Opinião

Pontos para aperfeiçoamento na Lei de Improbidade Administrativa

Autor

  • Tiago do Carmo Martins

    é juiz federal do TRF-4 doutorando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (2016) diretor da Escola Superior da Magistratura Federal de Santa Catarina (Esmafesc) professor do curso regular da Esmafesc na disciplina de Direito Administrativo e autor dos livros "Anotações à Lei de Improbidade Administrativa" (Editora Verbo Jurídico 2012 e 2017) e "Improbidade Administrativa: Análise da Lei 8.429/92 à luz da doutrina e da jurisprudência atualizada segundo a Lei 14.230/2021" (Editora Alteridade 2022).

29 de julho de 2021, 17h14

A atualização da Lei de Improbidade Administrativa (LIA) ganhou destaque com o Projeto de Lei 10.887/2018 da Câmara dos Deputados, ora tramitando no Senado com o número 2505/2021. Infelizmente, o texto substitutivo aprovado na Câmara contém várias regras que representam involuções, como as que: 1) diminuem o controle do juiz sobre a atividade probatória, o que tornará as ações ainda mais demoradas (já duram em média 4,24 anos) [1]; 2) dificultam a decretação da indisponibilidade de bens, ao requerer prova da ocultação patrimonial e determinar que bens menos líquidos sejam bloqueados preferencialmente, com potencial prejuízo a já pequena efetividade das ações (menos de 11% das condenações se reverteram em alguma devolução do prejuízo causado) [2]; 3) fragilizam o regime punitivo, ao eliminar a improbidade culposa, exigir demonstração de dolo específico e restringir as hipóteses e penas aplicáveis à improbidade por violação de princípios; 4) alteram o prazo prescricional (oito anos da data do fato) e estabelecem a prescrição intercorrente (quatro anos entre cada marco interruptivo, como, por exemplo, entre a propositura da ação e a sentença condenatória, o que, dado o tempo médio de tramitação, praticamente inviabiliza condenações válidas). 

Essas medidas, além de um grave afrouxamento no sistema de enfrentamento à corrupção, constituem oportunidade perdida para aperfeiçoar pontos que realmente necessitam de avanços, como a morosidade das ações e sua incapacidade de promover a reparação dos desvios praticados contra o Estado.

Com relação à demora, é salutar que a Câmara tenha suprimido a defesa preliminar, procedimento redundante, desnecessário [3] e causador de delonga extrema, como exemplifica ação ajuizada em que "foram necessários 4 anos para que a defesa prévia de todos fosse apresentada e (…) mais um ano e meio para que se procedesse à renovação das citações. No total, foram mais de 5 anos apenas para que o juiz determinasse às partes a produção de provas" [4].

No entanto, o PL, embora elimine o reexame necessário da sentença de improcedência (artigo 17, §19, IV), não se debruça com maior atenção sobre um problema grave no engessamento das ações em geral: a prodigalidade recursal do sistema processual brasileiro [5], que gera situações inusitadas de recursos sucessivos dentro de um mesmo incidente, como, por exemplo, o AgRg no RE no AgInt no AREsp 1201021/SP [6].

Também com o intuito de acelerar as ações, o PL poderia ter previsto a criação de juízos especializados para processar e julgar ações de improbidade administrativa, a exemplo do que fizeram o Conselho da Justiça Federal [7] e o Conselho Nacional de Justiça [8] nas ações que envolvem lavagem de capitais e criminalidade organizada, do que resultaram melhorias no processamento desse tipo de ação e na imagem do Brasil perante organismos envolvidos no enfrentamento da macrocriminalidade [9].

As ações de improbidade costumam ser complexas e demandar alto nível de especialização dos atores processuais, especialmente dos magistrados. A concentração dessas ações em juízos específicos contribuiria para uniformizar procedimentos, com ganho de tempo; e para aumentar a expertise dos julgadores, com evidente ganho de qualidade [10].

O PL, contudo, denota que a razoável duração do processo não é uma prioridade. Isto se vê no artigo 17, §10-C, que estabelece uma espécie de incidente de tipificação da imputação: "O juiz proferirá decisão na qual indicará com precisão a tipificação do ato de improbidade administrativa imputável ao réu, sendo-lhe vedado modificar o fato principal e a capitulação legal apresentada pelo autor". Depois de classificada a conduta, não pode ser alterada, pena de nulidade da sentença (artigo 17, 10-F, I). Não é difícil projetar quantas discussões e recursos essa alteração ensejará.

Além disso, a mudança pode fragilizar muito a defesa da probidade e do patrimônio público. Imagine-se que o juiz, no início da ação e antes da produção de qualquer prova no processo, precisará dar a capitulação legal definitiva da conduta imputada ao réu. Então, com base nos elementos até ali presentes, classifica a conduta como violadora dos princípios da Administração (artigo 11). Mas, após a instrução processual, constata que houve pagamento de propina ao agente público, o que levaria a capitulação para o artigo 9º. No entanto, como a decisão anterior, que tipificou a conduta no artigo 11, é imutável, o réu sairá com pena mais branda e muito provavelmente isento de devolver a propina.

A agilidade também é desprestigiada pelo artigo 17, §10-F, II, que torna nula a sentença que "condenar o requerido sem a produção das provas por ele tempestivamente especificadas". O dispositivo entrega o controle da atividade probatória para o acusado e impede que o juiz da causa exerça a presidência do processo, inclusive a prerrogativa de refutar provas manifestamente protelatórias.

No campo da inefetividade, é imperioso que o Senado corrija as sensíveis alterações promovidas no regime de indisponibilidade de bens, providência cautelar que se destina a proteger o ressarcimento integral do dano, um dos maiores valores consagrados pelo constituinte no tema da proteção à probidade. Fragilizada a prerrogativa de indisponibilizar bens, resta ameaçado o próprio ressarcimento.

Pelo substitutivo aprovado (artigo 16), a indisponibilidade deixa de garantir o valor da multa civil a ser eventualmente imposta, previsão que constava do texto original do PL e seguia a jurisprudência consolidada [11], que privilegiava o resultado útil do processo, assegurando a execução da pena pecuniária.

Mais grave, o parágrafo 3º estabelece que o pedido de indisponibilidade "apenas será deferido mediante a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo". A norma, que por sua redação sugere se voltar para garantir um processo que tenha desfecho útil, na verdade traz óbice quase insuperável para decretação da cautelar, pois é virtualmente inviável demonstrar, no início do processo ou antes de seu ajuizamento, que o réu está a esconder seu patrimônio.

Bem por isso a jurisprudência já havia fixado que a indisponibilidade "não está condicionada à comprovação de que o réu esteja dilapidando seu patrimônio", pois "o periculum in mora encontra-se implícito no comando legal que rege, de forma peculiar, o sistema de cautelaridade na ação de improbidade administrativa", de modo que é dado ao magistrado "fundamentadamente, decretar a indisponibilidade de bens do demandado, quando presentes fortes indícios da prática de atos de improbidade administrativa" [12].

A dificuldade é reforçada pelo parágrafo seguinte, que torna obrigatória a prévia oitiva do réu antes de que o juiz possa decretar a medida. Conquanto a própria norma traga exceção, postergando o contraditório quando "puder comprovadamente frustrar a efetividade da medida", será muito difícil demonstrar o comprometimento da eficácia da cautelar e se criará espaço para muitas discussões e recursos em torno da questão.

Os problemas seguem no parágrafo 5º, cuja redação, ao limitar o montante da indisponibilidade ao valor total do dano (o que é positivo), não esclarece que isso deve ser feito no momento da efetivação da medida, quando encontrados bens em montante superior ao dado estimado, deveria ocorrer a liberação do excesso.

E continuam no parágrafo 7º, que traz a necessidade de incidente de desconsideração da personalidade jurídica para alcançar bens em nome de empresa e demonstração de envolvimento de terceiro pessoa física no ato para que seja alcançado pelo bloqueio de bens, ignorando que essas pessoas, quando envoltas no ato, seja ajudando a praticá-lo, ocultá-lo ou dele se beneficiando, devem ser réus da ação, uma vez que consideradas sujeitos ativos do ato pelo artigo 3º da LIA.

Mais que problemas, causa grande espanto a previsão do parágrafo 10: "A indisponibilidade recairá sobre bens que assegurem exclusivamente o integral ressarcimento do dano ao erário, sem incidir sobre os valores a serem eventualmente aplicados a título de multa civil ou sobre acréscimo patrimonial decorrente de atividade lícita". Além de reforçar a exclusão da multa, já operada no caput do artigo 16, a regra em questão blinda parte do patrimônio do agente público, mesmo que pesem fortes indícios de ato contra o erário, dando a entender que ressarcimentos só se operarão caso tenha havido percepção de vantagem indevida.

O parágrafo seguinte determina que a indisponibilidade recaia preferencialmente sobre veículos, embarcações e outros bens de menor liquidez. Apenas em último caso deve atingir contas bancárias do acusado. Trata-se de medida que subverte a ordem processual em vigor (artigo 835 do CPC), que justamente prioriza a constrição de dinheiro em preferência a qualquer outro ativo. Assim procedendo, o substitutivo cria um privilégio para processados por improbidade, não fruído pelos cidadãos em geral, sequer pelos que respondem a processo penal; e fragiliza, mais uma vez, a recuperação de valores por parte do Estado.

E o parágrafo 14 cria mais uma barreira à indisponibilidade, impedindo que recaia sobre bem de família, uma vez mais dificultando a recuperação de ativos e contrariando a jurisprudência consolidada [13].

Para finalizar as medidas que deixarão a ação mais ineficaz, o artigo 17 estabelece que apenas o Ministério Público poderá ajuizar a ação por improbidade. O motivo reside em pretensas ações ajuizadas com fins políticos, embora não sejam apresentados dados concretos sobre isso. Mas considerando que eventualmente existam, a lei em vigor, e diversas providências estabelecidas pelo substitutivo, trazem uma série de filtros que permitem a rejeição liminar ou o julgamento de improcedência antecipado de ações infundadas.

Limitar a legitimidade ativa, portanto, é desnecessário. Além disso, enfraquece o controle amplo que deve vigorar sobre atos administrativos. Limitar os controles é aumentar a probabilidade de ocorrência de corrupção [14].

Na realidade, o que o Legislador deveria promover é justamente o contrário: envolver mais atores na fiscalização dos atos públicos, especialmente o cidadão [15]. Nesse campo, as qui tam actions do Direito estadunidense oferecem experiência de sucesso. Ao conceder legitimidade ativa a qualquer pessoa privada para processar em nome do Estado, a fim de reparar lesões contra este praticadas, "os legisladores reconheceram, como política pública, que os cidadãos estão mais bem posicionados para desvendar transgressões" [16]. Como resultado, foram recuperados U$ 44,5 bilhões entre 1988 e 2019 [17].

Certamente há muito para avançar em tema de controle da probidade. As inovações trazidas pelo PL 10.887/2018, na forma em que aprovadas e vistas em seu conjunto, não contribuem para isso. Imperioso que o Senado preste mais atenção aos problemas de morosidade e inefetividade das ações de improbidade, envolva a sociedade nessa discussão e promova alterações que realmente sejam benéficas para o país.

 


[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Lei de improbidade administrativa: obstáculos à plena efetividade do combate aos atos de improbidade. Coordenação Luiz Manoel Gomes Júnior, equipe Gregório Assegra de Almeida… [et al.]. – Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015, p. 37.

[2] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Lei de improbidade administrativa: obstáculos à plena efetividade do combate aos atos de improbidade. Coordenação Luiz Manoel Gomes Júnior, equipe Gregório Assegra de Almeida… [et al.]. – Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015, p. 69.

[3] Apenas 18% das ações são rejeitadas liminarmente, normalmente por defeitos da petição inicial e não por virtudes da defesa. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Lei de improbidade administrativa: obstáculos à plena efetividade do combate aos atos de improbidade. Coordenação Luiz Manoel Gomes Júnior, equipe Gregório Assegra de Almeida… [et al.]. – Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015, p. 84.

[4] UNIDOS CONTRA A CORRUPÇÃO; TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL – BRASIL; FGV DIREITO. NOVAS MEDIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO. Disponível em: https://s3-sa-east-1.amazonaws.com/tibr-downloads/pdf/sumario-novasmedidas-bloco2.pdf. Acesso em: 26/07/2021.

[5] AGÊNCIA CMA. Excesso de recursos cria morosidade na justiça, diz Peluso. Disponível em: https://www.agenciacma.com.br/excesso-de-recursos-cria-morosidade-na-justica-diz-peluso/. Acesso em: 26/07/2021.

[6] STJ, AgRg no RE no AgInt no AREsp 1201021/SP, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, CORTE ESPECIAL, julgado em 22/06/2021, DJe 25/06/2021.

[7] Resolução 314/2003, Resolução 517/2006 e Resolução 273/2013.

[8] Recomendação 3/2006.

[9] DIPP, Gilson Langaro. CRIME ORGANIZADO E A IMPORTÂNCIA DAS VARAS ESPECIALIZADAS DA JUSTIÇA FEDERAL. Revista CEJ, Brasília, Ano XX, n. 69, p. 24-26, maio/ago. 2016.

[10] UNIDOS CONTRA A CORRUPÇÃO; TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL – BRASIL; FGV DIREITO. NOVAS MEDIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO. Medida 60, p. 142. Disponível em: https://s3-sa-east-1.amazonaws.com/tibr-downloads/pdf/sumario-novasmedidas-bloco2.pdf. Acesso em: 26/07/2021.

[11] STJ, AgInt no REsp 1895887 / MA Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, DJe 12/05/2021.

[12] STJ, REsp Repetitivo 1.366.721/BA – Tema 701, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Dje 19/09/2014.

[13] STJ, REsp 1.837.848/SC, Rel. Ministro Francisco Falcão, Dje 05/03/2020.

[14] "CORRUPTION = MONOPOLY + DISCRETION – ACCOUNTABILITY" (KLITGAARD, Robert. Controlling Corruption. Berkeley: University of California Press, 1991. Kindle Version, p. 908-913). Na mesma linha: "quanto menor o exercício da accountability maiores os níveis de corrupção" NASCIMENTO, Melillo Diniz. O controle da corrupção no Brasil. In Lei Anticorrupção Empresarial: aspectos críticos à Lei 12.846/2013. Coord. Jorge Ulisses Jacoby Fernandes. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 68).

[15] E as pessoas querem se envolver neste enfrentamento: "ORDINARY PEOPLE CAN MAKE A DIFFERENCE: The good news is more than half the people around the world – and particularly young people – agreed that citizens could make a difference. Fifty-eight per cent of people aged 24 and under said they feel empowered to make a difference. Fifty per cent of those aged 55 also agreed". TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Global Corruption Barometer: Citizens' voices from around the world. 2017. Disponível em: https://www.transparency.org/en/gcb/global/global-corruption-barometer-2017. Acesso em: 09/03/2021.

[16] GILLES, Myriam; FRIEDMANN, Gary. The New Qui Tam: A Model for the Enforcement of Group Rights in a Hostile Era. Texas Law Review, Vol. 98, 2020, p. 493.

[17] Levantamento realizado pelo escritório jurídico BERG & ANDROPHY. Disponível em: https://www.bafirm.com/practice-areas/qui-tam-litigation/statistics/. Acesso em: 01/09/2020.

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