Opinião

Quando a advocacia apanha, quem sangra é a democracia

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25 de julho de 2021, 15h12

Recentemente, o mundo assistiu à população norte-americana sendo tomada por profunda comoção após a morte por asfixia de George Floyd, numa abordagem policial desproporcional e violenta, flagrada por uma câmera. Mesmo em plena vigência de restrições sanitárias rigorosas por conta da pandemia da Covid-19, não foi possível conter o ímpeto espontâneo das massas em protesto, reação certamente de desforra por longos anos de racismo e um histórico vergonhoso de abordagens seletivas e ilegais.

No Brasil, em que os índices de letalidade policial são crescentes e alarmantes [1], apontados como cinco vezes maiores do que nos Estados Unidos, é preciso pensar estrategicamente em um plano de redução desses índices terríveis.

Especialistas em segurança pública apontam uma série de medidas que podem contribuir para isso, passando por mudança de mentalidade no treinamento dos agentes (alteração da visão perversa de guerra em que a equação é necessariamente binária, de matar ou morrer), aumento de salários, uso de câmeras como regra filmando a totalidade das abordagens ao longo do expediente.

Este último recurso foi implantado recentemente no estado de São Paulo, de forma pioneira, redundando numa diminuição expressiva de 54% das mortes em decorrência de intervenções policiais, o menor índice em oito anos, e, em contrapartida, não redundou em qualquer aumento da morte de policiais em serviço [2]. No próprio site da Polícia Militar de São Paulo, são apontadas sete vantagens para o uso do monitoramento [3]: 1) prova documental altamente confiável; 2) redução do uso da força; 3) redução de reclamações e denúncias (proteção do próprio policial); 4) afirmação da cultura profissional (mudança de percepção da sociedade em relação ao agir da polícia e da relevância do trabalho prestado); 5) aprimoramento do treinamento (viabiliza verificar quais técnicas e táticas precisam ser melhor reafirmadas em capacitações institucionais); 6) fortalecimento da disciplina (mudança de comportamento em razão da melhor reflexão sobre os atos impulsivos, tais como abusos verbais, palavrões e ameaças contra membros da comunidade); 7) transparência e legitimidade (accountability), a favorecer o escrutínio da sociedade sobre o uso da força pelo Estado.

Mas, de forma indireta, um dos meios absolutamente necessários para contribuir com a mudança desse quadro lamentável é o fortalecimento das garantias individuais. Sabe-se que a persecução penal disciplina a aplicação da força estatal desde o seu ato inaugural, que muitas vezes ocorre com a primeira abordagem policial, ainda no local dos fatos.

Por esse motivo, a preservação de direitos e garantias constitucionais é de suma importância tanto para a legitimidade da ação policial como para a própria preservação da democracia, pois o uso indiscriminado da força pelo Estado é típico de regimes totalitários.

O advogado, nesse quadro, é a figura-chave para viabilizar o fortalecimento dos direitos do cidadão frente ao Estado. Quando se usa o brocardo "sem advogado não se faz Justiça", isso não é marketing corporativo. Trata-se de verdade universal que não se consegue refutar. Em todos os sistemas do mundo, quem dá voz ao indivíduo que suporta a persecução penal é o advogado, daí a própria origem da palavra "advogado" no latim significa ad-vocatus, ou o que é chamado para interceder em lugar de alguém.

A importância do papel social do advogado é de tal monta que a Constituição da República, em seu artigo 133, o qualifica como "indispensável":

"Artigo 133  O advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei".

O Estatuto da OAB (Lei 8.906/84) reconhece a função social do papel do advogado e a qualifica como um munus público:

"Artigo 2º — O advogado é indispensável à administração da justiça.
§1º. No seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social.
§2º. No processo judicial, o advogado contribui, na postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador, e seus atos constituem múnus público.
§3º. No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites desta lei".

O Código de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) expressamente refere que o advogado é defensor do Estado democrático de Direito, da cidadania e da moralidade pública, sendo seu dever, portanto muito mais do que um direito, contribuir para o aprimoramento das instituições, aqui incluída a polícia militar.

"Artigo 2º — O advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do Estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce. Parágrafo único. São deveres do advogado:
(…)
V
 contribuir para o aprimoramento das instituições, do Direito e das leis".

Por fim, e como decorrência lógica da relevância de seu papel, não há hierarquia entre os diversos atores que atuam no processo penal, sendo devido o tratamento digno, mais do que meramente urbano, compatível com a relevância da sua atuação:

"Artigo 6º — Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos.
Parágrafo único. As autoridades, os servidores públicos e os serventuários da justiça devem dispensar ao advogado, no exercício da profissão, tratamento compatível com a dignidade da advocacia e condições adequadas a seu desempenho".

Sendo assim, causa grande repúdio e é de se lamentar efusivamente o impacto deletério à própria democracia causado pela notícia que foi veiculada em diversos meios de comunicação de que um advogado sofreu gravíssimas agressões, tanto verbais quanto físicas, quando buscou intervir no curso de uma abordagem policial ilegal a um morador de rua em Goiás [4].

Atuando corajosamente ad hoc em defesa do mais vulnerável frente ao Estado (no caso, a vulnerabilidade era múltipla: tratava-se de morador de rua, já fragilizado por definição, alvo de ação armada, por parte de agentes estatais, hipossuficiente em todos os sentidos), o advogado se viu, ele mesmo, imobilizado, com as mãos algemadas às costas, vilipendiado em sua face com tapas, silenciado com gritos de intimidação, pontapés, arrastado na via pública como se coisa fosse.

A ação foi gravada em vídeo pelas pessoas que a tudo assistiram atônitas e aflitas, sendo audível a intervenção por parte da própria população para que os policiais estancassem o abuso.

As imagens são chocantes e causam náusea.

Mas o que deveria chocar ainda mais é a não imagem.

É o tratamento vil à advocacia como um todo, feita no segredo, no cotidiano, que vai minando a democracia, que sangra indefesa. O ataque direto e afrontoso no sigilo diuturno implica numa afronta aos defensores da democracia.

A reclusão pandêmica obrigou a mudança de paradigmas, redundando no inexorável monitoramento dos atos processuais, pelo necessário uso de tecnologias que permitiram a gravação audiovisual da atuação dos diversos atores da persecução penal.

Não é com surpresa, embora seja com desgosto profundo, que vários vídeos de ataque à atuação de defensores viralizaram em redes sociais as mais diversas, expondo a nudez de nosso sistema perverso, expondo a humilhação de diversos advogados que apenas exerciam o seu papel constitucional.

Se o mesmo monitoramento foi capaz de expor também mazelas de maus profissionais, como em toda profissão, que toda essa exposição sirva também, tal qual vem ocorrendo com o monitoramento das ações policiais em São Paulo, para uma redução nos índices de "letalidade à democracia", servindo para fortalecer a atuação profissional dos advogados de todo o país, em especial aos criminalistas, que entram na linha de frente dessa batalha.

Que estejamos  e aqui me incluo  dispostos a nos humilhar nos sentando, em segredo, sem a luz dos holofotes, ao lado do acusado [5], mas que, para tanto, sejam preservadas, com o máximo rigor, as nossas prerrogativas. Caso contrário, o já combalido Estado democrático de Direito dará seus últimos suspiros sem haver quem o possa defender.

 


[5] É conhecida a célebre passagem de Francesco Carnelutti, no "As Misérias do Processo Penal": "A essência, a dificuldade, a nobreza da advocacia é esta: sentar-se sobre o último degrau da escada, ao lado do acusado, quando todos o apontam. Postar-se ao lado do forte, sob às luzes dos holofotes, é cômodo".

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