como portador de direitos que deverão ser, também administrativamente, resguardados. A postura mais democrática da Administração, mais preocupada com interesses legítimos, ainda que individuais, dos administrados, ampliou-se para garantir a participação deles, não apenas como seus auxiliares, mas como partes ativas e relevantes da construção do ato administrativo" [1].

Pode parecer, a princípio, que a orientação institucionalizada da transação contraria, de alguma forma, o dever do Estado de cobrar a dívida ativa, de utilizar as prerrogativas conferidas pela legislação para atuar coercitivamente no patrimônio do devedor, mas pelo contrário, a transação serve como ferramenta muito mais eficaz e ajustada para dar seguimento na cobrança, identificado um cenário específico de desencaixe da forma de pagamento à situação econômico-financeira do contribuinte.

Por todo óbvio que não há motivo para supor de antemão que os princípios satisfatórios para a estrutura básica da transação se mantenham em todos os casos, mas também não é tarefa árdua identificar os casos em que o instituto se aplica com mais eficiência. Veja-se, inicialmente, se a simulação, por exemplo, de qualquer parcelamento ordinário resulta numa parcela maior do que o resultado que o negócio gera, já estamos, em princípio, diante de um cenário onde a transação individual terá muito mais desempenho do que o litígio e a cobrança ostensiva.

É preciso encontrar uma concepção razoável de estrutura básica e mínima para compor o pagamento do crédito tributário num sistema de parceria controlável, diante do qual os problemas restantes da regularidade tributária se revelarão administráveis. Controlável porque o Estado precisa determinar a agenda das prioridades a partir das quais o negócio é gerido. Veja, quando uma empresa acumula relevante passivo de ICMS, mais do que um ato isolado isso representa um sintoma de problemas financeiros muito mais graves. E muito provavelmente o Estado é só mais um dos credores. Cotejar essas informações e projetar as consequências do engessamento da atividade empresarial é tarefa indispensável para o sucesso de qualquer planejamento de cobrança.

A intolerância institucionalizada sobre devedores, mesmo que os chamados "contumazes", conduz inevitavelmente a um ceticismo sobre a neutralidade do Estado frente ao escopo de sua atuação. Obviamente que a missão das procuradorias não é das mais fáceis.

Pois é fato que existem contribuintes com velado ou expresso objetivo de evitar o cumprimento das obrigações tributárias, mas também existem aqueles, em muito maior número, reféns das circunstâncias econômicas e com forte desejo de manter ou conquistar a regularidade fiscal. Para estes, fica o desafio de demonstrar que o passado é imutável, e a postura adotada só pode ser vista como uma fotografia, fixa, e que acarretou num passivo cujo pagamento será uma penalidade cruel e implacável, mesmo que facilitada. E que essa fotografia não representa um comportamento futuro nem, tampouco, um atributo atuante da "personalidade" da empresa. Que como instituição, ela possui diversos potenciais inatos, peculiaridades que precisam de estímulos externos para se tornarem, então, atuantes.

E o passado recente nos mostra a importância de atitudes ativas nesse sentido. Existem diversos casos tratados no estado do Rio Grande do Sul em que uma interpretação mais rigorosa e conservadora foi preterida com base nos princípios elencados, gerando enormes benefícios para empresas que não tinham como acessar nenhuma outra forma de parcelamento. São casos que seriam rechaçados sob o prisma de regulamentos mais antigos, já extintos, utilizados outrora pela Procuradoria-Geral do Estado.

Se o Estado sobrevive basicamente dos impostos, depende, portanto, do desempenho das empresas e de sua capacidade de pagamento. Quando as regras ordinariamente aplicadas não geram resultados, é preciso encontrar soluções para tornar a cobrança efetiva sem aniquilar a fonte de pagamento. Esse é um princípio que pode ajudar ainda mais a legislação tributária brasileira a avançar.

 

[1] Racionalidade Legislativa do Processo Tributário. 2018. Página 581.

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