Embargos Culturais

René David e o direito inglês

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

25 de julho de 2021, 8h00

René David, sobre quem na semana passada tratei ao comentar Os grandes sistemas do direito contemporâneo, deixou-nos também um importante estudo sobre o direito inglês. Ambos os livros foram escritos na década de 1960. Há no Brasil uma excelente tradução de O direito inglês, atribuída a Eduardo Brandão, com revisão técnica de Isabella Soares Micali. A publicação é da Martins Fontes. É mais um importante livro de direito comparado.

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Para além de seus aspectos práticos, o direito comparado também propicia estudos de sociologia do direito. O estudo de outros direitos desenvolve-se concomitantemente à pesquisa das sociedades nas quais os direitos se formam. A disciplina (ou o método, segundo alguns) desempenha importante papel cultural. O estudo dos direitos estrangeiros nos permite uma leitura do mundo, de costumes, de práticas. Enriquece culturalmente. O exame dos direitos dos outros povos tempera a curiosidade, aguça a inteligência, eleva o espírito. É um desafio.

O direito comparado permite que se perceba com mais clareza o direito interno. Na expressão de René David, o direito comparado é útil para um melhor conhecimento do direito nacional e para seu aperfeiçoamento. Problemas e soluções de outros direitos esclarecem as complicações do direito doméstico. É guia seguro para o legislador, para o julgador, para todos que vivem a aplicação da lei.

Em O direito inglês René David explora o tema do common law. Discorreu sobre a tradição jurídica inglesa. Explicou o complicado sistema de jurisdições. Tratou do processo civil e do processo criminal. Analisou o sistema das liberdades públicas. Explicitou as fórmulas de propriedade, bem como o funcionamento do regime dos trusts. Avaliou também o sistema obrigacional, discorrendo sobre o modelo de torts.

Tort é expressão do direito anglo-saxônico cujos dicionários de equivalência não identificam tradução direta para o idioma português. Sugere ideias de errado, injusto, ilegal, justificativas de responsabilidade civil (civil liability) independentemente de contrato. Decorre de dolo, negligência e conhece também a responsabilização sem falta; especificação que depende do grau de culpa. Assume vários tipos de defesa para o ofensor (tortfeasor). Presta-se também para reivindicação de interesses específicos, que variam da fraude e má representação ao erro médico, da difamação à invasão de privacidade, da proteção ao consumidor à invasão de propriedade. Vincula-se à proteção do corpo humano, das relações capitalistas de propriedade, da reputação. Decorre do princípio básico que nos dá conta de que todos os membros da sociedade têm obrigação de comportar-se convenientemente, de modo a não causar riscos ou prejuízos a outras pessoas. É a declaração de deveres do pacto imaginado pelo liberalismo, seja em Locke, Kant, Rousseau ou Rawls, este último mais recentemente. Promove indenizações, compensatórias e punitivas.

O common law origina-se das decisões dos juízes ingleses da alta idade média. Desenvolveu-se sistematicamente a partir do século XVII. Também é conhecido por mostrar-se como um direito não escrito. Sua origem judicial frequentemente o opõe ao direito da tradição escrita e estatutária que informa os modelos do continente europeu. O common law nasceu na Inglaterra e desenvolveu-se em outros lugares marcados pela presença inglesa, nomeadamente nos Estados Unidos (embora no estado da Luisiana conviva com a tradição codificada francesa), no Canadá (em que pese conviver com a linhagem francesa que triunfou no Quebec), na Austrália, na Nova Zelândia, na Índia e em alguns modelos africanos, como decorrência da ocupação imperialista do século XIX.

A expressão common law designa, originariamente, um direito comum inglês, a contrário de costumes e tradições localizadas. Juízes ligados ao rei outorgavam a justiça pelo país, com comportamento de estrito respeito ao precedente e com uso de discricionariedade na eventualidade da inexistência desse último. A presença dos juízes representantes do rei junto às comunidades era mecanismo de exercício do poder real, em detrimento de autoridades feudais que proliferam ao longo da ilha. O common law consiste no mais antigo direito nacional conhecido na Europa.

O sistema contava com instância mais alta, marcada pela presença do chanceler do rei, que em nome da autoridade real concedia ordens, chamadas de writs, que eram enviadas aos agentes locais do soberano, que as implementavam. Ao longo dos séculos XIV e XV o common law tornou-se demasiadamente técnico, marcado pela influência do jargão francês (como reflexo do domínio francês na ilha à época dos normandos). A rigidez e modo rotineiro como o judiciário trabalhava não mais resolviam os problemas que o desenvolvimento das atividades mercantis colocava na Inglaterra. Procura-se nova intervenção do rei, o que propicia o desenvolvimento de outro modelo que se desenvolve concomitantemente ao commnon law, e que a doutrina inglesa chama de equity.

As práticas do common law foram transportadas para o direito norte-americano que percebe os juízes como living oracles, oráculos vivos, inclusive com poderes para desprezar o próprio precedente (to overrule an early case). No common law o vínculo entre direito e política é mais declarado. Ainda hoje nos Estados Unidos os juízes federais são indicados pelos governadores estaduais, os da Suprema Corte pelo presidente da república, o que faz com que os tribunais transmitam mensagens dos partidos republicano e democrata, e consequentemente o ideário conservador daquele e liberal desse último são facilmente identificados nas decisões judiciais.

O common law é responsável por institutos típicos do direito anglo-saxão, a exemplo de chattels (propriedade pessoal), mortmain (o direito de mão-morta, expressão do francês jurídico medieval, e que identifica imunidade de propriedades eclesiásticas), writ (como já indicado, ordem real para determinada pessoa), entre tantos outros. Trata-se de concepção instrumental do direito, que tem por objetivo prioritário fomentar os negócios. O tribunal do júri é típico instituto do common law, concebido como meio direto de avaliação de provas. Transportado para os Estados Unidos, ao lado de tradição bíblica de forte conteúdo calvinista, o common law pretendeia a realização da terra prometida da liberdade religiosa em nome da restrição da própria liberdade de crença.

Não se pode confundir, no entanto, o adjetivo common que se antepõe ao substantivo law, com a ideia de direito comum a todas as pessoas e classes sociais. É comum, em seu sentido originário, porque era utilizado de forma geral, em toda a Inglaterra, como expressão de poder soberano que se opunha aos poderes locais, representados pelos senhores feudais. Outra peculiaridade do common law, especialmente em solo inglês, é o fato de que seus contornos iniciais de natureza prática, de modo que foi um direito ordinariamente pensado fora do âmbito acadêmico. Afinal, historicamente, nunca se exigiu, na Inglaterra, que juízes ou advogados tivessem título universitário.

René David nos explica que “o direito inglês é o direito aplicado na Inglaterra e no País de Gales. Não é o direito dos países de língua inglesa ou de Commonwealth nem do Reino Unido ou da Grã-Bretanha”. Segundo se lê nesse elucidativo livro “os direitos de Commonwealth às vezes são próximos do direito inglês, mas, em outros casos, podem ser bastante diferentes. O direito da Irlanda do Norte e o da Ilha de Man são bastantes próximos ao direito inglês, mas o da Escócia é muito diverso, como também o é o das ilhas anglonormandas”.

Em “O direito inglês” não se tem fórmulas de simplificação. No entanto, o livro é claro, o texto flui com objetividade, e explica ao leitor (brasileiro, especialmente) que uma diferença fundamental entre o nosso sistema e o deles, é que, para nós, a todo direito corresponde uma ação enquanto que, para eles, as ações precedem aos direitos (remedies precede rights). Trata-se de uma relação inversa difícil para nosso entendimento. Essa constatação, de estranhamento, porém, é o encanto do direito comparado: o que é familiar nos torna alheio, ao contrário do estudo do direito interno, quando nos familiarizamos com o estranho.

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