Opinião

Licenciamento ambiental, patrimônio cultural e o 'Direito do cavalo'

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27 de julho de 2021, 13h36

No último dia 10 de junho, em cerimônia realizada no Palácio do Planalto, foi lançado o Sistema de Avaliação de Impacto ao Patrimônio (Saip), idealizado e desenvolvido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) visando a dar maior celeridade e segurança jurídica à análise dos processos de licenciamento ambiental.

O lançamento do sistema informatizado não causou maiores repercussões, mas a ideia de que o empreendedor possa obter a anuência da autarquia para realização de seu empreendimento em apenas 45 minutos foi recebida com ressalvas [1]. Sem desconsiderar que erros e desvios são possíveis em qualquer instituição pública, há de se ter atenção para que o medo da disrupção não paralise boas práticas administrativas.

Com efeito, ainda na década de 1990, o juiz norte-americano Frank Easterbrook [2] causou silêncio constrangedor em um evento na Universidade de Chicago ao se referir ao Direito Digital (cyberlaw) como o "Direito do cavalo" (law of the horse). Para ele, um contrato ou a propriedade digital não difeririam essencialmente de um contrato ou propriedade de um cavalo e, portanto, um advogado ou juiz não precisaria entender de cavalos ou de computadores para dar solução a eventuais conflitos surgidos.

O silêncio eloquente foi seguido de tímidos aplausos protocolares e a provocação talvez caísse no esquecimento não fossem os comentários posteriormente publicados por Lawrence Lessig [3], à época e ainda hoje grande estudioso do assunto. O professor da Universidade de Harvard propôs a relevância da arquitetura digital como forma de regular o comportamento humano, ressaltando a importância de se estudar o tema também sob o ponto de vista jurídico.

As décadas se passaram e a história mostrou que Lessig estava certo. Nunca existiu de fato um "Direito do cavalo", mas Direito Digital é hoje disciplina obrigatória no bacharelado [4]. E atualmente não é difícil entender que, em termo de regulação, uma limitação de postagem inserida no algoritmo de uma rede social é muito mais eficaz do que uma lei que proíba esse mesmo comportamento.

Nessa esteira, o recém-lançado sistema do Iphan não pode ser visto com base no "Direito do cavalo", é dizer, em premissas antigas. Deve ser observado, e mesmo criticado, à luz das novas concepções regulatórias que se impõem ao poder público. A sociedade não é mais a mesma e é esperado — quiçá exigido — que o Estado a ela se adapte. Falemos então do Direito para depois tratar do cavalo.

A participação do Iphan no licenciamento ambiental foi regulada, em âmbito federal, pela Portaria Interministerial nº 60, de 24/3/2015, e detalhada internamente pela Instrução Normativa nº 01, de 25/3 do mesmo ano. Em síntese, a autarquia recebe informações através de uma ficha de caracterização da atividade (FCA), emite orientações por um termo de referência específico (TRE) e analisa os estudos entregues pelo interessado para aprovar ou não a obra ou atividade proposta, com ou sem fixação de condicionantes.

Nessa oportunidade, o patrimônio cultural é visto sob três perspectivas diferentes: 1) patrimônio material, acautelado através de tombamento ou valoração; 2) patrimônio imaterial, protegido mediante registro; e 3) patrimônio arqueológico, que, seja tombado ou não, goza de proteção ex lege, ou seja, automática, independente de um ato administrativo que a constitua.

Essa característica do patrimônio arqueológico é que torna tão relevante e desafiadora a intervenção do Iphan no licenciamento ambiental, a ponto de muitas vezes até mesmo especialistas restringirem a atuação da autarquia federal a essa perspectiva em específico. Essa distinção, contudo, é nodal para a compreensão do funcionamento do Saip.

Nessa esteira, os bens tombados, valorados, registrados e o patrimônio arqueológico já identificado e inserido no banco de dados da autarquia não trazem grande dificuldade de estudo, exame e decisão. Nessas situações, seja para permitir ou não o empreendimento, fixar ou não certas condicionantes, já se tem conhecimento prévio das variáveis envolvidas.

A dificuldade se dá no que tange aos chamados achados fortuitos [5], aquele patrimônio arqueológico descoberto principalmente na fase de instalação do empreendimento e que, mesmo desconhecido pelo empreendedor e pelos órgãos públicos, já goza de proteção legal pelo simples fato de existir [6]. Há uma linha de equilíbrio entre a proteção do patrimônio cultural e a livre iniciativa, que deve garantir que esse bem comum seja minimamente acautelado sem um efeito paralisante sobre a atividade econômica.

O Iphan traçou essa linha através da sua IN nº 01/2015, notadamente no seu anexo II. Ali foram listados, com base em experiência internacional e no cotidiano dos órgãos ambientais, os empreendimentos mais comuns, categorizados por seu porte e potencial poluidor/degradador. A partir dessa classificação, definiram-se quatro níveis de atuação, de acordo com a probabilidade de serem localizados achados fortuitos e o risco de perecimento.

Esses níveis, portanto, não dizem respeito ao patrimônio cultural conhecido: bens tombados, valorados, registrados e os bens arqueológicos já identificados e cadastrados. Tratam daquilo que possa vir a ser descoberto, mas que já é acautelado por expressa determinação legal. Não se lida com certeza, mas com probabilidade e risco.

Com efeito, se em algumas situações não era possível obter a anuência do Iphan em 45 minutos, isso não se dava por uma necessidade de análise técnica aprofundada, mas, sim, por mera burocracia no trâmite processual. Afinal, para os empreendimentos enquadrados nos níveis mais baixos e que não afetassem diretamente algum bem cultural já conhecido, exigia-se do empreendedor somente a assinatura de um termo de compromisso (nível 1) ou a contratação de acompanhamento arqueológico (nível 2).

Essa categorização foi muito criticada à época e até mesmo contestada judicialmente [7]. No entanto, o passar dos anos demonstrou que o resultado foi exatamente o oposto do que se temia. Mesmo havendo muito a evoluir, os dados mostram desde então um incremento quantitativo e qualitativo nas análises feitas pelo Iphan, notadamente nos estados em que os órgãos licenciadores se propuseram a trabalhar de maneira cooperativa.

O Saip, portanto, não é um marco inicial, mas um marco de continuidade desse processo mais amplo de gestão eficiente da Administração, que visa a alocar recursos em atividades mais relevantes e simplificar as repetitivas e de menor significância. Apesar de ser um marco de continuidade, isso não significa que não haja inovações a serem pontuadas.

O recém-lançado sistema avança principalmente ao introduzir parâmetros prévios e abstratos que permitam fazer uma triagem automatizada dos empreendimentos os quais demandem um olhar diferenciado daqueles cujo potencial degradador seja mínimo ou mesmo inexistente. Não se está falando de critérios para análise de mérito, mas, sim, para um crivo inicial.

Por exemplo, para os bens tombados que não possuam poligonal de tombamento e entorno definidas e cadastradas no Sistema Integrado de Conhecimento e Gestão (SICG), foram criadas as chamadas Zonas de Requisição de Parecer (ZRP). Assim, se houver sobreposição entre a ZRP e a Área de Influência Direta (AID) do empreendimento, o sistema automaticamente encaminha o processo para análise manual. Do contrário, ao menos sob esse aspecto, isso não se faz necessário.

Mas não é só isso. Além de parâmetros de triagem, foram instituídos também diretrizes básicas para os empreendedores, a constarem no TRE expedido automaticamente pelo sistema. Pode-se citar, nesse sentido, a exigência de relatório de avaliação de impacto aos bens registrados quando a AID se sobrepuser à Área de Ocorrência do Bem Registrado (AOBR). Mas, nesse caso, a automatização diz respeito apenas à exigência constante no TRE, não ao exame do estudo em si, que continuará sendo feita manual e individualmente.

Vale salientar que esses e outros critérios foram definidos pelo Iphan a partir da experiência adquirida com o tempo e estão detalhados na sua Portaria nº 25, de 15/6/2021. Naturalmente, como em qualquer atividade regulatória, os resultados devem ser constantemente monitorados e, se necessário, os parâmetros devem ser modificados para corrigir possíveis distorções.

Destarte, sem prejuízo do indispensável controle social e interinstitucional, o Saip parece ser um importante instrumento para aumentar a eficiência e celeridade do licenciamento ambiental. Mais significativo ainda, é o primeiro passo para uma etapa posterior e, ao que tudo indica, inevitável: a utilização, nesse processo, de inteligência artificial.

Não se está referindo aqui a uma inteligência artificial forte, aquela capaz de equiparar e até mesmo superar a percepção humana. A inteligência artificial fraca já é uma realidade entre nós e está presente nas tarefas mais básicas do cotidiano, de redes sociais a assistentes de voz, de estratégias de marketing a estudos de viabilidade econômica.

Nesse sentido, é bastante provável que em algum momento próximo se comece a pensar não mais em aplicação automatizada de critérios pré-definidos de triagem, exigências e mesmo de análise de mérito, mas, sim, em algoritmos para que o próprio sistema passe a criar esses parâmetros.

Essa perspectiva não foi antevista por Easterbrook, mas o foi por Lessig ao cunhar a expressão "code is law" [8]. De fato, se por um lado não se pode ter medo da disrupção tecnológica, por outro é importante que a sociedade e os órgãos de controle estejam atentos a isso para evitar malfeitos propositais, ou, o que é mais provável, erros inconscientes.

Essa vigilância demanda atualização do pensamento jurídico, aprofundamento interdisciplinar [9], e não o simples receio do novo. Nesse sentido, certamente existem problemas pontuais a serem corrigidos, mas, de uma forma geral, criticar a anuência automatizada do Iphan em situações corriqueiras, repetitivas e de baixo impacto cultural é retomar a ideia do "Direito do cavalo", em outras palavras, olhar o mundo atual com premissas ultrapassadas.

 


[1] Por exemplo, v. o último parágrafo na notícia publicada pela Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB). Disponível em: <https://www.sabnet.org/informativo/view?TIPO=1&ID_INFORMATIVO=1105>. Acesso em 14 jun. 2021.

[2] EASTERBROOK, Frank H. Cyberspace and the Law of the Horse. University of Chicago Legal Forum, v. 207, p. 207—216, 1996.

[3] LESSIG, Lawrence. The Law of the Horse: what cyberlaw might teach. Harvard Law Review, v. 113, p. 501-549, 1999.

[4] Parecer CNE/CES nº 757/2020, aprovado pelo Ministro da Educação através do Despacho s/nº, de 14 de abril de 2021.

[5] A terminologia "achado fortuito" vem sendo evitada pelo Iphan nas hipóteses em que há estudos prévios que permitam sua identificação e localização. Optou-se aqui por manter a nomenclatura em razão de sua consolidação acadêmica e profissional, bem como pela falta de um termo ou expressão que lhe substitua.

[6] Conforme a Lei nº 3.924, de 26 de julho de 1961.

[7] Ação civil pública nº 0014563-34.2017.4.02.5101, movida pelo Ministério Público Federal, extinta sem resolução de mérito por inadequação da via eleita.

[8] LESSIG, Lawrence. Code and other laws of cyberspace. New York: Basic Books, 1999.

[9] Aprofundamento interdisciplinar não quer dizer ignorar as especialidades. Um advogado pode ter noções básicas que lhe permitam compreender o funcionamento de um algoritmo, o que não significa que ele seria capaz de desenvolver esse mesmo código.

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