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Tiago Martins: Pontos para aperfeiçoamento na LIA

29 de julho de 2021, 17h14

Por Tiago do Carmo Martins

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A atualização da Lei de Improbidade Administrativa (LIA) ganhou destaque com o Projeto de Lei 10.887/2018 da Câmara dos Deputados, ora tramitando no Senado com o número 2505/2021. Infelizmente, o texto substitutivo aprovado na Câmara contém várias regras que representam involuções, como as que: 1) diminuem o controle do juiz sobre a atividade probatória, o que tornará as ações ainda mais demoradas (já duram em média 4,24 anos) [1]; 2) dificultam a decretação da indisponibilidade de bens, ao requerer prova da ocultação patrimonial e determinar que bens menos líquidos sejam bloqueados preferencialmente, com potencial prejuízo a já pequena efetividade das ações (menos de 11% das condenações se reverteram em alguma devolução do prejuízo causado) [2]; 3) fragilizam o regime punitivo, ao eliminar a improbidade culposa, exigir demonstração de dolo específico e restringir as hipóteses e penas aplicáveis à improbidade por violação de princípios; 4) alteram o prazo prescricional (oito anos da data do fato) e estabelecem a prescrição intercorrente (quatro anos entre cada marco interruptivo, como, por exemplo, entre a propositura da ação e a sentença condenatória, o que, dado o tempo médio de tramitação, praticamente inviabiliza condenações válidas). 

Essas medidas, além de um grave afrouxamento no sistema de enfrentamento à corrupção, constituem oportunidade perdida para aperfeiçoar pontos que realmente necessitam de avanços, como a morosidade das ações e sua incapacidade de promover a reparação dos desvios praticados contra o Estado.

Com relação à demora, é salutar que a Câmara tenha suprimido a defesa preliminar, procedimento redundante, desnecessário [3] e causador de delonga extrema, como exemplifica ação ajuizada em que "foram necessários 4 anos para que a defesa prévia de todos fosse apresentada e (…) mais um ano e meio para que se procedesse à renovação das citações. No total, foram mais de 5 anos apenas para que o juiz determinasse às partes a produção de provas" [4].

No entanto, o PL, embora elimine o reexame necessário da sentença de improcedência (artigo 17, §19, IV), não se debruça com maior atenção sobre um problema grave no engessamento das ações em geral: a prodigalidade recursal do sistema processual brasileiro [5], que gera situações inusitadas de recursos sucessivos dentro de um mesmo incidente, como, por exemplo, o AgRg no RE no AgInt no AREsp 1201021/SP [6].

Também com o intuito de acelerar as ações, o PL poderia ter previsto a criação de juízos especializados para processar e julgar ações de improbidade administrativa, a exemplo do que fizeram o Conselho da Justiça Federal [7] e o Conselho Nacional de Justiça [8] nas ações que envolvem lavagem de capitais e criminalidade organizada, do que resultaram melhorias no processamento desse tipo de ação e na imagem do Brasil perante organismos envolvidos no enfrentamento da macrocriminalidade [9].

As ações de improbidade costumam ser complexas e demandar alto nível de especialização dos atores processuais, especialmente dos magistrados. A concentração dessas ações em juízos específicos contribuiria para uniformizar procedimentos, com ganho de tempo; e para aumentar a expertise dos julgadores, com evidente ganho de qualidade [10].

O PL, contudo, denota que a razoável duração do processo não é uma prioridade. Isto se vê no artigo 17, §10-C, que estabelece uma espécie de incidente de tipificação da imputação: "O juiz proferirá decisão na qual indicará com precisão a tipificação do ato de improbidade administrativa imputável ao réu, sendo-lhe vedado modificar o fato principal e a capitulação legal apresentada pelo autor". Depois de classificada a conduta, não pode ser alterada, pena de nulidade da sentença (artigo 17, 10-F, I). Não é difícil projetar quantas discussões e recursos essa alteração ensejará.

Além disso, a mudança pode fragilizar muito a defesa da probidade e do patrimônio público. Imagine-se que o juiz, no início da ação e antes da produção de qualquer prova no processo, precisará dar a capitulação legal definitiva da conduta imputada ao réu. Então, com base nos elementos até ali presentes, classifica a conduta como violadora dos princípios da Administração (artigo 11). Mas, após a instrução processual, constata que houve pagamento de propina ao agente público, o que levaria a capitulação para o artigo 9º. No entanto, como a decisão anterior, que tipificou a conduta no artigo 11, é imutável, o réu sairá com pena mais branda e muito provavelmente isento de devolver a propina.

A agilidade também é desprestigiada pelo artigo 17, §10-F, II, que torna nula a sentença que "condenar o requerido sem a produção das provas por ele tempestivamente especificadas". O dispositivo entrega o controle da atividade probatória para o acusado e impede que o juiz da causa exerça a presidência do processo, inclusive a prerrogativa de refutar provas manifestamente protelatórias.

No campo da inefetividade, é imperioso que o Senado corrija as sensíveis alterações promovidas no regime de indisponibilidade de bens, providência cautelar que se destina a proteger o ressarcimento integral do dano, um dos maiores valores consagrados pelo constituinte no tema da proteção à probidade. Fragilizada a prerrogativa de indisponibilizar bens, resta ameaçado o próprio ressarcimento.

Pelo substitutivo aprovado (artigo 16), a indisponibilidade deixa de garantir o valor da multa civil a ser eventualmente imposta, previsão que constava do texto original do PL e seguia a jurisprudência consolidada [11], que privilegiava o resultado útil do processo, assegurando a execução da pena pecuniária.

Mais grave, o parágrafo 3º estabelece que o pedido de indisponibilidade "apenas será deferido mediante a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo". A norma, que por sua redação sugere se voltar para garantir um processo que tenha desfecho útil, na verdade traz óbice quase insuperável para decretação da cautelar, pois é virtualmente inviável demonstrar, no início do processo ou antes de seu ajuizamento, que o réu está a esconder seu patrimônio.

Bem por isso a jurisprudência já havia fixado que a indisponibilidade "não está condicionada à comprovação de que o réu esteja dilapidando seu patrimônio", pois "o periculum in mora encontra-se implícito no comando legal que rege, de forma peculiar, o sistema de cautelaridade na ação de improbidade administrativa", de modo que é dado ao magistrado "fundamentadamente, decretar a indisponibilidade de bens do demandado, quando presentes fortes indícios da prática de atos de improbidade administrativa" [12].

A dificuldade é reforçada pelo parágrafo seguinte, que torna obrigatória a prévia oitiva do réu antes de que o juiz possa decretar a medida. Conquanto a própria norma traga exceção, postergando o contraditório quando "puder comprovadamente frustrar a efetividade da medida", será muito difícil demonstrar o comprometimento da eficácia da cautelar e se criará espaço para muitas discussões e recursos em torno da questão.

Os problemas seguem no parágrafo 5º, cuja redação, ao limitar o montante da indisponibilidade ao valor total do dano (o que é positivo), não esclarece que isso deve ser feito no momento da efetivação da medida, quando encontrados bens em montante superior ao dado estimado, deveria ocorrer a liberação do excesso.

E continuam no parágrafo 7º, que traz a necessidade de incidente de desconsideração da personalidade jurídica para alcançar bens em nome de empresa e demonstração de envolvimento de terceiro pessoa física no ato para que seja alcançado pelo bloqueio de bens, ignorando que essas pessoas, quando envoltas no ato, seja ajudando a praticá-lo, ocultá-lo ou dele se beneficiando, devem ser réus da ação, uma vez que consideradas sujeitos ativos do ato pelo artigo 3º da LIA.

Mais que problemas, causa grande espanto a previsão do parágrafo 10: "A indisponibilidade recairá sobre bens que assegurem exclusivamente o integral ressarcimento do dano ao erário, sem incidir sobre os valores a serem eventualmente aplicados a título de multa civil ou sobre acréscimo patrimonial decorrente de atividade lícita". Além de reforçar a exclusão da multa, já operada no caput do artigo 16, a regra em questão blinda parte do patrimônio do agente público, mesmo que pesem fortes indícios de ato contra o erário, dando a entender que ressarcimentos só se operarão caso tenha havido percepção de vantagem indevida.

O parágrafo seguinte determina que a indisponibilidade recaia preferencialmente sobre veículos, embarcações e outros bens de menor liquidez. Apenas em último caso deve atingir contas bancárias do acusado. Trata-se de medida que subverte a ordem processual em vigor (artigo 835 do CPC), que justamente prioriza a constrição de dinheiro em preferência a qualquer outro ativo. Assim procedendo, o substitutivo cria um privilégio para processados por improbidade, não fruído pelos cidadãos em geral, sequer pelos que respondem a processo penal; e fragiliza, mais uma vez, a recuperação de valores por parte do Estado.

E o parágrafo 14 cria mais uma barreira à indisponibilidade, impedindo que recaia sobre bem de família, uma vez mais dificultando a recuperação de ativos e contrariando a jurisprudência consolidada [13].

Para finalizar as medidas que deixarão a ação mais ineficaz, o artigo 17 estabelece que apenas o Ministério Público poderá ajuizar a ação por improbidade. O motivo reside em pretensas ações ajuizadas com fins políticos, embora não sejam apresentados dados concretos sobre isso. Mas considerando que eventualmente existam, a lei em vigor, e diversas providências estabelecidas pelo substitutivo, trazem uma série de filtros que permitem a rejeição liminar ou o julgamento de improcedência antecipado de ações infundadas.

Limitar a legitimidade ativa, portanto, é desnecessário. Além disso, enfraquece o controle amplo que deve vigorar sobre atos administrativos. Limitar os controles é aumentar a probabilidade de ocorrência de corrupção [14].

Na realidade, o que o Legislador deveria promover é justamente o contrário: envolver mais atores na fiscalização dos atos públicos, especialmente o cidadão [15]. Nesse campo, as qui tam actions do Direito estadunidense oferecem experiência de sucesso. Ao conceder legitimidade ativa a qualquer pessoa privada para processar em nome do Estado, a fim de reparar lesões contra este praticadas, "os legisladores reconheceram, como política pública, que os cidadãos estão mais bem posicionados para desvendar transgressões" [16]. Como resultado, foram recuperados U$ 44,5 bilhões entre 1988 e 2019 [17].

Certamente há muito para avançar em tema de controle da probidade. As inovações trazidas pelo PL 10.887/2018, na forma em que aprovadas e vistas em seu conjunto, não contribuem para isso. Imperioso que o Senado preste mais atenção aos problemas de morosidade e inefetividade das ações de improbidade, envolva a sociedade nessa discussão e promova alterações que realmente sejam benéficas para o país.

 


[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Lei de improbidade administrativa: obstáculos à plena efetividade do combate aos atos de improbidade. Coordenação Luiz Manoel Gomes Júnior, equipe Gregório Assegra de Almeida… [et al.]. – Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015, p. 37.

[2] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Lei de improbidade administrativa: obstáculos à plena efetividade do combate aos atos de improbidade. Coordenação Luiz Manoel Gomes Júnior, equipe Gregório Assegra de Almeida… [et al.]. – Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015, p. 69.

[3] Apenas 18% das ações são rejeitadas liminarmente, normalmente por defeitos da petição inicial e não por virtudes da defesa. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Lei de improbidade administrativa: obstáculos à plena efetividade do combate aos atos de improbidade. Coordenação Luiz Manoel Gomes Júnior, equipe Gregório Assegra de Almeida… [et al.]. – Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015, p. 84.

[4] UNIDOS CONTRA A CORRUPÇÃO; TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL – BRASIL; FGV DIREITO. NOVAS MEDIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO. Disponível em: https://s3-sa-east-1.amazonaws.com/tibr-downloads/pdf/sumario-novasmedidas-bloco2.pdf. Acesso em: 26/07/2021.

[5] AGÊNCIA CMA. Excesso de recursos cria morosidade na justiça, diz Peluso. Disponível em: https://www.agenciacma.com.br/excesso-de-recursos-cria-morosidade-na-justica-diz-peluso/. Acesso em: 26/07/2021.

[6] STJ, AgRg no RE no AgInt no AREsp 1201021/SP, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, CORTE ESPECIAL, julgado em 22/06/2021, DJe 25/06/2021.

[7] Resolução 314/2003, Resolução 517/2006 e Resolução 273/2013.

[8] Recomendação 3/2006.

[9] DIPP, Gilson Langaro. CRIME ORGANIZADO E A IMPORTÂNCIA DAS VARAS ESPECIALIZADAS DA JUSTIÇA FEDERAL. Revista CEJ, Brasília, Ano XX, n. 69, p. 24-26, maio/ago. 2016.

[10] UNIDOS CONTRA A CORRUPÇÃO; TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL – BRASIL; FGV DIREITO. NOVAS MEDIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO. Medida 60, p. 142. Disponível em: https://s3-sa-east-1.amazonaws.com/tibr-downloads/pdf/sumario-novasmedidas-bloco2.pdf. Acesso em: 26/07/2021.

[11] STJ, AgInt no REsp 1895887 / MA Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, DJe 12/05/2021.

[12] STJ, REsp Repetitivo 1.366.721/BA – Tema 701, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Dje 19/09/2014.

[13] STJ, REsp 1.837.848/SC, Rel. Ministro Francisco Falcão, Dje 05/03/2020.

[14] "CORRUPTION = MONOPOLY + DISCRETION – ACCOUNTABILITY" (KLITGAARD, Robert. Controlling Corruption. Berkeley: University of California Press, 1991. Kindle Version, p. 908-913). Na mesma linha: "quanto menor o exercício da accountability maiores os níveis de corrupção" NASCIMENTO, Melillo Diniz. O controle da corrupção no Brasil. In Lei Anticorrupção Empresarial: aspectos críticos à Lei 12.846/2013. Coord. Jorge Ulisses Jacoby Fernandes. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 68).

[15] E as pessoas querem se envolver neste enfrentamento: "ORDINARY PEOPLE CAN MAKE A DIFFERENCE: The good news is more than half the people around the world – and particularly young people – agreed that citizens could make a difference. Fifty-eight per cent of people aged 24 and under said they feel empowered to make a difference. Fifty per cent of those aged 55 also agreed". TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Global Corruption Barometer: Citizens' voices from around the world. 2017. Disponível em: https://www.transparency.org/en/gcb/global/global-corruption-barometer-2017. Acesso em: 09/03/2021.

[16] GILLES, Myriam; FRIEDMANN, Gary. The New Qui Tam: A Model for the Enforcement of Group Rights in a Hostile Era. Texas Law Review, Vol. 98, 2020, p. 493.

[17] Levantamento realizado pelo escritório jurídico BERG & ANDROPHY. Disponível em: https://www.bafirm.com/practice-areas/qui-tam-litigation/statistics/. Acesso em: 01/09/2020.