Ambiente jurídico

Direito do Patrimônio Cultural: um novo ramo da ciência jurídica

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

24 de julho de 2021, 8h00

Em tempos mais recentes, a preocupação com a proteção do patrimônio cultural ganhou espaço nas constituições das mais diferentes nações e normas complementares  de direito interno ou comunitário  surgiram em número expressivo com o intuito de tute­lar o uso, fruição, intercâmbio, preservação, difusão e gestão dos bens culturais.

Spacca
Em nosso país, a Carta Magna de 1934 estabeleceu os alicerces para a defesa do patrimônio cultural nacional ao instituir a função social da propriedade como princípio (artigo 113, inciso XVII) e ao estabelecer a competência concorrente da União e dos estados para proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico, podendo impedir a evasão de obras de arte (artigo 10, III).

Com o advento dessas importantíssimas inovações constitucio­nais, começaram a surgir em nosso ordenamento jurídico diversos textos legais sobre a temática, que passou a ser estudada pela dou­trina administrativista geralmente em capítulos relativos ao poder de polícia e à intervenção do Estado na propriedade privada.

Com a promulgação da Carta Magna de 1988, alcançou-se o mais alto degrau na evolução normativa de proteção bens culturais em nosso país, uma vez que a lex maxima, em seu Título VIII ("Da Ordem Social"), Capítulo III ("Da Educação, da Cultura e do Desporto"), Seção II ("Da Cultura"), nos artigos 215 e 216, delineou o conceito, a abrangên­cia, os instrumentos e as responsabilidades pela proteção do patri­mônio cultural brasileiro.

A partir de então, com a formação de uma maior consciência cidadã que se voltou para a busca da afirmação da identidade nacio­nal e de uma melhor qualidade de vida pautada por valores de solida­riedade comunitária, a matéria ganhou destaque e advieram diversos diplomas normativos cujo conteúdo se entrelaça com os mais diver­sos ramos do Direito, tais como o Penal (crimes tipificados nos artigos 62 a 65 da Lei 9605/98); o Tributário (deduções a que têm direito os proprietários de bens tombados e os incentivadores de projetos culturais previstas na Lei 8.313/91); o Civil (função social da propriedade – artigo 1228, §1º, CC); o Processual Civil Coletivo (Lei 7.347/85, com as alterações da Lei 8.078/90); o Administrativo (artigos 72 a 75 do Decreto 6.514/2008); e o Internacional (artigo 6º do Decreto 7.107/2010), apenas para citar alguns exemplos da transversalidade da matéria.

Nesse cenário, sabendo-se que a tutela do meio ambiente (lato sensu) engloba não somente os seus aspectos naturalísticos (água, ar, fauna, flora etc.), mas também os bens integrantes do meio ambiente urbanístico, laboral e cultural, a partir da década de 1990 a defesa do patrimônio cultural no Brasil  antes mencionada pontualmente em obras de Direito Administrativo  passou a constar dos melhores manuais de Direito Ambiental, ocupando capítulos próprios, conquanto, em geral, sintéticos e pouco profundos.

Vale ressaltar que, em âmbito internacional, também foi a partir dos anos 1990 que surgiu o ramo especializado inicialmente cha­mado de Direito da Cultura [1], do qual se desdobra o Direito do Patri­mônio Cultural.

Em nosso país, a abordagem doutrinária mais sistemática sobre o tema e os embates jurídicos pela implementação das regras relati­vas à preservação do patrimônio cultural, mormente decorrentes da atuação do Ministério Público brasileiro, em um cenário com picos de crescimento industrial e econômico fomentadores de grande número de conflitos, forjaram decisões jurisprudenciais importan­tes sobre a questão e induziram o surgimento de obras doutrinárias nacionais específicas a tal respeito. No âmbito dessa evolução, houve a identificação e a sistematização dos princípios reitores da tutela do patrimônio cultural brasileiro, medida essencial para se estabelecer uma base estável de diretrizes para o estudo e a aplicação das normas sobre o assunto.

Hoje em dia, como ressaltado por José Luis Álvarez Álvarez, já passou a época em que havia que se justificar a existência de um trata­mento legislativo especial para esse conjunto de bens culturais [2]. Tanto as legislações nacionais como os organismos internacionais partem da ideia de que esse patrimônio, sua conservação e seu incremento são essenciais para a comunidade e para seus membros e exigem uma nor­mativa especial, adaptada à natureza dos bens que o integram, e o que havia iniciado em uns poucos países, mais cultos ou adiantados, se converteu já em uma preocupação universal.

Segundo André Franco Montoro [3], a dinâmica da vida econômica e social e as transformações que se operam fazem surgir novas reali­dades e situações que repercutem sobre as pessoas e suas relações. E essas situações acabam por gerar novos problemas e a necessidade de formulação de "novos direitos", daí surgindo enxertos na árvore da ciência jurídica, tais como o Ambiental, o do Consumidor, o Ciber­nético etc.

Fabrizio Lemme ensina que o Direito do Patrimônio Cultural nasce quando o povo adquire consciência de sua própria identidade [4], de suas raízes, e sente a necessidade de defender os testemunhos de sua história.

Na mesma perspectiva, Eduardo Vera-Cruz Pinto afirma que o Direito do Patrimônio Cultural é uma expressão que se identifica com um conjunto de normas jurídicas, conformadas com um sen­timento geral de respeito aos valores simbolizados nesses bens ou coisas protegidas, que procuram a sua legitimidade e eficácia na liga­ção estabelecida, por meio da fundamentação, com a comunidade [5].

Como tivemos a oportunidade de ressaltar em nossa recente obra sobre o tema [6]:

"Por tudo isso, ante os conflitos instaurados em solo nacional em razão dessa tomada de consciência cidadã e a consequente necessi­dade do estudo específico sobre um domínio antes pouco explorado, surgiu o Direito do Patrimônio Cultural Brasileiro, que pode ser con­siderado como um ramo especializado do Direito Público, composto por normas e princípios que disciplinam e buscam a proteção, pre­servação, fruição, difusão e gestão dos bens culturais em nosso país".           

Ante o seu variado campo de abrangência, o Direito do Patrimô­nio Cultural necessita dialogar permanentemente com outras ciên­cias, tais como História, Arquitetura, Arqueologia, Conservação, Restauro e Antropologia, em um intercâmbio interdisciplinar coope­rativo, aberto e permanente, a fim de alcançar a mais eficiente e ade­quada tutela dos bens culturais.

Para alcançar a sua plena efetividade, esse específico ramo do Direito precisa ser conhecido por todos os agentes envolvidos com a proteção e gestão de bens culturais, mesmo que não tenham formação específica na área jurídica.

Enfim, o Direito do Patrimônio Cultural, para além de ciência, é um instrumento que se volta à tutela de uma realidade viva, que está sempre na encruzilhada entre a memória e a criação, permitindo o enraizamento dos bens culturais materiais e imateriais, da herança transmitida entre as gerações e da memória como garantia de perma­nência dos valores de nossa sociedade.


[1] MONNIER, Sophie. FOREY, Elsa. Droit de la Culture. p. 18.

[2] ALVAREZ, José Luis Álvarez. Estudios jurídicos sobre el patrimonio cultural de España. p. 233.

[3] MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito, p. 20.

[4] LEMME, Fabrizio. Compendio di Diritto dei Beni Culturali. Seconda Edizione. p. 13

[5] PINTO, Eduardo Vera-Cruz. Contributos para uma perspectiva histórica do direi­to do património cultural em Portugal. p. 237

[6] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Introdução ao Direito do Patrimônio Cultural. Belo Horizonte: 3i Editora. 2021.

Autores

  • Brave

    é promotor de Justiça em Minas Gerais, professor de Direito do Patrimônio Cultural na Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais, membro do International Council of Monuments and Sites (ICOMOS-Brasil).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!