Opinião

Disparidade de armas e prazo recursal no processo penal

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28 de julho de 2021, 9h31

Segundo recente decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, em caso de duplicidade de intimação eletrônica, notadamente quando esta ocorrer pelo Diário de Justiça Eletrônico (DJe) e pelo portal eletrônico (PJe) [1], deverá prevalecer, para fins de contagem processual, a intimação realizada pelo portal eletrônico [2].

A mudança jurisprudencial [3] é louvável e visa a corrigir uma disparidade entre as partes, especialmente no processo penal, em que o Ministério Público, por força do artigo 370, §4º, do CPP, tem a prerrogativa de ser intimado pessoalmente.

Ocorre que alguns tribunais — caso, inclusive, do próprio STJ e do STF —, não utilizam PJe e, portanto, a contagem do prazo processual passa a valer a partir da publicação da intimação no Diário de Justiça, fato este que, por si só, causaria estranheza, contanto que não evidenciasse, ao menos no processo penal, clara violação ao princípio da paridade de armas.

Isso porque, conforme mencionado, consoante o artigo 370, §4º, do CPP, a intimação do Ministério Público deverá ocorrer de forma pessoal. Anteriormente, o cumprimento dessa previsão ocorria por meio da entrega dos autos com vista ao órgão, apenas se considerando realizada a intimação a partir do momento que o processo era recebido na administração, conforme disposto no artigo 41, inciso IV, da Lei nº 8.625/1993 [4].

Atualmente, com a informatização do processo judicial, a intimação pessoal prescinde que seja realizada presencialmente, bastando que ocorra a comunicação eletrônica do ato processual. Assim, segundo o artigo 4º, §3º, da Lei nº 11.419/2006, esta deverá ser consultada em até dez dias corridos contados da data de envio da intimação, considerando-se automaticamente realizada ao término desse prazo.

"Artigo 4º — Os tribunais poderão criar Diário da Justiça eletrônico, disponibilizado em sítio da rede mundial de computadores, para publicação de atos judiciais e administrativos próprios e dos órgãos a eles subordinados, bem como comunicações em geral.
§3º. A consulta referida nos §§ 1º e 2º deste artigo deverá ser feita em até dez dias corridos contados da data do envio da intimação, sob pena de considerar-se a intimação automaticamente realizada na data do término desse prazo".

Nesse contexto, em se tratando, por exemplo, da intimação acerca do teor de um acórdão proferido pelo STJ, o prazo de dois dias [5] para a defesa opor embargos de declaração começa a correr com a publicação do julgado no Diário de Justiça, que costuma se dar, em regra, um dia após sua disponibilização.

Por outro lado, ainda que já disponibilizado e publicado o acórdão, o prazo para que o Ministério Público possa, igualmente, embargar da decisão será de, pelo menos, 12 dias, tendo em vista o prazo legal de dois dias somado à prerrogativa anteriormente mencionada do direito de consultar a comunicação dentro de dez dias [6].

Logo, com a publicação, a acusação tem pleno acesso ao teor e aos fundamentos da decisão, além de prazo bastante superior ao da defesa para recorrer, o que lhe permite pensar, pesquisar e fundamentar melhor os argumentos necessários para seu recurso, em detrimento do apertado tempo de que dispõe a defesa, que incorre em claro prejuízo nesse sentido.

Sendo assim, em que pese a informatização do processo judicial tenha surgido em busca de versatilizar e racionalizar a tramitação das demandas jurídicas, bem como dar maior celeridade ao andamento dos processos, apenas transferiu do meio físico para o eletrônico um problema antigo de disparidade de armas.

Enquanto, à época, o prazo recursal concedido ao MP se alongava em razão do trâmite da entrega dos autos ao órgão, hoje se estende pela possibilidade, indisponível à defesa em tribunais que não adotam o PJe, de sempre acrescentar dez dias ao seu prazo recursal.

Não se ignora que a ideia da paridade de armas não significa, estruturalmente, partes iguais ou igualdade atributiva processual, haja vista as indiscutíveis diferenças funcionais e institucionais entre o órgão acusatório e a defesa [7].

Por outro lado, não se pode deixar de constatar que, para a verdadeira efetivação do referido princípio, é necessário seu reconhecimento como ferramenta inalienável do processo penal. Prova disso é que, diversamente do adotado pelo procedimento civil, no processo penal o Ministério Público não dispõe da prerrogativa do prazo em dobro [8], haja vista a necessária celeridade da esfera que busca tutelar a liberdade e a dignidade humana dos indivíduos.

Ademais, por si só, o fato de cada tribunal dispor de um sistema eletrônico diferente já gera enorme insegurança. Enquanto algumas cortes efetuam a intimação em duplicidade, pelo portal eletrônico e pelo Diário de Justiça (caso, por exemplo, do TJ-DFT), outras apenas o fazem via PJe (como o TJ-RJ), o que leva a incertezas e transtornos que seriam facilmente evitáveis caso o formato utilizado, seja ele o sistema ou o PJe, fosse unificado e padronizado.

Assim, em que pese possa se tratar de mera elocubração, o ideal seria a uniformização do sistema eletrônico para todos os tribunais, de atuação integrada [9], com a utilização de somente um formato de intimação, que, ao menos por ora, entende-se que deva ser a publicação via Diário de Justiça (clarificando: inclusive para o Ministério Público).

Isso porque, ainda que o Ministério Público, de fato, possua mais processos em sua alçada, é certo que cada promotor natural atua em apenas um local, o que facilita a consulta de possíveis intimações.

Contudo, para a advocacia, torna-se trabalho hercúleo ter de acessar — diariamente! — o PJe de todos os estados da federação, dos tribunais federais, bem como dos tribunais superiores, para verificar a presença de intimações via portal eletrônico (sem contar, ainda, dos sistemas que não são integrados, pelo que se torna necessário acessar tanto o primeiro como o segundo grau de jurisdição).

Logo, é fundamental que haja a extinção das situações que inserem a defesa em desvantagem processual, possibilitando, ainda, que esta atue em pé de igualdade com o órgão acusatório, por meio da equivalência de recursos estruturais e materiais [10].


[1] Esclarecemos que a sigla "PJe", utilizada neste artigo, diz respeito ao portal eletrônico lato sensu, não se confundindo com o sistema "PJe", processo judicial eletrônico adotado pelo CNJ e outros tribunais. Isso porque, até mesmo os tribunais que possuem um sistema próprio (que não o PJe) se utilizam dessa sigla para e referir ao processo eletrônico.

[2] EAREsp 1663952/RJ, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, CORTE ESPECIAL, julgado em 19/05/2021, DJe 09/06/2021

[3] Até então, o posicionamento da Corte Especial era no sentido contrário do que foi firmado agora. "1. A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento no sentido de que, havendo duplicidade de intimação, via portal eletrônico e por Diário de Justiça Eletrônico (DJe), deve prevalecer esta última, pois, nos termos do artigo 4º, § 2º, da Lei 11.419/2006, a publicação em Diário de Justiça eletrônico substitui qualquer outro meio de publicação oficial para quaisquer efeitos legais" (AgInt nos EAREsp 1.015.548/RJ, Rel.  Ministro  HUMBERTO MARTINS, Corte Especial, julgado em 15/8/2018, DJe 22/8/2018).

[4] "Artigo 41 – Constituem prerrogativas dos membros do Ministério Público, no exercício de sua função, além de outras previstas na Lei Orgânica: IV – receber intimação pessoal em qualquer processo e grau de jurisdição, através da entrega dos autos com vista".

[5] Artigo 619, CPP.

[6] Isso considerando que o parquet seja intimado na mesma data da publicação do acórdão, o que, sabemos, nem sempre é o que ocorre.

[7] GREVI, Vittorio. Alla ricerca di um processo penale giusto. MIlano: Giuffrè Editore. 2000, p. 159.

[8] "O Ministério Público não goza de prazo em dobro no âmbito penal, sendo intempestivo o recurso de agravo regimental interposto fora do quinquídio previsto no artigo 258 do Regimento Interno do STJ." (AgRg no HC 392.868/MT, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 6/2/2018, DJe 15/2/2018) (AgInt no REsp 1.658.578/MT, 5ª Turma, DJe 02/05/2018).

[9] Isso sem falar no desnecessário gasto de dinheiro público com cada tribunal desenvolvendo um sistema diferente, certamente passando pelos mesmos problemas, adversidades e contratempos, além da constante alocação de pessoal para as contínuas atualizações e aprimoramentos.

[10] CARBONE, Carlos. Principios y problemas del proceso penal adversarial. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2019. p. 49-50.

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