Opinião

Codicilo: definindo os últimos desejos antes que seja tarde

Autor

  • Ivone Zeger

    é advogada especialista em Direito de Família e Sucessão e autora das obras "Família: Perguntas e Respostas" "Herança: Perguntas e Respostas" e "Direito LGBTI: Perguntas e Respostas".

26 de julho de 2021, 13h05

Você sabe o que é mistanásia? Significa "morte infeliz, miserável e evitável", um contexto que ocorre em países em que há desigualdade social, como no Brasil. A palavra e o que ela significa pareciam longe da realidade de muita gente. Na atualidade, entretanto, expressa a condição de todos os cidadãos, sem distinção de classe social. Não há para onde correr. A pandemia da Covid-19 chegou a tal magnitude que colapsou o atendimento em hospitais públicos e privados, onde se verifica a ocupação de leitos de UTI ultrapassando os 90% e a falta de remédios, equipamentos e profissionais capacitados. São Paulo, o estado mais rico e populoso, é o epicentro da Covid-19 no Brasil, em seu momento mais grave. 

A crise sanitária provocada pela Covid-19 é mundial e abala alicerces em todos os âmbitos da vida. O cuidar de si tornou-se exigência inadiável, tendo em vista a própria saúde e a dos demais. Basta se colocar um minuto no lugar de um paciente de Covid-19 que esteja consciente, em casa ou num leito hospitalar, para imaginar as muitas preocupações. Uma delas, sem dúvida, é o pensamento acerca de qual destino terão suas relíquias pessoais, sentimentais; devem rondar na cabeça os desejos que não foram expressos aos familiares e amigos, e ainda aqueles desejos que ocorrem de última hora, além de providências que ele julga necessárias caso o seu falecimento sobrevenha.

As leis de sucessão e herança têm um instrumento específico para esse momento: o codicilo. Por meio do codicilo, a pessoa pode legar objetos pessoais de pouco valor. O artigo 1881 do Código Civil caracteriza esse instrumento da seguinte maneira: "Toda pessoa capaz de testar poderá, mediante escrito particular seu, datado e assinado, fazer disposições especiais sobre seu enterro, sobre doações de pouca monta a certas e determinadas pessoas, ou indeterminadamente, assim como legar móveis, roupas ou jóias, de pouco valor, de seu uso pessoal". O codicilo não precisa da assinatura de testemunhas e podem realizá-lo pessoas com mais de 16 anos, capazes.

Poucas pessoas têm conhecimento de que é possível determinar suas últimas vontades por meio de um instrumento tão simples quanto o codicilo. Por outro lado, pessoas infectadas ou já internadas estão inacessíveis ao contato presencial, que se torna possível apenas por meio de celulares. Diante desse fato e do caos instaurado com a crise sanitária, a despeito da obrigatoriedade da forma escrita, datada e assinada, e com a tecnologia sendo o instrumento incontornável nesse momento e pelo resto dos tempos, entendo que o Judiciário deveria aceitar gravações em vídeo ou videoconferência do autor realizando seu codicilo. Não há razão para negar legitimidade a um codicilo realizado dessa maneira. É uma questão humanitária. As pessoas e o Judiciário precisam ser sensibilizados para essa possibilidade.

De fato, a morte tem rondado os pensamentos e sentimentos das pessoas de tal maneira que muitos já fizeram essa espécie de "listinha'' de pedidos especiais aos familiares. É uma maneira até salutar de encarar os acontecimentos, acomodando afetos. Por exemplo, o codicilo oferece a possibilidade de reconhecimento de filhos fora do casamento. Também acomoda recomendações do tipo quem cuidará do animal de estimação, quem ganhará a coleção de selos ou canetas ou determinações para o velório e enterro. Pois essa "listinha" tem valor legal, e não importa se o autor tenha ou não testamento realizado. Conforme determinado pelo Código Civil, é possível destinar relíquias e objetos de valor sentimental em documento no papel, datado e assinado, e deixá-lo a uma pessoa de confiança — um familiar, amigo ou advogado — para que seja aberto após o falecimento.

A lei não estipula limites para os valores desses objetos, pois tal avaliação depende do conjunto de bens da pessoa. O bom senso dita que os bens a serem destinados no codicilo não podem ultrapassar 10% do patrimônio do seu autor. No codicilo, não é possível listar imóveis, mesmo que de pouco valor; para isso, só mesmo o testamento, em que o autor pode dispor 50% do seu patrimônio a quem ele desejar. Os outros 50% são obrigatoriamente destinados aos herdeiros necessários. O autor só poderá dispor em testamento a totalidade do seu patrimônio se não tiver descendentes, na falta destes os ascendentes e sempre em concorrência com cônjuge ou companheiro.

É importante saber que o codicilo, assim como o testamento, pode ser modificado a qualquer momento. Ou seja, se a forte emoção ou o momento tão delicado da pandemia interferiram na realização do codicilo, e o que foi determinado não fizer mais sentido no futuro, ele pode ser inutilizado ou substituído. O testamento pode revogar o codicilo ou testamento anterior, mas o codicilo não tem o condão de revogar o testamento. O que todos esperamos agora é passar por essa crise sanitária sãos e salvos. Mas, enquanto a crise perdurar, vale a pena organizar seus últimos desejos.

Autores

  • Brave

    é advogada especialista em Direito de Família e Sucessão, integrante da Comissão de Direito de Família da OAB-SP e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) e autora dos livros "Herança: Perguntas e Respostas", "Família: Perguntas e Respostas" e "Direito LGBTI: Perguntas e Respostas".

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