Opinião

Parque das Emas: reflexões pelo Direito Internacional do Patrimônio Cultural

Autor

  • Ivonei Souza Trindade

    é advogado e professor de Direito Internacional dos Direitos Humanos no A PARI MUN- Instituto de Investigación y Debate en Derecho (Nuevo Chimbote Peru).

26 de julho de 2021, 20h25

No último dia 13, foi noticiado que o incêndio no Parque das Emas destruiu mais de 20 mil hectares em poucos dias. O referido fato desperta reflexões imediatas e necessárias dentro do Direito Ambiental e do Direito Penal. Neste escrito aqui, entretanto, serão postas algumas considerações sobre esse acontecimento no âmbito do Direito Internacional do Patrimônio Cultural, com ênfase na Convenção da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) sobre o Patrimônio Cultural e Natural da Humanidade de 1972 (Convenção da Unesco de 1972).

O Parque das Emas é considerado Patrimônio Natural da Humanidade pela Unesco desde o ano de 2001, conforme escolha do Comitê do Patrimônio Mundial (CPM) dessa referida instituição. Com base nisso, o Brasil está obrigado a proteger esse lugar situado no Cerrado brasileiro, nos termos da Convenção da Unesco de 1972 [1].

Um patrimônio mundial reconhecido pela Unesco pode ser inserido pelo Comitê do Patrimônio Mundial na Lista dos Patrimônios Mundiais em Perigo (a Lista Vermelha do Patrimônio Mundial), quando houver ameaça de grande degradação do ambiente, nos termos do artigo 11, parágrafo 4º, da Convenção da Unesco de 1972. A inscrição na Lista Vermelha do Patrimônio Mundial significa que o CPM deve pensar em medidas para salvar o local como, por exemplo, utilizar recursos financeiros do Fundo de Proteção do Patrimônio Mundial, segundo o artigo 15 do referido tratado.

O CPM é responsável por reconhecer e excluir os patrimônios culturais e naturais da Unesco, bem como definir aqueles da Lista Vermelha do Patrimônio Mundial. Atualmente, 21 países compõem o CPM, sendo escolhidos dentro da Unesco para um mandato de até seis anos. Na composição atual, o Brasil é um dos países-membros desse órgão [2].

Não há nenhum patrimônio natural mundial do Brasil inserido na Lista Vermelha do Patrimônio Mundial atualmente [3], porém já houve. Em 1999, o Parque Nacional do Iguaçu foi inserido nessa lista em decorrência da construção de uma estrada que dividiu o local e pôs em risco a desvirtuação do ambiente [4]. Esse lugar foi removido dessa lista em 2001, tendo em vista que o Brasil fechou a estrada e se comprometeu a fazer projetos de preservação e proteção do parque, segundo informação da página da Unesco [5].

É possível que um lugar inserido na Lista Vermelha do Patrimônio Mundial perca seu status de Patrimônio Mundial da Unesco, caso tenha perdido por completo características essenciais. Exemplo recente disso aconteceu com a Cidade Mercantil Marítima de Liverpool, lugar presente na Lista Vermelha do Patrimônio Mundial desde 2012, perdendo seu reconhecimento como Patrimônio Mundial da Humanidade no último dia 21, na sessão do CPM realizada na China [6].

Feitas essas considerações, aparecem os quatro seguintes questionamentos acerca da situação do Parque das Emas. Primeiro: é possível que o Parque das Emas entre na Lista Vermelha do Patrimônio Mundial? Segundo: o Brasil pode solicitar ajuda de outros países na recuperação do local atingido pelo incêndio? Terceiro: o CPM pode decidir por usar recursos financeiros do Fundo do Patrimônio Mundial na recuperação do Parque das Emas? Quarto: o Parque das Emas pode perder o status de Patrimônio Mundial da Unesco?

Sobre a primeira pergunta, o Parque das Emas pode entrar na Lista Vermelha de Patrimônio por decisão do CPM nas suas sessões, segundo o artigo 11, parágrafo 4º, da Convenção da Unesco de 1972. O Comitê do Patrimônio Mundial se reúne anualmente, podendo ter sessões extraordinárias caso assim decida, segundo seu regulamento [7].

A resposta para a segunda pergunta também é afirmativa. A justificativa para a cooperação de Estados na proteção de patrimônios mundiais está no artigo 6º, parágrafo 2º, da Convenção da Unesco de 1972.

Segundo o artigo 13 da Convenção da Unesco de 1972, o CPM pode também analisar pedidos de assistência internacional solicitados pelos Estados partes desse tratado. Pela interpretação desse dispositivo legal da convenção, não é necessário que o lugar esteja na Lista Vermelha de Patrimônio Mundial para que a ajuda externa seja solicitada.

Acerca do terceiro questionamento, é interessante notar que o Brasil ratificou a Convenção da Unesco de 1972 com reservas ao parágrafo primeiro do artigo 16 desse tratado. O mencionado dispositivo legal estabelece a obrigatoriedade do Estado-parte da Convenção de 1972 contribuir financeiramente com o Fundo do Patrimônio Mundial a cada dois anos [8]. Em que pese essa reserva brasileira, isso em nada prejudicou a posição do Brasil, pois, caso não tivesse feito nenhuma contribuição ao fundo, ele não poderia ser eleito membro do Comitê do Patrimônio Mundial, com base no artigo 16, parágrafo 5º, da Convenção da Unesco de 1972.

O CPM pode decidir a destinação dos recursos do Fundo do Patrimônio Mundial, nos termos do artigo 13, parágrafo 6º, da Convenção da Unesco de 1972. Então, a resposta do terceiro questionamento é afirmativa na possibilidade de usar o Fundo do Patrimônio Mundial na recuperação do Parque das Emas.

Com relação ao quarto questionamento, é possível que o Parque das Emas perca seu reconhecimento de Patrimônio Mundial da Unesco. O histórico dos trabalhos do CPM nos três lugares que já perderam esse status demonstra que a exclusão não é sumária [9]. Esse órgão consultou o Estado onde está o patrimônio antes de efetuar a remoção do status, de maneira que o Brasil seria consultado aqui nessa hipótese.

Esperamos que o impacto do incêndio no Parque das Emas seja devidamente avaliado pelos órgãos responsáveis nos próximos dias e, a depender do resultado da análise, não está descartada a atuação da Unesco na recuperação do local. As reflexões trazidas aqui neste texto são exercícios hipotéticos, na ótica da Convenção da Unesco de 1972, para contribuir com o debate da proteção deste patrimônio natural da humanidade situado no Brasil.

 


[1] Tratado ratificado pelo Brasil em 01 de setembro de 1977. Disponível em: https://whc.Unesco.org/en/statesparties/#:~:text=States%20Parties%20are%20countries%20which,on%20the%20World%20Heritage%20List. Acesso em 14 jul. 2021.

[2] Unesco.World Heritage Committe. Disponível em: https://whc.Unesco.org/en/committee/.Acesso em 22 jul. 2021.

[3] Até o dia 23 de julho de 2021, data de finalização do texto.

[4] Unesco.World Heritage Committee Adds Four Sites to the List of World Heritage in Danger. 30 de novembro de 1999. Disponível em: https://whc.Unesco.org/en/news/163/. Acesso em 14 jul. 2021.

[5] Unesco. World Heritage Committee Inscribes Two Sites on the the List of World Heritage in Danger. 12 de dezembro de 2001. Disponível em: https://whc.Unesco.org/en/news/158/. Acesso em 14 jul. 2021.

[6] Unesco. World Heritage Committee deletes Liverpool- Maritime Mercantile City from Unesco´s World Heritage List. 21 de julho de 2021. Disponível em: https://whc.Unesco.org/en/news/2314. Acesso em 22 jul. 2021.

[7] Unesco. Rules of Procedure- Intergovernmental Committee for the Protection of the World Cultural and Natural Heritage. Julho de 2015.

[8] IPHAN. Decreto nº 80.978, de 12 de dezembro de 1977. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/DecretoLei_n_80.978_de_12_de_dezembro_de_1977.pdf.Acesso em 22 jul. 2021.

[9] Santuário do Órix da Arábia (2007), Vale do Rio Elba em Dresden (2009), Cidade Mercantil Marítima de Liverpool (2021).

Autores

  • é professor de Direito Internacional dos Direitos Humanos no A PARI MUN- Instituto de Investigación y Debate en Derecho (Nuevo Chimbote, Peru), advogado inscrito na OAB/RS, membro associado da Société Québécoise de Droit International e autor de livros de Direito Internacional dos Direitos Humanos e Direito Internacional do Patrimônio Cultural.

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