Opinião

Precisamos falar sobre vulnerabilidade policial

Autor

  • Maurilio Casas Maia

    é doutor em Direito Constitucional (Unifor) mestre em Ciências Jurídicas (UFPB) pós-graduado em Direito Civil e Processual Civil e em Direito Público: Constitucional e Administrativo (Ciesa) professor do programa de pós-graduação em Direito (PPGD) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e defensor público (DP-AM).

26 de julho de 2021, 19h15

A recente e trágica visão do vídeo no qual "(a)dvogado é segurado por PMs" e "leva série de socos no rosto e é arrastado em calçada de Goiânia" despertou revolta social por todo o Brasil. E com razão. É estarrecedora a ideia de que policiais, primeiros garantidores da legalidade nas ocorrências diuturnas nas ruas brasileiras, estariam tendentes a extrapolar as mesmas leis, às quais juram servir por ofício, até mesmo às claras e em plena luz do dia. Portanto, não é de se estranhar a existência de notas de repúdio (vide a nota de repúdio da Ordem dos Advogados do Brasil de Goiás, ou OAB/GO) e eventuais outros rechaços, além de eventuais vindouras persecuções administrativas e penais para apuração de responsabilidades.

Com efeito, este texto não tem por objetivo ser "mais do mesmo" sobre punição aos abusos policiais ou qualquer coisa em tal linha. Na verdade, o presente artigo tem a finalidade de expor alguns elementos da "vulnerabilidade policial" como grande causadora de muitas posturas socialmente patológicas relatadas como decorrência de abuso policial. Tragicamente, a invisibilidade dessa forma de vulneração nas rodas científicas e sociais pode enfraquecer o combate eficaz e pela raiz da violência policial abusiva.

Por "vulnerabilidades policiais" se devem compreender aquelas decorrentes da situação jurídico-funcional de tais agentes de segurança [1], por consequência do somatório de várias outras formas de vulneração, como, por exemplo, a psicológica, a operacional, a intrainstitucional, a jurídica e a processual. Aliás, longe de qualquer discurso "vitimista" em relação aos policiais, propõe-se que a "vitimização policial" seja analisada às claras, com o objetivo último de diminuir as vulnerabilizações sociais decorrentes de abusos policiais, em especial contra os mais carentes.

Em tal cenário, pesquisa revela que policiais vitimados por "agressões emocionais" em suas corporações estão mais sujeitos a quadros de lesões autoprovocadas e aos suicídios [2]. O Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio (IPPES) divulgou seu "Boletim de Notificação de Mortes Violentas Intencionais entre Profissionais de Segurança Pública no Brasil", no qual constou que, em 2019, ocorreram 83 suicídios consumados e 39 tentativas de suicídio entre policiais. Os números são alarmantes. Em 2018, somente no estado de São Paulo, 104 policiais cometeram suicídio, contra o número de 87 mortos em serviço. Mas não é só. "No Brasil, pelo menos 43 PMs são afastados por dia por transtornos psiquiátricos".

A esta altura, o(a) leitor(a) pode estar questionando: qual a relação entre a saúde mental dos policiais e eventuais abusos narrados (ou constatados) contra a população que deveriam proteger?

Bem, a debilidade da saúde mental policial é um possível estopim para muitas atuações abusivas contra a população mais vulnerável. Somado a isso, os abusos intrainstitucionais, como uma formação abusivamente tóxica  confundindo "hierarquia e disciplina" com "autoritarismo e humilhação" , favorece o quadro de adoecimento mental que inicia o "ciclo da violência policial", quando o agente, já frustrado e adoecido, corre o risco de levar a carga mental explosiva para as ruas contra os mais vulneráveis. Não raras vezes, tais policiais, já adoecidos, assumem cargos superiores e passam a repetir a violência intrainstitucional contra seus "subordinados". Afinal, "quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor", já alertava o educador Paulo Freire.

Portanto, é preciso enfraquecer o "autoritarismo tóxico" adoecedor e deflagrador de muitos abusos sociais evitáveis a partir de quadros de formação não patológicos, democráticos e emancipadores.

No cenário debatido, não se deve olvidar do desserviço social que é o incentivo midiático à violência policial contra os mais vulneráveis  tal "incentivo" aprofunda os quadros de adoecimento da saúde mental e estimula atuações abusivas por inibir freios úteis à evitabilidade das "falhas". Tais "vozes", no mais das vezes, serão as primeiras a "pedir a cabeça" do policial "abusador". Ou seja, as vozes que incitam a violência institucional e aprofundam o adoecimento mental policial são as mesmas que clamarão por sua punição ou que serão omissas nessas ocasiões. Ou seja, o apelo midiático à violência policial aumenta, de algum modo, os riscos policiais.

Nesse contexto, as múltiplas manifestações das "vulnerabilidades policiais" representam um dos fundamentos da possibilidade implantada pela lei "anticrime" (2019) de a Defensoria Pública  constitucional defensora de direitos humanos  atuar na defesa jurídica dos policiais[3] [4] [5], em decorrência de inércia defensiva, por força do artigo 14-A do CPP e do artigo 16-A do CPPM.

Contudo, é preciso ir além e superar atuações meramente reativas e judiciárias, para que o "Estado defensor" lute também pela implantação de uma política de tutela da saúde mental e de condições dignas de trabalho aos policiais para que, ao fim e cabo, policiais também se sintam incluídos na dimensão fraterna dos direitos humanos, e não somente os vejam quando apontados como possíveis violadores. Sem embargo, a atuação extrajudicial em educação em direitos da Defensoria Pública (LC n° 80/1994, artigo 4º, III) é uma das vias protetivo-preventivas e pode ser desenvolvida por parcerias.

Assim, são profiláticas as atuações do "Estado defensor" em prol dos direitos humanos dos policiais, sejam garantindo-lhes o direito humano à audiência de custódia, o direito à liberdade, à escolha do advogado, à saúde mental, aos direitos coletivos  como reconheceu o STJ (AgInt no REsp 1510999/RS) , ou ainda garantindo-lhes o acesso à assistência jurídica nas mais diversas áreas, quando necessitados, como ocorre no Rio de Janeiro, ou ainda em decorrência de questões jurídico-funcionais, quando impossibilitados de constituir advogados, a exemplo do Amazonas, por convênio.

A ideia é que, cuidando da saúde mental e da dignidade na formação policial, reduzam-se a médio e longo prazo os abusos policiais contra os mais vulneráveis. Portanto, deve-se enfraquecer os abusos policiais a partir de sua raiz e origem, tornando a punição algo deixado para segundo plano, elevando-se a importância da atuação preventiva. Policiais com saúde mental em dia têm maior probabilidade de promover atuação saudável à sociedade.

Assim, é imprescindível efetivar uma tríplice dimensão dos direitos humanos quanto aos policiais, pois estes devem ser reconhecidos não somente como: 1) aplicadores; e 2) garantidores dos direitos humanos; como também enquanto 3) destinatários das normas protetivas.

Em suma, a solução para a violência abusiva policial perpassa necessariamente pela implementação de uma formação jurídico-humanista, democrática e emancipadora, que, concomitantemente, apresente-os como aplicadores e garantidores dos direitos humanos mas que, antes de tudo, como seres humanos que são, garanta-lhes a condição de destinatários das normas de direitos humanos e ainda instrumentos para sua defesa, quando tais normas fundantes estiverem em risco ou sob violação.

 


[1] Buscando sistematizar os impactos jurídico-processuais do tema: MAIA, Maurilio Casas. A assistência jurídica aos profissionais da segurança pública na "Lei Anticrime" entre a vulnerabilidade jurídico-funcional e a Defensoria Pública. In: DUTRA, Bruna Martins Amorim. AKERMAN, William. (Org.). Pacote anticrime: análise crítica à luz da Constituição Federal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 295-324.

[2] Miranda, Dayse. (org.). Diagnóstico e prevenção do comportamento suicida na polícia militar do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2016, p. 75.

[3] Esteves, Diogo. Silva, Franklyn Roger Alves. A Assistência Jurídica da Defensoria Pública no Processo Penal  Múltiplas Funções: A Atuação da Defensoria Pública na Assistência Jurídica Criminal. In: silva, Franklyn Roger Alves. O Processo Penal Contemporâneo e a perspectiva da Defensoria Pública. Belo Horizonte: CEI, 2020, p. 97-122.

[4] Oliveira, Thiago Belotti de. A Defesa Técnica no Processo Penal Comum e Militar: A ampla defesa na primeira etapa da persecução penal – artigo 14-A do CPP e artigo 16-A do CPPM. In: silva, Franklyn Roger Alves. O Processo Penal Contemporâneo e a perspectiva da Defensoria Pública. Belo Horizonte: CEI, 2020, p. 353-374.

[5] Casas Maia, Maurilio. Silva, Rachel Gonçalves. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva Jur, 2020. [Coleção "Defensoria Pública Ponto a Ponto"  Coord. Marcos Vinícius Manso Lopes Gomes].

Autores

  • é defensor público do Amazonas, professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), doutor em Direito Constitucional e Ciências Políticas (UNIFOR), mestre em Ciências Jurídicas (UFPB), pós-graduado em “Direitos Civil e Processual Civil” e em “Direito Público: Constitucional e Administrativo” (CIESA) e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

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