Opinião

A valoração aduaneira e a primazia do AVA

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22 de julho de 2021, 6h35

Embora o acordo de valoração aduaneira (AVA) tenha sido internalizado no Brasil há mais de 27 anos, sua aplicação ainda é motivo de muita divergência entre contribuintes e as autoridades fiscais.

Atualmente regulamentada pela IN 327/2003, mas em vias de mudança, tendo em vista a realização da Consulta Pública RFB 2/2019, a valoração aduaneira apresenta como regra primordial ("primeiro método") que o valor aduaneiro deve corresponder ao preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias ("valor da transação"). Apenas na impossibilidade de aplicação do primeiro método o valor aduaneiro será determinado conforme um dos métodos substitutivos.

Ao desconstituir o valor da transação, compete à autoridade fiscal demonstrar inequivocamente a ocorrência de uma das situações a seguir: que, se havia vinculação entre importador e exportador, essa relação influenciou os preços praticados (artigo 15 a 18); que há incompatibilidade "severa" do preço declarado com os seguintes parâmetros envolvendo mercadorias idênticas ou similares: os preços praticados em outras importações, os valores indicados em cotações de preços internacionais, preço de revenda no mercado e os custos de produção (artigo 32); a inexistência de dados objetivos e quantificáveis, relativos aos acréscimos que devem compor o valor aduaneiro (artigo 20), e não apresentação, à fiscalização, dos documentos relativos à importação (artigo 33).

Recentemente, o Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf) cancelou integralmente um auto de infração, justamente pela não observância das regras do AVA quanto à desconsideração do método do valor da transação (Acórdão 3302-010.803, de 29 de abril de 2021). O caso chama a atenção por envolver a aplicação das regras de preços de transferência para justificar uma suposta inadequação do valor aduaneiro praticado em operações com partes relacionadas.

Como se sabe, a interação das regras de preços de transferência e valoração aduaneira é objeto de muitas discussões. Embora ambas as normas tenham por objetivo evitar a manipulação de preços entre partes relacionadas, a valoração aduaneira tem por objeto a aferição do valor da importação praticada, para fins de recolhimento dos tributos devidos sobre o valor aduaneiro. Já as regras de preços de transferência visam a garantir que não haja manipulação do lucro tributável para fins de Imposto de Renda e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (IRPJ/CSLL).

No caso do Acórdão 3302-010.803, a autoridade fiscal desconsiderou o valor da transação por entender que a vinculação entre o importador e o exportador teria influenciado o preço das mercadorias importadas. A justificativa adotada foi que o preço praticado pelo importador seria muito inferior ao "preço parâmetro", calculado segundo o preço de revenda menos lucro (PRL) [1]. Diante da inexistência de mercadorias idênticas e similares que pudessem autorizar a aplicação dos segundo e terceiro métodos do AVA, referido "preço parâmetro" foi utilizado pela fiscalização para calcular o valor aduaneiro segundo o quarto método (valor dedutivo), mediante a dedução de uma margem fixa de lucro de 20%.

Felizmente, o Carf manteve a decisão do julgador de primeira instância e determinou o cancelamento do auto de infração, por unanimidade de votos. Prevaleceu o entendimento de que a fiscalização jamais poderia ter afastado o valor da transação mediante a comparação do preço praticado nas importações com o preço parâmetro calculado segundo o método PRL. Isso porque não houve comparação do preço praticado com aquele de mercadorias idênticas ou similares (porque inexistentes); não houve comparação do preço de revenda das mercadorias importados e não havia provas que evidenciassem que a relação entre as partes teria influenciado o preço (e.g., faturas paralelas).

Sobre a comparação com o preço parâmetro calculado pelo PRL, o julgador a considerou "totalmente equivocada", já que o "preço parâmetro" tem como origem as regras de preços de transferência, relacionadas à apuração do IRPJ/CSLL e não para fins aduaneiros (o "preço parâmetro" leva em consideração a média ponderada de preços no ano-calendário, enquanto a valoração aduaneira é feita por importação); não há autorização legislativa que autorize a vinculação do valor aduaneiro ao "preço parâmetro"; e o método dedutivo deve se basear nas informações contábeis prestadas pelo importador, não sendo autorizada a imposição de uma margem fixa de lucro de 20% prevista em outra legislação.

Além do procedimento para desconsideração do valor da transação, ressalte-se que a apuração do valor aduaneiro com base nos métodos substitutivos igualmente deve ser feita segundo o AVA, que determina a ordem sequencial a ser observada. Não raro, as autoridades simplesmente alegam a impossibilidade de adoção dos métodos segundo a quinto do AVA para que o valor aduaneiro seja calculado segundo o sexto método, que admite certa flexibilidade.

Felizmente, a jurisprudência é firme no sentido de que os métodos substitutivos devem seguir a ordem do AVA, sendo necessário justificar a impossibilidade de adoção do método anterior. Nesse sentido:

"Assim como é necessário que a fiscalização apresente o devido conjunto probatório para afastar o valor de transação, também deve apresentar justificativas suficientes e comprovadas para afastar todos os seguintes métodos substitutivos de valoração aduaneira" [2].

Portanto, conclui-se que as autoridades devem observar estritamente os ditames do AVA nas fiscalizações relacionadas à valoração aduaneira, incluindo a apresentação de provas objetivas que justifiquem a desconsideração do valor da transação e a adoção dos métodos substitutivos, sob pena de cancelamento integral dos autos de infração.

* Texto elaborado para a série de artigos da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-SP sobre temas aduaneiros, tributários e de comércio exterior.


[1] O método PRL é previsto na legislação de preços de transferência para definição dos preços parâmetros nas importações, calculado mediante a dedução de certas despesas e de uma margem de lucro fixa de 20%.

[2] Carf, Acórdão nº 3402-007.015. No mesmo sentido, Apelação TRF3 0027356-71.2006.4.03.6100, julgada 2019.

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    é advogada no escritório Trench, Rossi e Watanabe Advogados, integrante da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-SP, LL.M. em Direito Tributário pelo Insper, com extensão no Mestrado em Law and Economics da Universidade de St. Gallen, Suíça.

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    é advogado e professor de Cursos sobre Logística e Comércio Exterior, integrante da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-SP, especialista em Direito Processual Tributário pela PUC-SP, especialista em Direito Empresarial pela FGV-SP, mestrando pela The Australian National University, Austrália.

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