Limite Penal

Algumas reflexões probatórias para os crimes de gênero

Autor

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

23 de julho de 2021, 9h43

Há cerca de duas semanas tivemos acesso a imagens estarrecedoras de violência doméstica. Nelas, Iverson de Souza Araújo, conhecido como DJ Ivis, desfere socos, chutes e empurrões contra sua então companheira, Pamella Holanda. Os vídeos registram multiplicidade de golpes que o agressor realizou contra a vítima na presença de testemunhas, sem que elas tenham servido de qualquer constrangimento social capaz de inibir a prática dos delitos — nem mesmo a presença da filha bebê foi bastante para dissuadir o agressor. Milhões de brasileiros assistimos impactados ao drama vivido por Pamella e, para além da comoção social, as imagens fazem do caso uma exceção: se na maior parte dos casos de violência contra a mulher há uma habitual clandestinidade, no caso do DJ Ivis existem registros visuais e testemunhas capazes de corroborar o relato da vítima. Apesar da excepcional ausência de maiores dificuldades probatórias, quero partir desse caso para propor algumas reflexões a respeito dos desafios que permeiam o raciocínio probatório a ser realizado para uma adequada determinação dos fatos quando se comete violência contra a mulher.

Em entrevista a um canal de televisão aberta, Pamella conta que as agressões começaram em 2020, no primeiro ano a partir do qual passaram a dividir o mesmo teto. Iniciaram-se de forma verbal, com palavrões e ofensas. A primeira agressão física aconteceu quando ela estava grávida: "Me segurou pelo pescoço e foi me arrastando do corredor até o sofá". No início deste mês, de acordo com Pamella, em mais uma discussão, seu agressor chegou a pegar uma faca na gaveta da cozinha. A governanta que também estava presente foi quem segurou o braço dele, de modo a evitar um desfecho ainda pior. Foi esse episódio que serviu de gota d'água para que Pamella procurasse ajuda. Primeiro na portaria do condomínio, sem êxito; depois junto à uma vizinha, quem por fim fez a ligação telefônica pedindo socorro à polícia.

Já na delegacia, Ivis não admitiu as agressões contra Pamella. Tomada por medo naquele momento, Pamella foi embora da delegacia sem ser ouvida. Apenas no dia seguinte é que se convenceu a oferecer notícia-crime contra Ivis. Adicionalmente, também decidiu postar nas redes sociais os vídeos já mencionaram e que chocaram milhares de brasileiros.

Se por um lado o caso gerou comoção em razão das poderosas imagens e do fato de que envolve uma personalidade pública com direito a milhões de fãs, por outro, vale ressaltar que as violências ali praticadas reproduzem, de forma assustadora, um cenário mais amplo: vivemos uma hiperendemia de violência de gênero no Brasil.

"A violência de gênero é hiperendêmica no Brasil. A expressão, no vocabulário da saúde pública, descreve doenças persistentes e de alta incidência. Mais do que uma epidemia, portanto, em que uma enfermidade avança de forma expressiva, não esperada e delimitada no tempo, esse problema é melhor descrito pelo conceito de hiperendemia, que se refere à manutenção, em patamares altos, de uma doença social que já se manifesta com frequência" [1].

Esse é um trecho extraído da terceira edição da pesquisa "Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil", realizada pelo Datafolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Para chegar a tão forte conclusão, o Datafolha escutou 2.079 respondentes, entre os quais 1.089 eram mulheres. O universo de pesquisa foi a população com idade igual ou superior a 16 anos, de distintas classes sociais, moradoras de cidades de pequeno, médio e grande porte (cerca de 130 municípios). Vamos aos números.

a) Número de mulheres vítimas de violência no Brasil: 24,4% das mulheres brasileiras acima de 16 anos afirmaram terem sofrido algum tipo de violência ou agressão nos últimos doze meses (um em cada quatro mulheres). Em projeção populacional, são cerca 17 milhões de mulheres.

b) Tipos de violência: a violência mais cometida foi a ofensa verbal, dado que 18,6% das entrevistadas disseram terem sofrido insultos, humilhações e xingamentos (projeção populacional: 13 milhões de mulheres). À continuação, 8,5% das mulheres relatam terem sido alvos de ameaças de violência física, o que representa a média de quase seis milhões de brasileiras; 7,9% das respondentes foram perseguidas (5,4 milhões); 6,3% sofreram com golpes como empurrões, socos, tapas e chutes (4,3 milhões); 5,4% das mulheres que participaram da pesquisa sofreram alguma ofensa sexual ou tentativa forçada de relação sexual (3,7 milhões em projeções populacionais), enquanto 3,1% delas foram ameaçadas com faca ou arma de fogo (cerca de 2,2 milhões). Foram lesionadas por objetos atirados, espancadas ou sofreram tentativas de estrangulamento 2,7% e 2.4%, respectivamente (em termos populacionais, 1,8 e 1,6 milhão de mulheres). Finalmente, 1,5% das respondentes relataram terem sido esfaqueadas ou vítimas de tiro (um milhão de mulheres na projeção populacional) [2].

c) Autor, lugar do delito e providência tomada: nas respostas oferecidas pelas entrevistadas, constata-se que em 72,8% os autores são pessoas conhecidas pelas vítimas. Em 25,4% das respostas, o marido/companheiro/namorado foi apontado como o agressor, seguido por ex-marido/ex-companheiro/ex-namorado, em 18,1% das respostas [3]. Quanto ao lugar do delito, em 48,8% das respostas, a casa foi apontada como lugar em que a violência foi praticada [4]. Perguntadas sobre a providência que tomaram diante da agressão mais grave sofrida nos últimos 12 meses, 44,9% das mulheres contaram que nada fizeram, isto é, não pediram qualquer tipo de ajuda [5].

d) Raça e idade da vítima: entre as mulheres que responderam a pesquisa, 28,3% das mulheres negras relatam terem sofrido alguma violência, seguidas das pardas em 24,6% e das brancas em 23,5%. Quanto à idade, as mais jovens são de fato as mais vulneráveis: 35,2% das mulheres de 16 a 24 anos contaram ter sofrido alguma violência no último ano, seguidas por 28,6% das mulheres entre 25 a 34 anos, de 24,4% das mulheres entre 35 a 44 anos, de 19,8% das de 45 a 59 anos e, por fim, 14,1% das mulheres acima de 60 anos [6].

Os números são alarmantes e servem a dar contornos claros ao que não queremos enxergar. As mulheres brasileiras são alvo dos mais variados tipos de violência, estes praticados por seus companheiros dentro de suas casas. O ambiente/contexto em que mais espera proteção e segurança é justamente onde mais corre perigo. A casa como lugar da violência e o companheiro afetivo como autor da violência são fatores que não se modificaram nas edições de 2017, 2019 e 2021.

Considero que esses dados estatísticos devem desempenhar um importante papel no raciocínio probatório/informativo na Justiça criminal. É urgente que os policiais sejam capacitados a bem acolher as mulheres, oferecendo-lhes um ambiente adequado à sua escuta. Se uma em cada quatro mulheres já sofreu algum tipo de violência nos últimos doze meses (e esses números são continuidade de anos anteriores, daí o uso do termo "hiperendemia" para designar a violência contra a mulher), então não há mesmo razão para se supor que a mulher mente, que a mulher só quer prejudicar seu parceiro.

Contra o infundado estereótipo da "mulher raivosa" (que não tem mais o que fazer a não ser passar longos períodos da delegacia com o objetivo de única e exclusivamente fazer da vida de algum homem um inferno), dados estatísticos cuidadosamente colhidos se contrapõem: 1) uma em cada quatro brasileiras sofreram algum tipo de violência nos últimos 12 meses; 2) cometidas por seus companheiros ou ex-companheiros; 3) em suas casas. Por medo de serem revitimizadas e por desconfiarem da ineficiência investigativa que facilmente beneficiará seus algozes, decidem permanecer em sofrimento e solidão. Não há qualquer justificação epistêmica à presunção de mentira com a qual as mulheres são frequentemente recebidas por investigadores. Pelo contrário, impõe reconhecer robusta justificação epistêmica para partir da premissa de que as mulheres procuram ouvidos abertos aos relatos que sinceramente estão dispostas a oferecer.

Isso me leva a defender que as mulheres sejam recebidas com "presunção de sinceridade"; a mesma presunção de sinceridade com a qual somos recebidas ao procurar a polícia após sermos assaltadas. Com isso, não estou dizendo que a palavra de alguém deva ser suficiente para a condenação. O que estou dizendo é que o tratamento despendido à mulher nos casos de violência de gênero deve ser semelhante ao que ela recebe ao relatar outros delitos, como o de roubo (essa foi uma reflexão que surgiu no ep. 12 de Improvável, com Patricia Vanzolini). Muito embora a palavra dela tenha de justificadamente ser corroborada por outros elementos probatórios (pois a memória de ninguém deve ser tida como acesso infalível aos fatos pretéritos), não há qualquer justificativa para antecipada redução de credibilidade.

Finalmente, gostaria de utilizar as últimas linhas da coluna desta semana para tratar dos standards probatórios para medidas protetivas em casos de violência de gênero. Conforme já conceituado, standards probatórios servem à distribuição do risco de erros. Nesse passo, os standards da decisão de mérito devem distribuir os riscos de se condenar inocentes e os riscos de se absolver culpados. Em sistemas jurídicos nas quais a presunção de inocência e o in dubio pro reo são operativos, trata-se de distribuir assimetricamente as duas classes de erros de maneira a reduzir o risco de se condenar inocentes; ainda que, para isso, assuma-se medidas que favoreçam a absolvição de culpados. Daí exigir sarrafo mais alto à hipótese acusatória no processo penal quando o comparamos à altura do sarrafo aplicável ao processo civil.

Então, o que se pode esperar de standards probatórios para o deferimento (ou indeferimento) das medidas protetivas nos crimes de gênero? Quais são os riscos que estão em jogo nesses casos? De um lado, há o risco de se implementar restrições aos direitos de uma pessoa em realidade inocente; de outro lado, há o risco de, deixando de restringir os direitos de um agressor, assim se contribua para a continuidade da escalada da violência contra a mulher. Em resumidas linhas, em muitos casos o que está sobre a mesa é a integridade física, psicológica e até mesmo a vida de uma mulher. Portanto, não há de se perder de vista que esses são os erros a respeito dos quais é preciso decidir sobre qual se deve arriscar mais, sobre qual se deve arriscar menos.

Com isso, não busco rebaixar os standards probatórios operativos em casos de gênero, mas tão somente reforçar que os olhos dos operadores jurídicos devem se manter atentos para que não acabem invisibilizando violências cujas provas superam perfeitamente os standards aplicáveis. Nesse sentido, os estereótipos, os preconceitos e as generalizações espúrias aperfeiçoam o ciclo da violência iniciado pelo agressor, já que cegam e ensurdecem os operadores jurídicos que desempenham suas funções nas mais diversas etapas processuais. A investigação criminal e o processo penal devem ser preparados para casos menos fáceis do que o de Pamella e Ivis e isso implica abandonar a superfície fácil dos estereótipos para mergulhar mais profundamente em nossas mazelas e hiperendemias.

 


[1] Pesquisa "Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil", 3a edição, 2021, p. 21.

[2]. Visível e invisível, p. 22.

[3]. Visível e invisível, p. 24.

[4]. Visível e invisível, p. 27.

[5]. Visível e invisível, p. 28.

[6]. Visível e invisível, p. 23.

Autores

  • é professora de direito probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.

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