Opinião

Clemência no Tribunal do Júri: divergências entre STF e STJ

Autor

  • Leonardo de Vargas Marques

    é servidor público federal e integrante de carreira de gestão da Secretaria Especial de Fazenda do Ministério da Economia em exercício no Ministério da Mulher Família e Direitos Humanos (MMFDH).

27 de julho de 2021, 10h17

Introdução
O Código de Processo Penal (CPP) pátrio, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3/10/1941, passou por significativa reforma introduzida pela Lei nº 11.689, de 9/6/2008. O objeto principal de mudança foram os procedimentos judiciais do Tribunal do Júri, tendo a alteração legislativa contemplado inclusive a ordem dos quesitos a serem formulados perante o Conselho de Sentença.

Os tribunais excepcionais (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça) possuem interpretações dissonantes sobre dispositivos que compõem a Seção XIII ("Do Questionário e sua Votação") do Capítulo II ("Do procedimento relativo aos processos da competência do Tribunal do Júri") do CPP. Por isso, faz-se mister analisar sucintamente a divergência acerca dos limites da absolvição por clemência e as implicações da unificação da absolvição em um único quesito (inciso III do artigo 483 do CPP).

As divergências jurisprudenciais
Encerradas as etapas de acusação e instrução preliminar, de instrução em plenário e de debates, sequencialmente questiona-se o Conselho de Sentença sobre a matéria de fato, sobre a autoria ou participação, e se o acusado deve ser absolvido. A ordem em que os quesitos devem ser formulados aos jurados está disposta no artigo 483 [1] do CPP.

O ponto nevrálgico seria como interpretar a inovação do legislador a partir do inciso III do artigo 483. Para Lima (2020) [2], a intenção do legislador foi concentrar as diversas teses absolutórias em um único inciso, de modo a pôr fim "às inúmeras nulidades decorrentes da sistemática anterior à Lei n. 11.689/08, que exigia o desdobramento de cada quesito defensivo em tantos quantos fossem necessários para colher a manifestação da vontade do jurado" (Lima, 2020, pág. 1527). Ou seja, Lima (2020) discorda da tese de que o legislador teria outorgado ampla e irrestrita autonomia ao corpo de jurados:

"Fosse a intenção do legislador outorgar aos jurados ampla e irrestrita autonomia em seu processo decisório, deixando-os desvinculados às teses suscitadas em plenário pela defesa e/ ou a fundamentos de índole estritamente jurídica, é de todo evidente que teria suprimido todos os demais quesitos (v.g., materialidade, autoria, causas de diminuição de pena, etc.), deixando apenas aquele atinente à absolvição do acusado, o que, de fato, não ocorreu" (Lima, 2020, pág. 1527).

Há entendimento assemelhado no âmbito do Tribunal da Cidadania, inclusive de que "após a Lei 11.689/2008, foram unificadas teses defensivas em um único quesito obrigatório (artigo 483, inciso III, do CPP)" (HC 190.264 — PB, 5ª Turma, relatora ministra Laurita Vaz, 26.08.2014, Informativo 545). Em julgado ainda mais recente do tribunal, sob a relatoria do ministro Joel Ilan Paciornik, questionaram-se os limites da absolvição por clemência.

"3. A absolvição do réu pelos jurados, com base no artigo 483, III, do CPP, ainda que por clemência, não constitui decisão absoluta e irrevogável, podendo o Tribunal cassar tal decisão quando ficar demonstrada a total dissociação da conclusão dos jurados com as provas apresentadas em plenário. Assim, resta plenamente possível o controle excepcional da decisão absolutória do júri, com o fim de evitar arbitrariedades e em observância ao duplo grau de jurisdição. Entender em sentido contrário exigiria a aceitação de que o conselho de sentença disporia de poder absoluto e peremptório quanto à absolvição do acusado, o que, ao meu ver não foi o objetivo do legislador ao introduzir a obrigatoriedade do quesito absolutório genérico, previsto no artigo 483, III, do CPP" (STJ – HC: 313251 RJ 2014/0345586-7, Relator: ministro Joel Ilan Paciornik, data de julgamento: 28/2/2018, S3 – 3ª Seção, data de publicação: DJe 27/3/2018 RSTJ vol. 250 p. 684).

Diferentemente, no Pretório Excelso, não é essa a interpretação que prevalece. Mais recentemente ainda, o tema foi objeto de julgado sob a relatoria do ministro Marco Aurélio.

"Júri — absolvição. A absolvição do réu, ante resposta a quesito específico, independe de elementos probatórios ou de tese veiculada pela defesa, considerada a livre convicção dos jurados — artigo 483, § 2º, do Código de Processo Penal" (STF – HC: 178777 MG 0033658-62.2019.1.00.0000, relator: Marco Aurélio, Data de Julgamento: 29/9/2020, 1ª Turma, data de publicação: 14/12/2020)

Conclusão
O Pretório Excelso parece ter se filiado à tese de que o Conselho de Sentença seria soberano em seu pronunciamento, garantindo-se aos jurados a plena liberdade de formar suas convicções, até mesmo em razão de elementos de natureza metajurídica.

Cremos que a concepção do Pretório Excelso sobre a soberania dos veredictos se percebe desde que se analisa sua interpretação sobre a decisão do juízo sumariante que encerra a primeira fase do procedimento judicial do Tribunal do Júri (judicium accusationis). Trata-se da decisão do juiz pela pronúncia, impronúncia, absolvição sumária ou desclassificação.

A pronúncia se dá sob influência do princípio in dubio pro societate, "se houver dúvida razoável, em lugar de absolver, como faria em um feito comum, deve remeter o caso à apreciação do juiz natural, constitucionalmente recomendado, ou seja, o Tribunal do Júri" (Nucci, 2020, pág. 1466) [3]. O Supremo Tribunal Federal (STF), desde paradigmático julgado de relatoria do ministro Ilmar Galvão [4], tem consagrado a prevalência do princípio in dubio pro societate.

Assim, parece-nos coerente a absolvição pelos mais variados motivos, mesmo que por clemência, por parte do Conselho de Sentença do Tribunal do Júri. Isso porque se trata de instituto cujas características remontam às do modelo originário na Magna Carta de 1215 [5], em que se buscou constituir uma instituição soberana e acima do espectro de influência de qualquer outro poder [6]

Dessarte, talvez em reconhecimento à sua soberania, lhe sejam também atribuídos os casos em que há dúvida sobre materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação que impeça absolvição sumária na judicium accusationis.

 


[1] "Artigo 483 – Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre:
I — a materialidade do fato;
II — a autoria ou participação;
III — se o acusado deve ser absolvido;
IV — se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa;
V — se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação;
VI — 1º. A resposta negativa, de mais de 3 (três) jurados, a qualquer dos quesitos referidos nos incisos I e II do caput deste artigo encerra a votação e implica a absolvição do acusado.
§2º. Respondidos afirmativamente por mais de três jurados os quesitos relativos aos incisos I e II do caput deste artigo será formulado quesito com a seguinte redação: O jurado absolve o acusado?".

[2] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único / Renato Brasileiro de Lima — 8. ed. rev., ampl. e atual. — Salvador: Ed. JusPodivm, 2020. 1.952 p.

[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado — 19. ed. — Rio de Janeiro: Forense, 2020.

[4] (STF – HC: 73512 RJ, Relator: Min. ILMAR GALVÃO, Data de Julgamento: 23/04/1996, PRIMEIRA TURMA, data de publicação: DJ 01-07-1996 PP-23862 EMENT VOL-01834-01 PP-00189)

[5] No free man shall be seized or imprisoned, or stripped of his rights or possessions, or outlawed or exiled, or deprived of his standing in any way, nor will we proceed with force against him, or send others to do so, except by the lawful judgment of his equals or by the law of the land. Texto original da Magna Carta traduzido para o inglês moderno. Disponível em: <https://www.bl.uk/magna-carta/articles/magna-carta-english-translation>. Acesso em: 09 abr. 2021.

[6] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal, 18º ed., editora Atlas, 2014.

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    é servidor público federal e integrante de carreira de gestão da Secretaria Especial de Fazenda do Ministério da Economia, em exercício no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH).

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