Opinião

Quem define o que é interesse público ou privado?

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22 de julho de 2021, 6h04

Há quem diga que o Direito brasileiro está em crise. Lenio Streck, em sua coluna semanal nesta ConJur, denuncia isso a todo instante e nem sempre é bem compreendido. O balançar dos alicerces jurídicos é mais grave quando sob pretextos do tipo: aumento de eficiência; aumento de competitividade as forças reformadoras lançam argumentos recheados de contradições e ao ter apontada a incoerência do discurso simplesmente desconsideram essas incongruências e para atingir o resultado pretendido. Voluntarismo no melhor modelo: decido depois justifico.

Na seara da decisão judicial esse assunto é debatido constantemente pelo próprio Lenio, ao que o acompanham Georges Abboud, Rafael Tomaz de Oliveira e tantos outros.

A intenção aqui é um pouco diversa. Debater os limites do voluntarismo reformador na agenda regulatória. Obviamente não se defende o engessamento da agência criada para regular o mercado de combustíveis ou algo do gênero. A proposta é testar quais os limites para alterações regulatórias (se há) e confrontar uma proposta específica: o fim da tutela regulatória à fidelidade de bandeira.

A resumir a matéria para quem não conhece o assunto, atualmente os postos revendedores que ostentem marca de distribuidor de combustíveis não podem, por vedação regulatória (leia-se Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, ou ANP), comercializar combustíveis de outro fornecedor que não aquele estampado em seu estabelecimento.

A proposta de alteração consiste em deixar essa fiscalização a cargo somente das distribuidoras que seriam as únicas ou principais interessadas no cumprimento desse contrato. Ou seja, a ANP deixaria de fiscalizar o posto que ostenta uma marca e vende outra.

As teses foram contrapostas: enquanto as distribuidoras buscaram demonstrar que a tutela à bandeira dá segurança ao consumidor por escolher o posto em razão da marca e confiar no produto fornecido pela distribuidora; os defensores da mudança regulatória alegam que essa tese não se justifica porque a qualidade do combustível continuará sendo fiscalizada e o combustível comum seria uma commodity. Isso quer dizer que, independentemente da marca, o produto teria a mesma especificação.

Aqui jaz o primeiro problema. A compartimentalização do Direito faz suas vítimas. Enquanto ANP e Ministério da Justiça afirmam que os combustíveis comuns são commodities, os Departamentos Estaduais de Proteção e Defesa do Consumidor (Procons) espalhados pelo país oficiam os postos revendedores questionando a razão para preços de venda uniformes de combustíveis comuns. O aconteceria com um posto revendedor que respondesse ao Procon afirmando que o preço esperado para commodities é uniforme? Que não há disparidade de preços entre commodities? As consequências seriam graves.

Essa contradição precisa ser resolvida antes de avançar na proposta de alteração da regulação. Afinal, o combustível comum é commodity? Caso afirmativo, os questionamentos em relação a preço devem ser suspensos porque a explicação está dada. Caso negativo, o argumento é inválido e não serve a subsidiar a proposta.

Imperativo que se faça um aviso: não há aqui uma negativa absoluta e pueril sobre a inexistência de práticas anticoncorrenciais nesse mercado. O que se pretende é demonstrar a contradição em que resvala a proposta na medida em que usa justificativas que contrariam a atuação da fiscalização.

Avançando no tema, outro motivo para a mudança seria o interesse preponderante da distribuidora que deveria por ela ser fiscalizado, e não pelo poder público. A norma atual geraria uma "acomodação" da distribuidora, que não investiria recursos para fiscalizar seus contratos.

Eis o ponto-chave. Não é possível perceber qual o critério de distinção para atuação ou não do poder público. O interesse do consumidor, segundo os defensores da proposta, estaria preservado em razão da fiscalização da qualidade do combustível.

A conclusão parte de premissas equivocadas. O interesse público não se revela simplesmente por um aspecto da relação jurídica. O ordenamento jurídico leva esse nome porque não se limita à análise isolada de um elemento social sob a ótica de uma norma jurídica, trata-se de um plexo normativo que estrutura e coordena a vida social gerando expectativas de cumprimento.

A título de exemplo, as instituições financeiras são reguladas pelo Banco Central não sob a ótica individual da relação entre cliente e banco, mas pela importância que o sistema financeiro detém dentro da atividade econômica nacional. A saúde financeira de uma instituição financeira não interessa somente aos clientes daquela instituição, mas a toda sociedade.

Nesse sentido, a proteção à propriedade industrial também goza proteção especial não somente para preservar o interesse de um particular frente ao contrafator, mas para garantir um ambiente seguro para realização de investimentos.

Outro exemplo claro da defesa difusa do ambiente econômico é a defesa da concorrência. As limitações impostas às ações dos agentes econômicos podem proteger diretamente um envolvido, mas sua função é difusa, abstrata, serve a garantir os princípios da atividade econômica e o desenvolvimento nacional.

A própria ANP possui um procedimento para autorizar o exercício da atividade de distribuidor. O procedimento é complexo e exige o fornecimento de garantias de atendimento e garantias financeiras.

Sob o aspecto do interesse envolvido, qual o interesse em exigir capital social mínimo para desempenho da atividade de distribuição de combustíveis? O interesse não é do fornecedor e do cliente? Não seriam interesses preponderantemente privados?

O abastecimento de combustíveis é tratado como prioridade na Constituição e na lei de criação da ANP. Não é outra razão para restar clara a preponderância do interesse público. Fiscalizar a fidelidade à bandeira não se limita a tutelar o interesse da distribuidora, mas, sim, garantir, difusa e abstratamente, que o mercado de combustíveis no território brasileiro é desempenhado de forma organizada e transparente.

Onde se lê o nome de uma distribuidora na testada de um posto revendedor há garantia normativa de que o combustível é fornecido por aquele agente e não por um agente oculto qualquer.

Por mais que maçãs possam ser consideradas commodities, ninguém ficaria feliz em comprar um saco de maçãs da Turma da Mônica e depois descobrir que o saco foi violado e preenchido como maçãs de outro produtor, mesmo que as maçãs fossem da mesma qualidade. Alguém poderia argumentar: o comércio de maçãs não é regulado por agência. Ao que se responde: exatamente! Combustíveis são.

O interesse público transcende do habitual e justifica a própria existência da agência. A garantia do abastecimento está dentre suas funções e tratar como commodity depois de todo processo de identidade visual, logística, treinamentos, franquias e toda indústria que a distribuição de combustíveis desenvolveu é menoscabar o investimento privado em setor tão relevante da economia.

A liberdade de atuação normativa pelas agências reguladoras deve ser exercida dentro do contexto normativo, preservando o ordenamento de forma a evitar contradições. As antinomias gestadas na tentativa de alteração isolada das normas regulatórias além da insegurança jurídica que carregam (a dúvida sobre qual senhor deve servir: ANP, Procon, Conselho Administrativo de Defesa Econômica, ou Cade) causam ineficiência. Os agentes econômicos reduzem investimentos em mercados instáveis, notadamente quando a instabilidade é normativa.

Muitos argumentos foram debatidos sobre o tema, o que parece esquecido e precisa ser lembrado é que as normas jurídicas emanadas pela autoridade (diferenciando-as dos contratos) transcendem dos interesses individuais, funcionam como preservação geral de um modelo, de um sistema coerente e integrado de regulação que permite o funcionamento do mercado e a segurança em seu funcionamento.

Ao fim, voltamos ao princípio: quem define a prioridade de interesses envolvidos? Quando o interesse é privado e quando é público? A Constituição deve ter a resposta, mas a livre significação dos textos tem atrapalhado bastante o Direito brasileiro. Talvez seja hora de aceitar que a compreensão não está cindida da aplicação e manter a frase de Gadamer em quadros espalhados nas salas das autoridades brasileiras: "Em princípio, quem quer compreender um texto deve estar disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa" [1].

 


[1] GADAMER, Hans Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução: Paulo Meurer; revisão da tradução Enio Paulo Giachini.10.ed. Vozes: Petrópolis, 2008.p.358.

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