Diário de Classe

Se vocês defendem os princípios, como conseguem defender as máquinas?

Autores

  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

  • Jefferson de Carvalho Gomes

    é doutorando em Direito pela Universidade Estácio de Sá (bolsista Prosup-Capes) mestre em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis (bolsista Prosup-Capes) especialista em Criminologia Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado.

24 de julho de 2021, 11h43

O debate jurídico tem sido enfeitiçado nos últimos anos com o novo canto da sereia: o uso de algoritmos para auxiliar os juízes em sua prestação jurisdicional, incluindo nesse rol o auxílio na tomada de decisões. Isso é resultado de mudanças profundas sofridas também pelo Direito nos últimos dois séculos, mas principalmente a partir da década de 1990, impulsionadas pela tecnologia. Bem verdade, toda a estrutura e compreensão sobre o mundo vem se transformando e, seguramente, motivada pelo boom da internet. Como em cadeia, essas mutações afetaram o processo comunicativo, a forma de relacionamento entre os sujeitos e, paulatinamente, vêm atingindo o âmbito de atuação do Poder Judiciário.

Já no século XXI, observamos o crescimento do protagonismo da tecnologia no cotidiano dos brasileiros e de suas instituições. Esse movimento foi agravado, inegavelmente, pelo necessário isolamento que a pandemia de Covid-19 impôs à toda população mundial. Nas suas mais diversas áreas o Direito passou a ser vítima desta onda de otimismo tecnológico. Houve o crescimento do número de lives, seminários online, aulas remotas, na área acadêmica, que desde antes já carecia de incursões mais comprometidas com o conteúdo. Já o cotidiano da prestação jurisdicional, passou a conviver com julgamentos e audiências virtuais, petições eletrônicas (fatos mais antigos) e a mudança mais paradigmática e preocupante, que é o uso de softwares pelos tribunais, para auxiliarem seus membros na tomada de decisões, através de parâmetros previamente estabelecidos por programadores e algoritmos.

Mas antes das coisas evoluírem, elas já são. E, em um primeiro momento, é preciso pensar no que justamente consiste a tarefa de interpretar o Direito, ou seja, antes de descobrir os algoritmos que recheiam as máquinas, precisamos refletir sobre como os juízes decidem, afinal, muito provavelmente, este será o parâmetro. Se de um lado é inegável a contribuição, é pertinente que tenhamos em mente os perigos que podem estar inseridos nela, pois ainda que não haja nem espaço, nem juridicidade para a existência de decisões judicias tomadas exclusiva e diretamente pela Inteligência Artificial, “a grande capacidade de processamento de informações, combinada com o potencial de aprendizado, já permite antever que as decisões humanas serão baseadas em relatórios e análises baseadas em IAs superinteligentes, que, certamente, serão determinantes para o resultado”[1].

Portanto, partindo desta premissa é que precisamos nos colocar não contra, mas reflexivos acerca da “colonização do mundo do direito” pela tecnologia. Isso em razão de pelo menos dois motivos robustos, ambos ligados à nossa compreensão do conceito de direito, que já esclarecemos agora: é interpretativista. Primeiro: não há como pensar em uma interpretação que não seja diretamente conectada com a (inter)subjetividade e por conseguinte com a atividade humana. Nesse sentido, Lenio Streck muito bem coloca que “o horizonte do significado nos é dado pela compreensão que temos de algo. A compreensão é existencial, é uma categoria pela qual o homem se constitui” [2] e isso por si é incompatível com o “juiz robô”. Alguns argumentos elegantes – e ainda não respondidos – foram mobilizados pelo professor Lenio Streck em uma coluna do Conjur (aqui)[3], cuja temática versava justamente sobre esse paradoxo.

Ainda sobre essa questão dos algoritmos que fornecem subsídios para facilitar as decisões judiciais: e se eles forem constituídos a partir de elementos jurídicos que reforçam padrões sectários e excludentes? Acredita-se que os dados que alimentam “os robôs” sejam oriundos do próprio Poder Judiciário que, como se sabe muito bem, decide sem seguir critérios íntegros e coerentes. Justamente sobre isso versou um caso nos Estados Unidos em que a defesa do condenado arguiu que o sistema de pontos que determinava a periculosidade e ao qual o réu foi submetido, era racista e, por isso, contaminava a decisão do juiz. Esse desvio é coerente com o Estado Democrático de Direito? “Normalizaremos” questões de minorias – se é que isso é possível – para que não integrem o rol de infelizes “erros” de máquinas que repercutem em vidas reais?

Ainda que se admita que máquinas e juízes possam decidir juntos, a máquina nunca terá a capacidade de compreender o fenômeno complexo que se desenvolve a partir de um processo, pois interpretar é por si ato por hermenêutico complexo, que depende da atividade humana, vinculada à capacidade de compreender a historicidade e desvelar a tradição. É dessa forma que os sentidos se mostram à sua melhor luz e também são controlados pela intersubjetividade, afinal a ausência de grau-zero de sentido e o processo de conhecê-los é uma arma e tanto contra arbitrariedades. E, como muito bem sabemos, por isso, ao hermeneuta importa tanto o caminho.

Poderíamos, neste momento, trazer à tona o preço das simplificações, que já custam caro e não é somente com a virada tecnológica[4], mas preferiremos lançar outro argumento que reforça e é reforçado pela tese de que existe uma forma (fenomenológica-hermenêutica) correta de interpretar. Isso porque todas as decisões deveriam partir de argumentos de princípio, que por sua vez são incoerentes com os pragmatismos e utilitarismos que fundamentam posturas que defendem a Inteligência Artificial.

Os argumentos apresentados pelos juristas hi-tech costumam ser os da celeridade, eficiência e isenção do julgador. Contudo esse tipo de argumento, que funciona na lógica do resultado, fere a própria gramática dos princípios e, para ressaltar, cabe muito bem um dos exemplos usados pelo próprio Dworkin para explicar seu grande ataque ao positivismo de Hart. Dworkin apresenta a categoria dos princípios, dentre os casos, com o Riggs vs Palmer, que refere-se a seguinte demanda: Elmer era neto de Palmer e seu herdeiro, diante da possibilidade da alteração do testamento, o neto mata o avô pensando em ficar com a herança, afinal não havia proibição legal. Entra com ação pleiteando a herança e ganha em primeiro grau. Em segundo grau, perde porque entendem os juízes, em termos de hoje, que ninguém pode se beneficiar de sua própria torpeza.

A resposta foi adequada porque seguiu um princípio, se fosse tomada a partir da concepção de regra válida – segundo a caracterização do positivismo por dworkin – admitiria a manutenção dos direitos sucessórios. Ainda no sentindo da construção da melhor resposta possível, que se constrói a partir da interpretação de cada caso, Dworkin retoma o caso Riggs vs Palmer para combater argumentos utilitaristas e pragmatistas, isso porque, mesmo que as tias (concorrentes na sucessão) comprovassem que empregariam o dinheiro de melhor forma, deveria o juiz decidir não por isso, visto que essa é questão diferente da que se colocou em debate.

Denota-se, rápida e brevemente, desse exemplo que, como muito bem coloca Ziel Ferreira Lopes, “princípios se sustentam em razões substanciais que não podem ser separadas de um componente avaliativo, não podem ser tratados como simples questão de fato”[5] e, exatamente por isso, deles “não se apresentam consequências jurídicas que se seguem automaticamente quando as condições são dadas”[6]. A discussão que perpassa esse ponto é de Teoria do Direito. Precisamos necessariamente saber de Teoria do Direito pra debater sobre direito. Podemos discordar de forma autêntica sobre quais correntes seguiremos, qual o conceito de direito defenderemos, mas para estarmos todos no mesmo barco (e de preferência bem amarrados nos mastros pela hermenêutica), não podemos esquecer que nele só embarcam seres-humanos.

Não existe problema nenhum em máquinas auxiliarem no processo decisório. Este é o caminho e exatamente este o ponto. Clama-se aqui, dessa vez, por coerência e integridade, não só no processo público de fundamentação das decisões judiciais como habitualmente se faz, mas na teorização comprometida, na forma de compreender o mundo. É impossível defender os princípios, como concebido por Dworkin, e ao mesmo tempo dizer que robôs podem decidir. As respostas corretas são metáforas. Se começarmos entendendo o porquê, já vamos longe.

 


[1] MARRAFON, Marco. Filosofia da linguagem e limites da Inteligência Artificial na interpretação jurídica. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-22/constituicao-poder-filosofia-linguagem-limites-ia-interpretacao-juridica

[2] STRECK, Lenio Luiz. Estamos condenados a interpretar. São Paulo: Estado da Arte, 2020. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/hermeneutica-juridica-streck/

[3] https://www.conjur.com.br/2020-set-03/senso-incomum-robo-julgar-quem-programa-robo

[4] Nesse sentido este do prof. Lenio Streck texto precisa ser lido. https://www.conjur.com.br/2021-mai-20/senso-incomum-dr-legal-design-explica-sentenca-judicial-facilita-tudo

[5] LOPES, Ziel. O direito como um ramo da moral: desvio ou ápice da teoria de Ronald Dworkin?. Disponível em: https://revistades.jur.puc-rio.br/index.php/revistades/article/view/1181/693

[6] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo WMF Martins Fontes, 2010. p. 39 -42

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