Opinião

O ministro Marco Aurélio e as audiências públicas do Supremo Tribunal Federal

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27 de julho de 2021, 9h12

Nas audiências públicas realizadas pelo Supremo Tribunal Federal, facilmente se verifica a existência de uma relação entre Direito, política e ciência.

No último dia 12, ao completar 75 anos de idade, o ministro Marco Aurélio Mello se aposentou do cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, após 31 anos na mais alta corte do país. Nomeado pelo ex-presidente da República Fernando Collor de Mello, o magistrado é constantemente lembrado por restar isoladamente vencido em muitos julgamentos, bem como por sua iniciativa de, quando na presidência do tribunal, implantar a TV Justiça. O que poucos comentam, entretanto, é a inauguração, pelo ministro, das hoje recorrentes audiências públicas.

Marco Aurélio foi quem pela primeira vez convocou uma audiência pública, dando vazão ao que Gilmar Mendes havia introduzido em legislação específica no final dos anos 90 — Leis 9668 e 9882. Ainda que não tenha sido a primeira realizada, dado que precedida pelas oitivas a respeito das células-tronco embrionárias (ADI 3510, ministro Carlos Ayres de Britto) e da importação de pneus usados (ADPF 101, ministra Cármen Lúcia), foi o ministro Marco Aurélio quem primeiro chamou representantes de setores organizados e especialistas para prestarem esclarecimento sobre matéria de fato em uma ação de controle de constitucionalidade: a ADPF 54. Tempos depois, convocou mais duas audiências públicas, referentes ao julgamento do "caso do amianto" (ADI 3973) e do Programa Mais Médicos (ADI5037). Mas, naquela primeira ocasião, falamos aqui do ano de 2004, após a expedição de cautelar em favor das gestantes de feto anencéfalo, no sentido de permitir que procedessem à interrupção da gravidez, vista como operação terapêutica, acabou mostrando-se sensível à repercussão política que a medida havia provocado.

Na preparação da plenária convidou, então, entidades como a CNBB e o grupo Católicas pelo Direito de Decidir, que já haviam requerido o ingresso como amicus curiae, para ouvi-las em audiência pública. Mas foi além: não só ouviu grupos políticos, como convocou também entidades representativas da área médica, como o Conselho Federal de Medicina, a Sociedade Brasileira de Medicina Fetal e a Sociedade Brasileira de Genética Clínica, para que pudessem oferecer informações mais precisas sobre o que a corte deveria decidir. No caso, a definição de anencefalia para as condições de um diagnóstico preciso e as possibilidades de sobrevivência do feto com esse tipo de anomalia. Como justificativa, nos despachos de convocação o ministro já fazia constar que "devem ocorrer audiências públicas para ouvir entidades e técnicos não só quanto à matéria de fundo, mas também no tocante a conhecimentos específicos a extravasarem os limites do próprio Direito" [1].

Era a primeira vez que isso acontecia no STF, e não havia parâmetros normativo que definissem a forma de convocação de uma audiência pública, atualmente feita por meio de edital público. A previsão já constava nas leis que regulamentam o processo de controle de constitucionalidade das leis, mas o Regimento Interno da corte nada dispunha, o que só veio a acontecer em 2009, por força da Emenda Regimental nº 29. Não obstante, o ministro soube conduzir as oitivas de modo a propiciar a ampla circulação de teses e opiniões, o que acabou por contribuir significativamente para a decisão final do Plenário do Supremo, que julgou como constitucional a interrupção gestacional de feto dotado de anencefalia.

Em decorrência da audiência pública da ADPF 54, o ministro Marco Aurélio, relator, valeu-se da verdade científica para justificar seu voto. A garantia, por parte de especialistas, de que havia condições técnicas suficientes para se obter um diagnóstico preciso dos casos de anencefalia, e de que não havia condições de sobrevida para os fetos anencéfalos foi suficiente para o ministro formar convicção e mostrar o acerto da sua decisão. Muito embora, vale lembrar, não ter sido este um resultado unânime entre os especialistas presentes. Não obstante, podemos dizer que o tribunal, ao decidir, estabeleceu algum tipo de consenso na comunidade científica. O diagnóstico de que um fenômeno poderia ser apontado, com objetividade e exatidão, como anencefalia, passou a produzir direitos e obrigações, ganhando espaço institucional e se tornando amplamente conhecida como algo verdadeiramente existente.

Com as primeiras audiências públicas realizadas em 2004 — contamos hoje com 36 —, o STF passou a dispor da presença de especialistas e representantes de grupos de interesse em audiência pública para legitimar suas decisões, seja pelo aspecto político, seja pelo aspecto científico. Devemos, portanto, a iniciativa dessa prática ao ministro Marco Aurélio, cuja história na corte somar-se-á à história do Judiciário brasileiro.

A abertura para especialistas, a partir de então, permitiu que passássemos a observar um elemento fundamental na jurisdição constitucional: o testemunho de especialistas sobre matéria de fato e a sua colaboração efetiva para o processo de tomada de decisão. Isso corresponde ao que Kenneth Culp Davis [2] denominou de "fatos legislativos". O autor norte-americano, nos anos 40, chamou a atenção da Filosofia e da teoria do Direito para a utilização de matéria de fato não só com propósitos pretéritos, de adjudicação do Direito, mas também com alcance futuro, considerando-se os efeitos prospectivos das decisões administrativas e judiciais. Questão essa que se adensa ao considerarmos os efeitos políticos do controle de constitucionalidade de leis. Por fim, é nas audiências públicas que percebemos, com clareza, a inter-relação entre Direito, política e ciência, cabendo-nos perguntar até que ponto a ciência serve ao Direito e até que ponto é servida pelo Direito.

 


[1] Acompanhamento processual disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2226954.

[2] DAVIS, Kenneth Culp. An approach to problems of evidence in the administrative process. 55 Harvard Law Review 364, 1942.

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