Trabalho Contemporâneo

Ainda MPT x Fogo de Chão: realidade e utopia

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27 de julho de 2021, 17h21

Decisões como a da colega Juliana Petenate Salles, juíza do Trabalho Substituta do TRT de São Paulo, renovam as esperanças quanto ao futuro da própria Justiça do Trabalho. O caso cuida de mais uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho, postulando a reintegração de empregados dispensados em massa.

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Diferentemente da decisão de primeiro grau em caso semelhante contra a mesma empresa no Rio de Janeiro, e que analisei em artigo neste mesmo espaço, a colega deu um exemplo do que é ser juiz, saber a diferença entre o desejo e o poder, mostrando a necessidade de se decidir com base na realidade e qual o limite de interferência do Poder Judiciário nos demais poderes, expondo o verdadeiro espírito democrático que deve nortear a magistratura do Trabalho.

O primeiro aspecto importante dessa decisão é a consciência de que existe um mundo ideal, que se encontra na esfera do pensamento, das ideologias, dos desejos, tudo parte da subjetividade do intérprete, sendo evidente que, como seres humanos, nós, juízes, também temos nossas pautas de valores e preconceitos, e que há um mundo real, onde a decisão judicial vai atuar, sendo necessário saber distinguir os papéis de cidadão e de magistrado.

Como já abordei em artigo publicado na Folha de S.Paulo de 28 de maio deste ano, a reforma trabalhista de 2017, ao igualar as demissões em massa às individuais, não andou bem, não fez uma boa escolha. Entretanto, daí a ser inconstitucional essa opção do legislador vai uma longa distância.

Em nosso país vigora o sistema de controle de constitucionalidade concentrado, a ser exercido pelo STF, e difuso, que pode ser realizado por qualquer juiz. Justamente nesse ponto surge o grande problema. São alguns fatores explosivos que podem conduzir a uma tragédia: controle difuso, formação humanística que pende para o trabalhador, pós-positivismo ou neoconstitucionalismo (em sua versão, digamos, vulgar), ativismo judicial e ausência de responsabilidade.

Essa combinação de fatores leva estudiosos do Direito do Trabalho a produzir uma doutrina de "resistência", trazendo para o campo do Direito a luta dos trabalhadores contra a exploração capitalista. Até aí, tudo bem, cada um que produza seu pensamento conforme sua ideologia. O problema é a transposição desse estado de coisas para o Poder Judiciário, via condenações por seus juízes.

Magistrados, como incansavelmente procuro demonstrar, não possuem poderes ilimitados, não são revolucionários, não defendem uma causa para um ou outro lado, mas apenas aplicam a Constituição e as leis, sempre a partir da presunção de constitucionalidade da produção legislativa.

Conforme defendi em interessante debate nesta segunda-feira (26/7), no programa Justa Causa da Escola Judicial, do TRT-1, para se aplicar a tese da obrigatoriedade de negociação prévia com o sindicato dos trabalhadores como condição para a dispensa coletiva o juiz precisaria: criar um requisito não previsto em lei como fundamento de validade de um ato (o que em regra somente pode ocorrer através de previsão expressa em norma de ordem pública, conforme princípio da legalidade contido no artigo 5º, II, da CF); criar um conceito do que seria "dispensa coletiva", pois não há nenhuma regulamentação acerca do tema no ordenamento jurídico brasileiro; e, finalmente, criar a consequência jurídica pelo fato do empregador não observar o requisito criado pelo juiz para realizar a dispensa.

São três criações em sequência para ser aplicável a tese da inconstitucionalidade do artigo 477-A da CLT. É muito, não? E pior, cada juiz vai dar a sua versão para esses três elementos, fora os que, como eu, não reconhecerão a inconstitucionalidade. E, enquanto isso, o jurisdicionado não tem a menor ideia do que fazer, ficando sujeito a reintegrar pessoas em atividades empresariais que não mais existem e/ou sofrendo condenações milionárias por dano moral coletivo. Salve-se quem puder.

Não poderia deixar de celebrar, portanto, a decisão da colega de São Paulo, um bálsamo para quem deseja ver frutificar a Justiça do Trabalho em seu real papel: ser uma casa de Justiça, reconhecendo seus limites, sem qualquer tipo de ativismo de resistência ao programa legislativo de regulação do trabalho humano.

Por outro lado, a defesa de que a norma em vigor, o citado artigo 477-A da CLT, não veda a imposição de negociação coletiva como requisito para a dispensa coletiva, pois apenas fixa não ser necessária autorização prévia do sindicato, nem acordo ou convenção coletiva, constitui o reconhecimento da falência do próprio movimento sindical.

Por quê? Porque realizada a dispensa em massa, nada impede que o sindicato da categoria produza o fato social buscando a negociação com o empregador, ainda dentro do aviso prévio, não sendo necessária a intervenção do Estado, por lei ou pelo Poder Judiciário, para que o ente sindical possa fazer valer sua força.

No fundo, o que se percebe é uma sucessão de erros históricos que desaguam na Justiça do Trabalho através do desejo de se encontrar um juiz herói, que através da jurisdição vai erradicar todos os males e salvaguardar todos os interesses dos postulantes, a ponto de não se ver o próprio sindicato buscando o diálogo, deixando para outro órgão estatal, o Ministério Público do Trabalho, a defesa dos integrantes da categoria que representa.

Não se diga que a reforma trabalhista, que extinguiu a contribuição sindical compulsória, é a responsável pelo enfraquecimento do movimento sindical, pois essas mazelas perseguem a área trabalhista há décadas, ao menos é essa a impressão que se tem no exercício da jurisdição de primeiro grau.

O que falta no Brasil é a assunção das próprias narrativas e responsabilidades, sem esperar que o poder público resolva questões que devem ser objeto de solução pelos próprios interessados. No caso específico da dispensa coletiva, sequer o sindicato dos trabalhadores seria, a meu ver, o principal interlocutor de um diálogo social para reduzir o impacto da perda dos empregos, pois cada trabalhador já recebe, por lei, suas verbas resilitórias e saca o FGTS com a indenização de 40%, além do amparo do seguro-desemprego.

O verdadeiro mal de dispensas coletivas, principalmente em cidades pequenas, é o impacto para o mercado, para a cadeia produtiva, para a economia local, sendo certo que o sindicato dos trabalhadores dispensados não possui legitimidade para assumir a negociação para resolver todos esses aspectos. No máximo, vai obter alguma indenização a mais para os trabalhadores dispensados, o que é louvável, mas não suficiente, nem atende ao real problema desse fato social.

A minha utopia, portanto, é que a legislação mude para fomentar o diálogo social sempre que uma empresa precisar realizar dispensa em massa, ou então que o STF fixe tese vinculante nesse sentido. Enquanto meu sonho não se realizar, sigo com a realidade, aplicando a norma em vigor, pois das várias interpretações possíveis, tenho o dever de escolher a que guarda a constitucionalidade da lei por respeito ao Poder Legislativo e à democracia.

Autores

  • é juiz do Trabalho no TRT-RJ, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP e diretor da escola associativa da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho (ABMT).

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