Prerrogativas Violadas

Advogado questiona entrevista com hacker feita por relator da PEC do voto impresso

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24 de julho de 2021, 15h43

No último dia 15 deste mês, o deputado federal Filipe Barros (PSL-PR) anunciou em seu perfil no Instagram uma pretensa entrevista "bombástica" com o hacker conhecido como "VandaTheGod", detido preventivamente no presídio Professor Jacy de Assis, em Uberlândia (MG). Barros é o relator da "PEC do voto impresso".

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Entrevista com hacker foi feita em presídio sem o conhecimento de seus advogados e sob a premissa de que o depoimento seria colhido para empresa de cibersegurança
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"Eu e minha equipe fomos lá falar com ele. E ele pode relatar como foi fácil invadir os sistemas do Tribunal Superior Eleitoral", anunciou o parlamentar, sob fundo sonoro típico de programas policiais populares, em franca campanha favorável à PEC.

Marcos Roberto Correia da Silva (VandaTheGod) foi preso preventivamente por operação deflagrada pela Polícia Federal em 19 de março, em cumprimento de mandados de prisão e busca e apreensão expedidos pelo Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Inquérito 4.781, que investiga fake news e ameaças à Corte.

A entrevista, contudo, foi dada sem o conhecimento da defesa do investigado, que não pôde portanto orientar seu cliente, e sob a premissa de que seria concedida a uma empresa de cibersegurança, e não para divulgação na internet pelo relator da "PEC do voto impresso".

Em contato com a ConJur, o advogado do investigado, André Leonardo Prado Coura, demonstrou surpresa com o ocorrido. Ele protocolou pedido de explicações dirigido à direção da unidade prisional. No documento, o defensor pede esclarecimentos sobre quais os meios e justificativa usados pelo deputado para fazer a entrevista. Também questiona se houve autorização ou determinação da direção do presídio ou mesmo do relator do Inquérito 4.781 no STF e da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais. Por fim, pergunta sobre as razões pelas quais ele, advogado do investigado, não foi informado previamente da entrevista. Até a publicação desta reportagem, o pedido de explicações não havia sido respondido.

"Fomos surpreendidos com esse material veiculado pelo deputado. Ele fez uma entrevista de maneira muito estranha. A defesa não foi notificada de nada e ele [investigado] nos disse que não sabia que se tratava de uma conversa com uma autoridade pública. Embora o Marcos tenha uma inteligência cognitiva significativa, ele é um jovem até certo ponto ingênuo. Um rapaz humilde, que não tem muita dimensão das questões jurídicas e políticas do seu entorno", explica Coura.

O advogado questiona como é possível um parlamentar fazer uma entrevista com um preso usando celular em uma sala reservada. "Isso vem sendo usado claramente como um material de pretensão política para corroborar a comissão dessa 'PEC do voto impresso'. O grande problema é que esses fatos são objeto de investigação sigilosa. E não é bem assim. Não houve uma falha de segurança do sistema da urna eletrônica. A história não é bem essa e esse ato causou preocupação porque sequer fomos comunicados disso", afirma.

O defensor afirma que seu cliente tem sido feito de "bola de pingue-pongue político" para fragilizar a segurança do sistema eleitoral. O advogado pondera também sobre os efeitos políticos que essa exploração midiática e política do hacker terá sobre os processos a que ele responde.

"A defesa foi completamente desrespeitada. Ele não teve oportunidade de se aconselhar com seus advogados. Eu, advogado, não posso entrar com um telefone celular em um presídio. É no mínimo estranho e obscuro".

O advogado também questiona o fato de Barros ter anunciado que pediu proteção ao hacker. "Proteção contra o quê? Ele está sob ameaça? Não fomos informados de nada disso", reclama. Segundo Coura, Marcos foi transferido para a Penitenciária de Segurança Máxima Francisco Sá, no norte de Minas. Mas o advogado não foi previamente informado a respeito e não foi comunicado sobre os motivos que justificaram a transferência.

Inquérito sigiloso
O hacker é investigado pela PF pelo suposto vazamento e
comercialização de dados pessoais de mais de 200 milhões de brasileiros, entre os quais diversas autoridades públicas, inclusive de ministros do Supremo Tribunal Federal.

Após ofício do presidente do STF, ministro Luiz Fux, solicitando providências no âmbito do Inquérito 4781, o relator, ministro Alexandre de Moraes, determinou a elaboração de relatório inicial por parte de perito designado (Petição 9.423), determinando, ainda, envio imediato dos autos à Diretoria da Polícia Federal, para a instauração de inquérito e diligências investigativas.

Marcos já havia sido alvo de investigação pretérita, na fase ostensiva da operação exploit, deflagrada em novembro de 2020 para investigar suposta invasão e apropriação de dados constantes em banco de dados do Tribunal Superior Eleitoral, pesando sobre o investigado a suspeita de ter integrado o coletivo responsável pela ação contra o TSE.

Antes de ter sido preso em março deste ano, Marcos se encontrava em cumprimento de medida cautelar de monitoramento eletrônico domiciliar, por determinação do juízo da 4ª Vara Criminal de Uberlândia, no bojo de processo em que Marcos é réu, acusado de cometimento do crime de invasão de dispositivo informático.

Em atendimento à representação formulada pela Polícia Federal, o ministro Alexandre de Moraes decretou a prisão preventiva de Marcos Roberto por entender que havia risco à ordem pública, decorrente da possibilidade de reiteração delitiva, em face do suposto cometimento do crime de receptação qualificada, concluindo pela insuficiência de qualquer das medidas cautelares alternativas previstas pelo artigo 319 do Código de Processo Penal.

Além de André Leonardo Prado Coura, o hacker também é representado por Augusto César Mendes Araújo e Maikon Douglas de Souza Santos. Os defensores fizeram um pedido de revogação da prisão preventiva e de aplicação de medidas cautelares, como a proibição de frequência a todo e qualquer ambiente que possa proporcionar ou facilitar acesso à internet. O pedido de revogação da prisão preventiva foi indeferido pelo ministro Alexandre de Moraes em 11 de junho.

Alhos e bugalhos
Além da falta de clareza de como se viabilizou a entrevista com "VandaTheGod", o teor do vídeo também se mostrou muito questionável. Checagem do jornal O Estado de S. Paulo comprovou que a declaração do hacker de que poderia manipular o resultado das eleições não é verdadeira.

Segundo o jornal, a urna eletrônica não tem ligação alguma com a internet "ou com qualquer outro meio de transmissão de dados, e permanece dessa maneira durante todo o tempo". "O único cabo que ela possui é o de energia. Ao final da votação, o flash da urna (uma espécie de cartão de memória) é levado para um sistema próprio que envia esses dados para o TSE usando criptografia, por meio de uma rede privada da Justiça Eleitoral e com uma série de camadas protetoras que garantem a sua integridade".

Em nota, o TSE negou que os invasores tenham obtido informações como nome, CPF, foto, RG e dados biométricos do eleitorado. "Diversamente do afirmado, não houve qualquer vazamento de informações de eleitores, mas apenas de informações administrativas do Tribunal."

A ConJur conversou com Waldo Gomes, porta-voz da NetSafe Corp e especialista em cibersegurança. Segundo ele, o hacker, na entrevista divulgada por Barros, passa uma receita de bolo para qualquer ataque virtual. Gomes explica que não existe um sistema integralmente seguro, mas manipular o resultado eleitoral exigiria uma verdadeira conspiração com a participação de dezenas de pessoas. "Quando você fala de manipulação de um dado do banco de dados, obrigatoriamente vai gerar um rastro digital que pode ser auditado", sustenta.

O especialista afirma que qualquer operação eletrônica é auditável. "Quando você termina a votação, sai um extrato do que aconteceu ali naquele dia. Até a afirmação que você votou ou não está relacionada à urna. Tem-se uma informação gravada e isso é encaminhado a um banco de dados, que contabiliza o resultado", comenta.

Conforme Gomes, fraudar o resultado eleitoral demandaria muitas pessoas envolvidas com acesso à fonte dos dados do TSE e, com certeza, deixaria muitos rastros. "Sempre digo que alterar qualquer dado eletrônico é possível, mas seria preciso alterar todas as urnas eletrônicas para que o resultado modificado alterado fosse orgânico e difícil de detectar", diz.

Segundo dados da Justiça Eleitoral, o Brasil tem hoje cerca de 500 mil urnas eletrônicas que são utilizadas nas seções eleitorais em cada pleito.

Após ser questionada, a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais afirmou que "entrevistas com custodiados não necessitam de autorização do Poder Judiciário". "Elas podem ser realizadas desde que haja consentimento do indivíduo privado de liberdade".

A ConJur também entrou em contato com o gabinete do deputado Filipe Barros, mas ainda não obteve resposta.

Clique aqui para ler o pedido de explicações

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