Opinião

A evolução do posicionamento do Judiciário em relação à saúde suplementar

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30 de julho de 2021, 15h05

A sistemática da saúde suplementar no país é uma grande inconstância quando nos referimos às decisões judiciais. Não é raro nos depararmos com decisões conflitantes acerca da mesma temática.

Não obstante o crescimento da judicialização, é evidente a evolução das decisões judiciais embasadas nas normas de regência e contratos entabulados entre as partes. Ainda que possamos citar esse desenvolvimento, falta muito para se alcançar a segurança jurídica entabulada nas respectivas normas criadas e vigentes que regem a saúde suplementar.

Diante disso, a busca pela equidade das decisões — em consideração, por óbvio, ao livre convencimento do magistrado — há medidas que necessitam ser disseminadas para que o Poder Judiciário possa levar em consideração não apenas e, principalmente, as disposições da Constituição e do Código de Defesa do Consumidor, mas também um maior conhecimento da legislação e regulamentos da Agência Nacional de Saúde (ANS), autarquia instituída por lei federal para normatizar e fiscalizar o setor, através da Lei 9.961, de 28/1/2000.

A ocorrência dessa evolução se dá em decorrência da divulgação de eventos, debates jurídicos com os magistrados, orientações do próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre outros, os quais iremos nos debruçar mais adiante, como medida de solução para tornar o sistema mais equânime, prevalecendo a finalidade econômico-financeira do contrato, evitando, com isso, a falência do setor.

A busca pela saúde é difundida como o "direito de todos e dever do estado", regra insculpida no artigo 196, da CF/88, porém, na saúde suplementar, como o nome já diz, o objetivo é trazer uma demanda que acrescente a prestação de serviços à saúde com base em normativos que o regem, disciplinando os direitos e deveres dos consumidores que firmaram a relação jurídica com sua respectiva operadora. Com isso, entrega ao beneficiário uma prestação de serviços de qualidade.

Por outro lado, a ausência de conhecimento específico induz ao magistrado que a aplicação do Código de Defesa do Consumidor deve ser utilizada por haver uma suposta abusividade do contrato que coloque o consumidor em desvantagem excessiva, ou que restrinjam as obrigações fundamentais ameaçando o equilíbrio contratual. Contudo, não é observado o sistema normativo da saúde suplementar em sua essência.

Desse modo, não pode o magistrado confundir às normas, visto que a Lei 9.656/98 foi instituída para normatizar a saúde suplementar, estabelecendo direitos e deveres das operadoras de planos de saúde e de seus beneficiários. Trata-se, portanto, de lei especial acerca dessa temática. Nesse sentido, conforme os ensinamentos do jurista Flávio Tartuce [1], havendo antinomia, válidas e emanadas pela autoridade competente, os critérios da especialidade, cronológico e hierárquico devem prevalecer, ao passo que favorece a aplicação da Lei de Planos de Saúde. Inclusive, é o que nos ensina a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 1.733.013 PR, sendo importante destacarmos os trechos em questão:

"Em vista dos mencionados dispositivos especiais de regência do microssistema da saúde suplementar, como regra basilar de hermenêutica, no confronto entre as regras específicas e as demais do ordenamento jurídico, deve prevalecer a regra excepcional.
(…)
Dessa maneira, penso que, a par de o rol da ANS ser solução concebida pelo próprio legislador para harmonização da relação contratual buscada nas relações consumeristas, também não caberia a aplicação insulada do CDC alheia às normas específicas inerentes à relação contratual, como, aliás, estabelece o artigo 35-G da Lei dos Planos e Seguros de Saúde(grifo do autor).

Um dos principais objetos da judicialização é a discussão sobre o rol de procedimentos e eventos em saúde, que rege a cobertura mínima obrigatória que as operadoras de planos de saúde devem custear. Não é incomum conceder cobertura a tratamentos, exames, medicamentos e procedimentos que não estejam listados nos Anexos I e II do referido rol, insculpidos na atual Resolução Normativa 465/21 da ANS.

A ANS, em seu artigo 2º, dispôs que "para fins de cobertura, considera-se taxativo o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde disposto nesta Resolução…", cumulado com o artigo 17 no sentido de que "a cobertura assistencial de que trata o plano-referência compreende todos os procedimentos clínicos, cirúrgicos, obstétricos e os atendimentos de urgência e emergência previstos nesta Resolução Normativa e seus Anexos, na forma estabelecida no artigo 10 da Lei nº 9.656, de 1998".

Precedido a isso, a 4ª Turma do STJ, na mesma jurisprudência citada anteriormente (Resp nº 1.733.013 PR), de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, apresentou entendimento de que o rol de procedimentos e eventos em saúde não deve ser considerado como meramente exemplificativo, pois visa a garantir ao consumidor o direito à saúde, com preços acessíveis, pois, em sentido contrário, obrigando a operadora a fornecer tratamento de forma indiscriminada e, por vezes, ilimitada, restringe a livre concorrência e nega a vigência dos dispositivos legais entabulados no plano-referência.

A evolução constante do posicionamento do Judiciário está agregada nas decisões que aplicam as disposições legais especiais e isso se observa com maior constância em nossos tribunais.

Entre eles, é oportuno citar a revogação da Súmula 2 das turmas recursais do estado da Bahia, que garantia a obrigatoriedade dos custos de até duas tentativas de fertilização in vitro pelas operadoras de planos de saúde. No entanto, no Encontro dos Magistrados dos Juizados Especiais do Estado da Bahia, realizado no ano de 2018, foi revogada a referida súmula e emitido um novo enunciado, que possui o seguinte texto: "A inseminação artificial e a fertilização in vitro não são procedimentos de cobertura obrigatória pelas empresas operadoras de plano de saúde, salvo por expressa iniciativa prevista no contrato de assistência à saúde", corroborando com o entendimento majoritário do STJ sobre a questão.

Ainda, recentemente o Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1883654, entendeu que os medicamentos de uso domiciliar não devem ser de custeio obrigatório pelas operadoras, pois é lícita a exclusão de cobertura nos termos do artigo 10, inciso VI, da Lei 9.656/98, salvo os medicamentos utilizados para tratamento de câncer de uso oral, medicação assistida em home care e, por consequência, os incluídos na listagem do rol de procedimentos e eventos em Saúde.

Por oportuno, no constante crescimento da judicialização da saúde é importante citarmos o estudo realizado pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), solicitado pelo CNJ, que constatou o aumento de 130% das demandas judiciais relativas à saúde (pública e privada) nos últimos dez anos.

No total foram ingressadas 498.715 novas ações, distribuídas na primeira instância de 17 tribunais do país.

De acordo com o relatório "Justiça em Números" [2], os últimos dados divulgados pelo CNJ em 2020, referentes ao ano-base 2019, revelam que foram judicializadas 135 mil ações em face dos planos de saúde.

Diante disto, é necessário fazer a seguinte reflexão: essas ações propostas ocorreram por falha na prestação de serviços da operadora? Houve desobediência às normas de regência?

A resposta se encontra acima, quando falamos sobre as principais justificativas embasadas nas decisões judiciais que enveredam por princípios da CF/88 e regras gerais do CDC, não se levando em consideração a legislação específica da saúde suplementar, o que gera baixa probabilidade de reversão das decisões.

Como consequência, a decisão que não é respaldada na matéria tem efeitos desastrosos para o setor, que elabora estudo atuarial de gastos embasados juntamente nestas normas, mais especificamente nos procedimentos listados no rol de procedimentos e eventos em saúde, podendo acarretar em médio prazo a insustentabilidade do setor.

Assim, aliada a essas questões, o Poder Judiciário deve considerar a implicação prática de suas decisões, conforme determina o artigo 20, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), de modo que o conhecimento da matéria e aplicação da norma em sua essência é fator fundamental para segurança jurídica, sustentabilidade do setor e a livre concorrência.

Nesse cenário, os custos com procedimentos, medicamentos, exames e técnicas não previstos no rol da ANS e sem cobertura adicional prevista em contrato impactam no custo do plano de saúde, que, de acordo com o modelo em uso pelo sistema de saúde suplementar, permite que o acréscimo nos gastos com a prestação de serviço seja distribuído entre os beneficiários — que é estruturado pelo fundamento do mutualismo, em que uma parcela dos beneficiários paga o custo que engloba a outra fatia de beneficiários que necessita de maior utilização do plano. Portanto, os custos são administrados e repassados para os consumidores através dos reajustes.

Então, para que se busque a segurança jurídica e haja a diminuição dos efeitos da judicialização da saúde suplementar, é necessário que sejam adotadas algumas práticas pelos magistrados para que se possa expandir e aplicar essas políticas.

O CNJ, por exemplo, recomendou aos tribunais a criação de comitês executivos estaduais e NAT-Jus (Núcleo de Apoio Técnico) para que os magistrados possam ser auxiliados na prestação jurisdicional pretendida, trazendo-lhe conhecimento na medicina baseada em evidências.

E, nesse mesmo sentido, o STJ, no REsp 1.630.895-SP, da 4ª Turma, determinou a anulação da sentença para que seja realizada a produção de prova para delimitar qual material e/ou procedimento é efetivamente indicado, nos moldes do Rol da ANS, utilizando-se do requerimento de nota técnica ao NAT-Jus, de modo que o juiz possui o poder-dever de seguir estas orientações.

Verifica-se que a postura do Judiciário nos últimos anos vem mudando no sentido de se utilizar das normas regentes e aplicar meios alternativos para alcançar uma prestação jurisdicional de forma justa, destarte, também devem ser levados em consideração os pareceres técnicos da ANS, que são elaborados com base no estudo das normas suplementares e que devem ser seguidas.

Ainda como medida de expansão de conhecimento acerca da matéria, é viável que sejam ministrados cursos de formação aos magistrados, organizados pelo próprio Poder Judiciário, com participação de representantes do setor a fim de que se possa dar elementos conceituais e legais, bem como expor as consequências geradas pelas decisões não embasadas.

A elaboração de guias informativos, que podem ser criados por diversas organizações e pela própria autarquia, explicando de forma didática e compreensível a legislação acerca de cada temática que envolve a saúde suplementar, também podem gerar efeitos abrangentes aos interessados.

Dessa forma, mesmo diante das diversidades encontradas no momento dos julgamentos que versem sobre a saúde suplementar, já se vislumbra a constante evolução do posicionamento jurídico ante a temática aqui abordada, mudança de suma importância não somente para as operadoras de planos de saúde, como também para os seus consumidores, visto que a grande demanda no Judiciário e decisões que desconsideram a norma reguladora e específica podem levar no futuro ao colapso de empresas e prejudicar a livre concorrência, onerando ainda mais a relação de consumo.

 

[1] Direito Civil – Vol. 1 – Lei de Introdução e Parte Geral – 7ª edição – Flávio Tartuce – Editora Método.

[2] Justiça em Números – Portal CNJ

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