Opinião

PL 5.516/2019 possibilita a recuperação judicial de clubes de futebol

Autores

  • Alexandre Correa Nasser de Melo

    é coordenador e professor da pós-graduação em falência e recuperação de empresas da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).

  • Humberto Lucas Almeida

    é advogado atuante em Direito Empresarial integrante da equipe de advogados da Credibilità Administrações Judiciais pós-graduando em Direito Empresarial na PUCPR e em Direito Aplicado na Escola da Magistratura do Paraná - EMAP.

22 de julho de 2021, 16h09

Foi recentemente aprovado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 5.516/2019, que é considerado o marco legal do clube-empresa no Brasil. O projeto institui a sociedade anônima do futebol (SAF), novo modelo societário do Direito brasileiro, e visa à quebra do paradigma centenário do modelo associativo que hoje impera no futebol nacional. O assunto há anos vem sendo debatido na academia e na mídia esportiva como o remédio que trará a profissionalização do esporte nacional.

O modelo clube-empresa já é amplamente difundido no futebol europeu, em que 92% dos times que disputam as cinco principais ligas adotam o modelo empresarial. O contraste é grande com o cenário brasileiro, no qual três dos 40 times que disputam a primeira e segunda divisões são constituídos como sociedades empresárias (Red Bull Bragantino, Botafogo-SP e Cuiabá), enquanto os outros 37 são associações civis.

A inserção dos clubes-empresa no ordenamento jurídico brasileiro se deu com a Lei nº 8.672/1993 (Lei Zico) [1], que facultava aos clubes e às confederações se transformarem em sociedades comerciais com finalidade desportiva. Adveio, então, a Lei nº 9.615/1998 (Lei Pelé), que revogou a antiga lei e a facultatividade passou a ser obrigatoriedade. Posteriormente, a Lei nº 9.981/2000 alterou a Lei Pelé para novamente tornar a transformação facultativa, todavia, pela falta de instrumentos legais essa faculdade raramente foi exercida pelos clubes.

Sendo assim, até então, a única maneira que os clubes de futebol tinham disponível para serem consideradas entidades empresárias era a criação de uma sociedade subsidiária à associação civil, com a posterior transferência contratual dos ativos ligados à atividade desportiva. Como o futebol é um ambiente regulado, essa manobra empresarial dependia da anuência da Confederação Brasileira de Futebol para que a nova pessoa jurídica pudesse participar das competições de atletas profissionais.

Para simplificar a questão, o Projeto de lei n.º 5516/2019 traz no artigo 2º, I e II, a possibilidade de que os clubes que são associações civis constituam sociedades anônimas do futebol por meio das operações já conhecidas do direito societário da transformação e da cisão e prevê como se dará a transferência de ativos, obrigações e direitos à SAF  [2] [3] para que esta possa continuar disputando profissionalmente as competições que o clube originalmente disputava.

Na forma do artigo 2º, §1º, a nova sociedade obrigatoriamente sucederá o clube nas relações com as entidades de administração (CBF, federações e ligas desportivas), bem como nas relações contratuais, de qualquer natureza, com atletas profissionais do futebol. O mesmo dispositivo garante o direito da sociedade de participar de campeonatos, copas ou torneios em substituição ao clube, nas mesmas condições em que se encontravam no momento da sucessão, competindo às entidades de administração a devida substituição sem quaisquer prejuízos de ordem desportiva.

No caso específico da cisão, como o clube ou pessoa jurídica originária permanecerá existindo, o projeto de lei obriga que os direitos e deveres, decorrentes de quaisquer relações estabelecidas com o clube, vinculados à atividade do futebol, sejam transferidos à nova sociedade através de contrato firmado na data da constituição. Essa transferência independe da participação, autorização ou consentimento de credores ou partes interessadas para ter validade.

O artigo 9º do projeto determina que a SAF não responde pelas obrigações do clube ou da pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social, respondendo pelas obrigações que lhe forem transferidas conforme disposto no §2º do artigo 2º do citado projeto de lei, cujo pagamento aos credores se limitará à forma estabelecida no artigo 10.

A partir desse dispositivo o projeto avança do direito societário e passa a prever mecanismos voltados especificamente à quitação das obrigações dos clubes. Não é segredo que a "indústria do futebol" no Brasil passa por uma grave crise financeira, que há anos vem se agravando e foi sobremaneira acelerada pela pandemia da Covid-19. Em estudo divulgado pela EY Sports [4], o endividamento líquido dos 23 principais clubes do Brasil somado subiu 30% de 2016 a 2020, passando de R$ 6.5 bilhões para R$ 10.3 bilhões. Alguns clubes demonstraram em 2020 uma capacidade de gerar receitas muito inferior que endividamento do clube, como é o caso do Cruzeiro, com um endividamento 7,8 vezes maior do que o faturamento em 2020, e o Botafogo, que apresentou um endividamento 5,8 vezes maior.

Nesse cenário de endividamento, o acesso dos clubes a mecanismos eficientes de reestruturação de passivo era árduo. Predominava no Judiciário o entendimento de que os institutos previstos na Lei nº 11.101/2005 (LREF)  recuperação judicial ou extrajudicial  aplicam-se às sociedades empresárias e não às associações civis. Há, contudo, exceções na jurisprudência, nas quais associações tiveram reconhecida a legitimidade ativa para pleitear recuperação judicial ou extrajudicial em razão de apesar de formalmente adotarem o modelo associativo, exercem atividade empresarial organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, na forma do artigo 966 do Código Civil [5].

Este é o caso do Figueirense Futebol Clube, primeiro e único caso até então no qual foi aplicada a LREF a um time de futebol. Mesmo tendo uma sociedade limitada como subsidiária, o pedido de tutela antecipada em caráter antecedente formulado pelo clube para antecipar efeitos do stay period foi negado no primeiro grau, pois prevaleceu o entendimento de que as associações civis sem fins lucrativos não poderiam se utilizar da Lei nº 11.101/2005 por não constituírem sociedade empresarial. Apenas em grau de recurso, em decisão proferida pelo desembargador Torres Marques, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, foi reconhecida a legitimidade ativa para o pedido, sob o fundamento de que "o fato de o primeiro apelante enquadrar-se como associação civil não o torna ilegítimo para pleitear a aplicação dos institutos previstos na Lei n° 11.101/2005, porquanto não excluído expressamente do âmbito de incidência da norma (artigo 2º), equiparado às sociedades empresárias textualmente pela Lei Pelé e, notadamente, diante da sua reconhecida atividade desenvolvida em âmbito estadual e nacional desde 12/6/1921, passível de consubstanciar típico elemento de empresa (atividade econômica organizada)" [6].

Além desse importante precedente, nota-se na jurisprudência a tendência de aceitar pedidos de recuperação de associações civis quando se reconhece que a atividade exercida é tipicamente empresarial. Esse é o caso, por exemplo, da Universidade Cândido Mendes [7], no qual a 6ª Câmara Cível do Rio de Janeiro reconheceu que referida entidade civil exerce atividade econômica, organizada para a produção e circulação de bens e serviços. Também se cita o exemplo da recuperação judicial da Ulbra [8], na qual foi proferida decisão pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul [9], que reconheceu que a devedora exerceu atividade empresária por mais de 40 anos, independentemente de ser formalmente constituída como associação civil.

Há diversos outros precedentes que robustecem esta linha como a Universidade de Cruz Alta (2005), a Associação Luterana do Brasil (2019), ambas do Rio Grande do Sul, e no Rio de Janeiro, o Hospital Casa de Portugal (2006). Esse contexto jurisprudencial permite a compreensão de que as associações civis, apesar de não possuírem a finalidade de lucro, exercem atividade econômica, sendo possível sua equiparação à pessoa (natural ou jurídica) empresária, e por conseguinte a aplicação das normas da Lei nº 11.101/2005, numa prevalência da realidade sobre a forma, entendimento que se aproveita aos times de futebol que adotam o modelo associativo.

O artigo 25 do projeto evita a discussão sobre a aplicação da Lei nº 11.101/2005 aos clubes de futebol, pois é categórico ao positivar: "O clube, ao optar pela alternativa do inciso II do artigo 13 desta Lei, e por exercer atividade econômica, é admitido como parte legítima para requerer a recuperação judicial ou extrajudicial, submetendo-se à Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005".

O disposto no artigo 25 inova o direito concursal, pois é a primeira vez que há previsão legal expressa autorizando que uma associação civil se socorra da Lei nº 11.101/2005. Veja-se que o dispositivo utiliza a expressão "o clube", que na forma do artigo 1º, §1º, inciso I do projeto deve ser interpretado como "associação civil, regida pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), dedicada ao fomento e à prática do futebol".

Em continuidade, para que não restem dúvidas acerca da qualidade empresarial da atividade futebolística, e por consequência da legitimidade ativa para requerer recuperação judicial ou extrajudicial, o projeto em seu artigo 35 promove a inclusão do parágrafo único ao artigo 971 do Código Civil com a seguinte redação [10]: "Aplica-se o disposto no caput deste artigo à associação que desenvolva atividade futebolística em caráter habitual e profissional, caso em que, com a inscrição, será considerada empresária, para todos os efeitos".

Assim, a alteração legislativa abre o caminho para novos pedidos de recuperação judicial ou extrajudicial dos times de futebol, seja qual for a modalidade de sua constituição, pois há quatro cenários possíveis:

1) O clube (associação civil) opta por permanecer no modelo associativo: O clube é parte legítima para pedir recuperação judicial ou extrajudicial, por força do artigo 25 do Projeto de Lei nº 5.516/2019 e parágrafo único do artigo 971 do Código Civil, que reconhece a natureza empresária a atividade futebolística;

2) O clube (associação civil) opta pela transformação em sociedade anônima do futebol  artigo 2º, I, do projeto: a nova sociedade (SAF) é legitima para requerer recuperação judicial ou extrajudicial, pois é sociedade empresária, regida subsidiariamente pela Lei das S.A., e satisfaz o requisito do artigo 1º da Lei nº 11.101/2005 [11];

3) O clube (associação civil) opta por cisão com a constituição de sociedade anônima do futebol  artigo 2º, II, do projeto: tanto o cindido (associação) quanto a sociedade nova (SAF) são partes legítimas para requerer recuperação judicial ou extrajudicial em litisconsórcio ativo, pelos motivos dos dois cenários anteriores, e o pedido poderá ser processado em consolidação processual (artigo 69-G da LREF) ou substancial (artigo 69-J da LREF), a depender da interconexão e a confusão entre ativos ou passivos dos devedores e satisfação das hipóteses legais para tanto;

4) A constituição de sociedade anônima do futebol pela iniciativa de pessoa natural, jurídica ou de fundo de investimento  artigo 2º, III, do projeto: aplica-se à constituição originária a mesma sorte da transformação em SAF (artigo 2º, I, do projeto).

Ao tempo em que os times de futebol, com a sanção do projeto de lei aprovado, se tornarão partes legítimas para requerer recuperação judicial ou pedir homologação de plano de recuperação extrajudicial, também se tornarão, pela mesma lógica, sujeitos aos ônus da falência. A partir do momento em que a LREF se aplica aos clubes, eles poderão também ter suas falências decretadas, seja ela fruto de uma convolação de recuperação judicial em falência, do requerimento de um credor ou, até mesmo, de um pedido de autofalência.

O projeto aprovado aguarda a sanção presidencial e entrará em vigor como lei ordinária na data de sua publicação. Certamente, ensejará caloroso debate acadêmico sobre suas diversas inovações, entretanto, parece evidente que a recuperação judicial e a extrajudicial se tornaram uma alternativa viável para a reestruturação das dívidas futebolísticas.

 


[1] Lei n.º 8.672/1993, artigo 11. "É facultado às entidades de prática e às entidades federais de administração de modalidade profissional, manter a gestão de suas atividades sob a responsabilidade de sociedade com fins lucrativos, desde que adotada uma das seguintes formas: […]".

[2] Lei n.º 6.404/1976, artigo 220. "A transformação é a operação pela qual a sociedade passa, independentemente de dissolução e liquidação, de um tipo para outro".

[3] Lei n.º 6.404/1976, artigo 229. "A cisão é a operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a versão".

[5] Código Civil, artigo 966. "Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços".

[7] Recuperação Judicial número 0093754-90.2020.8.19.0001, em trâmite perante a 5ª Vara Empresarial da Comarca da Capital do Rio de Janeiro

[8] Recuperação judicial em trâmite perante o 1º Juízo da 4ª Vara Cível da Comarca de Canoas-RS, processo distribuído sob o nº 5000461-37.2019.8.21.0008

[9] Apelação Cível nº 5000461-37.2019.8.21.0008/TJRS, 6ª Câmara Cível

[10] "Artigo 971 – O empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode, observadas as formalidades de que tratam o artigo 968 e seus parágrafos, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro".

[11] Lei n.º 11.101/2005, artigo 1º. "Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor".

Autores

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    é advogado e administrador judicial, sócio fundador do escritório Nasser de Melo Advogados Associados e da Credibilitá Administrações Judiciais, coordenador da pós-graduação de Recuperação Judicial e Falência da PUCPR e coautor do livro "Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falências" da Editora Juruá.

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    é advogado atuante em Direito Empresarial, integrante da equipe de advogados da Credibilità Administrações Judiciais, pós-graduando em Direito Empresarial na PUCPR e em Direito Aplicado na Escola da Magistratura do Paraná - EMAP.

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