Fila Furada

Compra via delator de sistema de investigação para MPF do Rio é ilegal

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28 de julho de 2021, 20h35

A exigência de aquisição, por um delator, de um equipamento de investigação israelense como parte do pagamento de sua multa civil e sua entrega a procuradores da "lava jato" do Rio de Janeiro é uma obrigação ilegal em acordos de colaboração premiada e viola o princípio constitucional da licitação.

Divulgação

O empresário Enrico Vieira Machado comprou, sem licitação, o software UFED Cloud Analyzer, desenvolvido pela Cellebrite, para o Ministério Público Federal do Rio. A aquisição foi feita em 5 de dezembro de 2017, por R$ 474.917,00, em Nova Lima (MG). A obrigação de adquirir o programa foi inserida em seu acordo de colaboração premiada, firmado com o MPF e homologado pelo juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal Criminal do Rio.

Advogados ouvidos pela ConJur afirmam que tal cláusula no termo de delação é ilegal. O jurista Lenio Streck diz que a obrigação de comprar equipamento para o MPF "foge aos objetivos da colaboração premiada".

"É mais uma invenção da força-tarefa do MPF. Especializados em dar explicações, já dá para ver que 'tudo foi de acordo com a lei'. Ok. Qual lei? Eis a questão. Pior: um equipamento que, podem falar o que quiserem, é um equipamento ligado a extração de dados. Logo, o delator compra equipamentos próprios de uso policial e fornece ao MPF e à polícia. O que mais nós não sabemos?", questiona Lenio.

"Esse caso reflete bem o grau de 'independência', ou descolamento da legalidade, para não dizer outra coisa, a que chegaram os procuradores da 'lava jato'", declara o criminalista Alberto Zacharias Toron. "Como disse o ministro Gilmar Mendes, se fossem acrobatas, pensariam que podem voar… Em outras palavras, é ilegal e imoral o que fizeram".

O advogado ressalta que cabe ao Estado, e não ao MPF, decidir a destinação de verbas pagas por colaboradores. E avalia que o caso é semelhante ao da tentativa, pelos procuradores de Curitiba, de criar uma fundação para gerir os R$ 2,5 bilhões repassados pela Petrobras referentes a multas que pagaria a autoridades norte-americanas. O fundo foi alvo de questionamentos no Supremo Tribunal Federal e, por decisão do ministro Alexandre de Moraes, acabou sendo dividido entre o combate aos incêndios na Amazônia e programas estaduais de enfrentamento à epidemia de Covid-19 no país.

"Esse episódio lembra a história do dinheiro que os 'irmãos' de Curitiba queriam obter do Departamento de Justiça dos EUA para investir numa fundação própria. Aqui a diferença é que queriam equipamentos para suas atividades. Ainda que o juiz, num estranho gesto de cumplicidade, tenha homologado o acordo, é evidente que o dinheiro deve se voltar prioritariamente à vítima e, o que restar, cabe ao Estado definir o destino. O MPF quis se prevalecer de uma situação anômala e que não pode subsistir. É isso", analisa Toron.

Sem licitação
O software UFED Cloud Analyzer foi comprado por Enrico Machado e entregue ao MPF do Rio sem licitação. Os procuradores argumentaram que a transação foi legal. "A aquisição dos equipamentos de extração de dados de celulares da empresa Cellebrite se deu com respaldo legal, com base no artigo 7º, parágrafo 1º, da Lei 9.613/98, após devida autorização judicial", informou o MPF, em nota. O dispositivo determina que a União e os estados, no âmbito de suas competências, regulamentarão a forma de destinação dos bens, direitos e valores cuja perda houver sido declarada.

"Conforme demonstrado judicialmente", disse o MPF, "a aquisição se deu nas mesmas condições de especificação e preço de ata de registro de preço da Polícia Rodoviária Federal (Ata de Registro de Preços 04/2017), tendo alguns kits sido destinados à Polícia Federal que, à época, sofria com equipamentos obsoletos e em número insuficiente para análise dos materiais apreendidos. Outros kits foram enviados para a PGR e para outras unidades do MPF nos estados, que sequer possuíam a ferramenta — fundamental para qualquer investigação com dispositivos eletrônicos".

Na opinião do professor da PUC-SP Pedro Estevam Serrano, a compra do programa pelo delator e posterior entrega ao MPF foi uma forma de burlar a necessidade de se fazer licitação. De acordo com o docente, a verba arrecadada via acordo de colaboração premiada é destinada ao patrimônio público, que tem regras orçamentárias de gestão do dinheiro.

"O MPF não pode se assenhorar, como se fosse dono, do dinheiro objeto da colaboração premiada, porque no Estado Democrático de Direito só existem gestores, não existem donos do patrimônio público", afirma Serrano, explicando que a quantia deveria ser destinada à União ou a fundos especificados por lei, como o Fundo de Defesa de Direitos Difusos.

Ainda que o dinheiro fosse destinado ao MPF, a compra do equipamento teria que passar por licitação, ressalta o professor, citando o artigo 37, XXI, da Constituição Federal. O dispositivo exige, salvo exceções legais, para obras, serviços, compras e alienações, que seja feito processo licitatório para assegurar "igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações".

O UFED Cloud Analyzer não é o único software do tipo. Portanto, não é caso de inexigência ou dispensa de licitação, destaca o docente. Ele também avalia que não dá para adquirir um programa sofisticado desses por ata de registro de preço, que deve ser usada para contratação de bens e serviços rotineiros da administração pública.

Outro problema de usar como referência ata de registro de preços da Polícia Rodoviária Federal, conforme Pedro Serrano, é que o menor custo não é o único fator que guia as licitações.

"Existe o princípio de tratar de forma igual os administrados, ou seja, os potenciais contratantes. O fato de a ata de preços da PRF ter chegado a esse resultado em 2017 não quer dizer que seja o melhor preço. Para se chegar a essa conclusão, seria preciso fazer uma licitação específica para ver hoje, no atual cenário, quem teria condições de praticar o melhor preço. É comum, em licitações específicas, se atingir preço melhor do que nas atas de registro de preço, genéricas como essa da PRF".

Cidadãos espionados
A compra do software via delator e sem licitação é “grave, criminosa e ato de improbidade administrativa”, afirma o criminalista Fernando Augusto Fernandes. Mas o mais grave, em sua visão, é a obtenção, pelo MPF, de um programa que “permite não só a interceptação sem ordem judicial, mas o monitoramento completo de um telefone celular, muito além do objeto de qualquer investigação e sem qualquer possibilidade de fiscalização”.

“A obtenção do software é ilegal, a inclusão de cláusula em uma delação premiada para permitir essa obtenção é criminosa. E a autorização judicial é completamente nula, demonstrando um abuso sem limites do juiz [Marcelo Bretas] e do MPF”, diz o advogado.

Ele declara que o Conselho Nacional do Ministério Público e o Conselho Nacional de Justiça precisam instaurar procedimentos para averiguar a compra de programas de espionagem e apreender todos os equipamentos que tenham esses softwares instalados, com o objetivo de verificar a prática de crime de interceptação de comunicação sem ordem judicial (artigo 10 da Lei 9.296/1996).

Uso do Dispositivo
A empresa que vendeu o equipamento UFED Cloud Analyzer é a Tech Biz Forense Digital. O site da companhia diz que o programa é um "instrumento de investigação original e poderoso" que "coleta automaticamente os dados e metadados existentes na nuvem e os prepara em um formato de análise forense".

"Os examinadores podem pesquisar, filtrar e classificar de forma eficiente os dados para identificar rapidamente detalhes ('Quem? Quando? Onde?') de um crime e avançar em suas investigações." Conforme o site da Tech Biz, "o acesso aos dados privados é instantâneo e é possível obtê-lo com ou sem o consentimento do usuário". A empresa faz a ressalva de que esse acesso facilitado "não exclui a necessidade de mandados de segurança, sendo apenas um facilitador do processo, que costuma ser longo".

"Os citados equipamentos não têm qualquer relação com "espionagem". Trata-se da solução padrão utilizada pela Polícia Federal, polícias civis e até mesmo por CPIs para análise forense de dados de celulares e tablets. Podemos citar como exemplos recentes do seu uso a descoberta de provas importantes no caso do assassinato do menino Henry e a extração de dados de celulares apreendidos na CPI do Covid", disse, em nota, o MPF.

Isto é, prossegue a instituição, "o software não invade qualquer dispositivo de forma remota. Sua única função é extrair e analisar dados de equipamentos apreendidos, por meio de ordem judicial". "A Procuradoria-Geral da República tinha total ciência das aquisições realizadas, tanto que solicitou que alguns kits lhe fossem destinados."

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