Opinião

Distritão e semipresidencialismo: alguns contrapontos

Autor

  • Filomeno Moraes

    é livre-docente em Ciência Política pela Universidade Estadual do Ceará (Uece) doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas de Rio de Janeiro pós-doutor pela Universidade de Valência (Espanha); coorganizador das coletâneas "Fazendo valer as regras do jogo: contornos eleitorais e partidários instituições e democracia" (Fortaleza: Edições UFC 2018) e "Justiça Eleitoral controle de eleições e soberania popular" (Curitiba: Íthala 2016).

24 de julho de 2021, 13h10

"Equilibrar um grande Estado ou sociedade (…) é um trabalho tão difícil que nenhum engenho humano pode levá-lo adiante mediante o mero uso da razão e da reflexão. O juízo de muitos deve colaborar neste trabalho. A experiencia deve guiar o seu labor, o tempo deve aperfeiçoá-lo e a percepção dos inconvenientes deve corrigir os inevitáveis erros (…)"
David Hume

O eterno retorno da reforma política
Um dos temas mais recorrentes no debate político-institucional — nomeadamente desde a promulgação da CF/88  é o da reforma política. Há quase unanimidade favorável à reforma política, mas, como pouco se pergunta sobre o que é a reforma política, acaba-se por chegar à falsa conclusão de que, simplesmente por meio da lei, se chegará ao bom governo e aos bons costumes políticos. A rigor, todavia, talvez não haja algo que divida tanto do que a reforma política brasileira.

O furor reformista vem de longe. A discussão sobre mudar o sistema político brasileiro sempre foi uma constante, a ponto de qualquer legislatura desenvolver sempre projetos de reforma política, o mais das vezes abrangentes. Providencialmente, acabam rejeitados ou arquivados. O que não quer dizer que não se reforme em tiras, como a adoção pela via legislativa, em 1997, da reeleição para a presidência da República, governadores e prefeitos, quebrando a tradição refratária que marcou todas as constituintes e Constituições (mesmo as autoritárias). A partir da primeira década do século em curso, foi a vez de a via jurisdicional provocar mudanças no sistema político, entre outras medidas, verticalizando e desverticalizando alianças eleitorais, impondo fidelidade partidária, regulando número de vereadores. 

Agora, a partir da Câmara dos Deputados, repõe-se a problemática da reforma política, em que se buscam modificações substantivas, entre outras, nos sistemas eleitoral e de governo, pretendendo-se a adoção do distritão e do semiparlamentarismo.

O princípio eleitoral-proporcional em constante sobressalto
Na configuração do sistema eleitoral  o conjunto de normas para aferir votos e transformá-los em poder político, contido em cadeiras parlamentares e cargos administrativos —, tanto o princípio majoritário quanto o proporcional já possuem vida longa no processo político-constitucional brasileiro. O primeiro foi consagrado com a CF/1891, tanto para as eleições do Poder Executivo quanto do Legislativo; o outro, no Código Eleitoral de 1932, com existência nas constituições desde 1934.

Presencia-se, pois, a existência de um sistema eleitoral proporcional, para as eleições de deputados federais e estaduais e de vereadores; outro, majoritário, para as eleições de senadores e de prefeitos de municípios com até 200 mil eleitores; e mais outro, para as eleições de presidente da República e governadores, e prefeitos de municípios com mais de 200 mil eleitores. Assim, o sistema político brasileiro reúne eleições majoritárias com segundo turno, eleições majoritárias simples e eleições proporcionais. No que concerne à Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores, o sistema é marcado por uma característica peculiar, pela qual os votos preferenciais determinam completamente a ordem dos candidatos, votando o eleitor em apenas um deputado federal, deputado estadual e vereador, não podendo o seu voto ser transferido. Blondel (1957, p. 26) observou que, votando em um candidato, de fato o eleitor indica, de uma vez, uma preferência e um partido. Assim, seu voto parece dizer: "Desejo ser representado por um tal partido e mais especificamente pelo senhor fulano. Se este não for eleito, ou for de sobra, que disso aproveite todo o partido". Destarte, é um "modelo proporcional peculiar e diferenciado do modelo proporcional tradicional, que se assenta em listas apresentadas pelos partidos políticos" e que faz com que "o mandato parlamentar, que resulta desse sistema, afigure-se mais como fruto do desempenho e do esforço do candidato de que da atividade partidária" (Mendes, 2014, p. 713).

Além do mais, outra particularidade marcante foi a das coligações partidárias para a disputa eleitoral, que vigorou até às eleições de 2016. Já as últimas eleições de vereadores ocorreram em obediência ao disposto na EC nº 97/2017, que vedou as coligações partidárias nas eleições proporcionais e estabeleceu normas sobre acesso dos partidos políticos aos recursos do fundo partidário e ao tempo de propaganda gratuita (para os partidos) no rádio e na televisão.

O exorcismo do fantasma do presidencialismo imperial com fragilidade
Também da CF/1891 vem o presidencialismo, o qual, ao longo da vida republicana, tem sido objeto de persistente debate. V. g., Franco (2005, p. 207 e 31), sintetizando o sentimento de muitos, viu em tal sistema de governo, como seu "vício central", o "poder irresponsável do chefe de Estado", a postar-se "sobranceiro aos partidos inexistentes no Congresso, dominando a Constituição que não encontra raízes na alma do povo". Ademais, considerava que "os retoques sofridos, colhidos na inspiração parlamentarista, nada mais fizeram do que desvirtuar os dois tipos de governo, fundindo-os amálgama burlesco e inviável".

Entretanto, sob o texto constitucional de 1988, desenvolveu-se um padrão de governança denominado pela literatura presidencialismo de coalizão, que impactou de modo diverso o relacionamento entre Executivo e Legislativo (Abranches, 2018). Construído a partir da Nova República e com variações de presidente para presidente, fez com que o chefe do Executivo montasse a sua base de apoio concedendo ministérios a membros dos partidos com representação no Congresso Nacional. Em contrapartida, os parlamentares proporcionaram os votos necessários para a aprovação da agenda do Executivo no Congresso. Obviamente, houve aspectos problemáticos envolvidos na dinâmica de tal modelo, entre os quais, aquele concernente à relativização do princípio republicano, o do poder invisível que envolve o financiamento partidário e eleitoral (Moraes; Machado, 2018). O que a priori não inviabilizaria o modelo, pois, passível de ajustes e correções. Mas afastou-se o fantasma da ingovernabilidade e paralisia decisória.

Talvez, mais do que do presidencialismo em si, a reeleição dos mandatários do Poder Executivo é que constitua um dos nós górdios do dilema institucional brasileiro. Cardoso (2020, p. A2), o beneficiário pioneiro, penitencia-se em relação à Emenda Constitucional nº 16/1997, que permitiu a reeleição do chefes dos Executivo federal, estaduais e municipais. "Devo reconhecer que historicamente foi um erro", constata, acrescentando que, "se quatro anos são insuficientes e seis parecem ser muito tempo, em vez de pedir que no quarto ano o eleitorado dê um voto de tipo 'plebiscitário', seria preferível termos um mandato de cinco anos e ponto final". E acaba por propor o fim da reeleição.

O furor mudancista
Não é nova a tentação de relativizar o voto proporcional, com a instituição de um sistema eleitoral puro ou misto. Nos anos de 1980 e 1990, prevaleceu a tentação alemã, isto é, a preferência acrítica pelo que por aqui se chamou de sistema "distrital-misto". Agora, a aposta da Câmara dos Deputados é o "voto singular não transferível" (ou distritão), pelo que cada estado, nas eleições para deputado federal e deputado estadual, e cada município, nas eleições para vereador, se constituirá em única circunscrição ou distrito, resultando eleitos, afinal, os mais votados em ordem decrescente. No dizer de Nicolau (2021, online), o pior sistema eleitoral do mundo.

Em 2017, a Câmara dos Deputados rejeitou o distritão. Além do mais, contra todas as expectativas, se transformaram em normatividade a proibição de coligações em eleições parlamentares  já posta em prática ano passado nas eleições para vereador , e a adoção gradual da cláusula de barreira. Com certeza, mecanismos capazes de, se postos em prática em continuadas eleições, dar conta da solução dos problemas mais sérios atinentes ao voto proporcional.

Por sua vez, já há algum tempo em que, nas casas legislativas, tramitam PECs com prospectos de semiparlamentarismo, debate em crescendo novamente. Em linhas gerais, são proposições que juntam aspectos do parlamentarismo com o do presidencialismo: um presidente da República (chefe de Estado) eleito pelo voto popular compartilhando o Poder Executivo com um primeiro-ministro (chefe de governo), escolhido com o aval do Parlamento. Diferentemente do parlamentarismo puro, reserva-se ao presidente da República papel proativo e não simplesmente protocolar, atribuindo-se-lhe a prerrogativa de nomear o primeiro-ministro e, ocasionalmente, demiti-lo, dissolver o Congresso e convocar novas eleições.

A propósito, não é demais demais repetir as considerações de Linz (2014), chamando a atenção para o que considerava ser a origem de todos os problemas do presidencialismo: o confronto de poderes, que se dá quando um presidente sem lastro parlamentar busca o apoio direto na sociedade, ou seja, a reivindicação de uma legitimidade popular superior à do Congresso. E a pergunta que não quer calar é como um presidente da República, eleito com muitos milhões de votos, vai se domesticar perante o Congresso Nacional?

Ademais, para que semiparlamentarismo? O presidencialismo de coalizão pós-88 informalmente possui caraterísticas semiparlamentaristas. Entre outros, Figueiredo e Limongi (1999, p. 101) destacaram que "o sistema político brasileiro não opera de forma muito diferente dos regimes parlamentaristas", visto que os presidentes "formam governos" como o fazem os primeiros-ministros em sistemas multipartidários.

A atual conjuntura
Do ponto de vista político-constitucional, pelo menos três eixos de problemas surgiram ou se agravaram neste annus terribilis. Em primeiro lugar, a constante tensão institucional que tem como epicentro a presidência da República, no sentido da relativização da letra constitucional e da práxis democrática, com o renitente ataque especulativo contra a probidade da contabilidade eleitoral, com alegações de que a última eleição presidencial foi fraudada e, se não houver voto impresso, fraudulento será o resultado da próxima eleição presidencial. O segundo eixo diz respeito ao papel do presidente da República na prática político-constitucional  que com cuidado lembrando Torres (1982) , deve exercer certo poder coordenador no concerto federativo. O terceiro eixo é o atitudinal e diz respeito à aderência ao texto constitucional vigente, respeitando devidamente os princípios do Estado de Direito, republicano e democrático. Talvez, nele esteja o aspecto mais preocupante da conjuntura perversa, a erosão paulatina, mas constante, das normas jurídicas e das praxes democráticas e republicanas.

São problemas muito sérios. Mas, são problemas em relação a que a introdução do distritão e do semiparlamentarismo estão longe de minorá-los. Pelo contrário, pode agravá-los.  

A necessidade de uma reforma política
Crítico cruel das instituições político-constitucionais da República Velha, Vianna (1937, p. 13) acentuava que, se "o problema da democracia tem sido mal posto, é porque tem sido posto à maneira inglesa, à maneira francesa, à maneira americana, mas, nunca, à maneira brasileira". Tudo indica que tal coisificação institucional está se agravando, como se vê da atual discussão sobre o distritão, propugnando-se copiar modelo praticado no Afeganistão e no Iraque.

No calor da decisão que afastou a presidente Dilma Rousseff, entre as diversas opiniões vocalizadas, Figueiredo (2016, p. 13) reiterou que as instituições representativas e de governo no Brasil  presidencialismo, federalismo, sistema proporcional de lista aberta e  multipartidarismo  não constituem obstáculos para o funcionamento e a implementação de políticas públicas em governos de coalizão. Destarte, os 20 anos de estabilidade econômica e política mostraram suficientemente a viabilidade de tal combinação institucional. O que deu errado, pois, não está nas instituições, mas no "cabo de guerra entre um governo fragilizado pelo baixo desempenho da economia e pelas denúncias de seu envolvimento em práticas corruptas e uma oposição desleal, ou seja, aquela que, segundo os manuais de ciência política, não aceita as regras do jogo". Conclui que há de parar com "a mania de culpar as instituições básicas de República  presidencialismo, multipartidarismo, federalismo  por crises que têm raízes sociais, econômicas e políticas".

Por tudo, então, qual deveria ser o escopo de uma reforma política? Certamente, realizada pelas margens das instituições  algumas seculares ou quase seculares  que constituem o arcabouço institucional brasileiro: República, presidencialismo, federalismo, proporcionalismo e pluripartidarismo. De resto, é não esquecer, de um lado, que reforma política nenhuma dará nova natureza aos políticos nem aos seus eleitores; e, de outro, que é preciso fazer política, coisa que as elites brasileiras, no Estado e na sociedade, parecem andar em aprendizado decrescente.

 

Referências bibliográficas
ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

BLONDEL, Jean. As condições de vida política no Estado da Paraíba. Rio de Janeiro: FGV, 1957.

CARDOSO, Fernando Henrique. Reeleição e crises. Estadão, São Paulo, p. A2, 5 set. 2020.

FIGUEIREDO, Argelina Cheibub. O que deu errado? Não culpemos as instituições. Folha de São Paulo, São Paulo, p. 13, 13 maio 2016.  

FIGUEIREDO, Argelina; LIMONGI, Fernando. Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999.

FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Evolução da crise brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005.

LINZ, Juan. Presidencialismo ou parlamentarismo: faz alguma diferença? In: LAMOUNIER, Bolívar (Org.). A opção parlamentarista. São Paulo: Idesp/Ed. Sumaré, 1991. p. 61-120.

MENDES, Gilmar. Os direitos políticos na Constituição. In: MENDES, Gilmar, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 701-799.

MORAES, Filomeno; MACHADO, Raquel. Sistema eleitoral e sistema de governo sob a Constituição de 1988. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 219, p. 133-154, 2018.

NICOLAU, Jairo. Entrevista a Adriana Ferraz. Estadão, são Paulo, 21 jun. 2021. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-tenta-aprovar-pior-sistema-eleitoral-do-mundo-diz-jairo-nicolau,70003753571. Acesso em: 21 jun. 2021.

VIANNA, Oliveira. O idealismo na constituição. Rio de Janeiro: Terra do Sol, 1927. 

Autores

  • Brave

    é livre-docente em Ciência Política pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas de Rio de Janeiro, além de professor titular da pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (Unifor).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!