Opinião

Sobre a obrigatoriedade do consentimento do cônjuge no planejamento familiar

Autor

  • Miriele Vidotti

    é advogada especializada em Direito Médico e da Saúde pós-graduanda em Direito Médico e da Saúde pela PUC-PR e pesquisadora em Bioética.

21 de julho de 2021, 12h04

A Lei nº 9.263/1996, elaborada sob o contexto da regulamentação do artigo 226, §7º, da Constituição Federal, trata do planejamento familiar, seus instrumentos, formas de acesso ao planejamento e, ainda, as penalidades de caráter criminal para as violações à lei.

O planejamento familiar não só é considerado um direito humano pela Organização das Nações Unidas como também é concebido como mecanismo de empoderamento de meninas e mulheres no mundo todo, conforme fala do assessor-sênior do Fundo da ONU para a População, Elizeu Chaves, o que por si só nos desperta para a problemática da vigente lei de planejamento familiar, conforme será exposto no presente artigo [1].

A Constituição Federal, em seu artigo 226, §7º, afirma ser o planejamento familiar um direito fundado no princípio da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, determinando ainda que o Estado propicie recursos para o exercício desse direito e se abstenha de qualquer conduta coercitiva no seu exercício.

Neste contexto, a Lei 9.263/1996, ao buscar regulamentar o referido dispositivo constitucional, traz em seu conteúdo imposições que ferem direitos fundamentais e perpetuam a desigualdade de gênero, em especial quando estabelece restrições para o acesso à esterilização voluntária de mulheres, quando em sociedade conjugal, impondo a necessidade de consentimento expresso do cônjuge para a efetivação da esterilização espontânea.

No âmbito do Direito Internacional, o planejamento familiar e reprodutivo já era abordado muito antes da Lei 9.263/1996, como se verifica da Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Teerã, em 1968, que em seu capítulo 16 aponta como direito humano fundamental dos genitores a livre determinação do número e intervalo entre filhos [2].

Em que pese o Brasil não tivesse legislação específica regulamentando o planejamento familiar no país anteriormente à referida lei, o planejamento reprodutivo das mulheres e dos casais no país foi um tema pensado demasiado pelas concepções e noções religiosas, mais especificamente pelos costumes católico-cristãos, marcados pela moral e repressão ao livre exercício da sexualidade [3].

Igualmente, o planejamento familiar no Brasil foi desenvolvido sob a ótica da assistência materno-infantil, com centralização elevada do papel da mulher na família e na reprodução, prevendo no artigo 10, §5º, da Lei 9.263/1996 o impositivo de que na vigência de sociedade conjugal a esterilização depende de autorização expressa de ambos os cônjuges [4].

Além disso, o artigo 15 da Lei nº 9.263/1996 indica as penalidades de ordem criminal que serão aplicadas no descumprimento do rol das hipóteses permissivas da esterilização voluntária, prevendo pena de reclusão de dois a oito anos para a infração à norma.

Na análise dessa restrição, partindo do referencial bioético principialista, trazido na obra de Tom Beauchamp e James Childress, que indica os quatro princípios bioéticos vetores das decisões e da condução da relação profissional de saúde/paciente, sendo esses princípios autonomia, beneficência, não maleficência e justiça, verifica-se que a restrição para o acesso à esterilização voluntária, com a exigência de autorização expressa do cônjuge, fere frontalmente o princípio da autonomia dos indivíduos, que deve ser norteadora das decisões que envolvam profissionais da saúde e pacientes [5].

A autonomia deve ser utilizada, portanto, como instrumento para que as individualidades sejam respeitadas, como bem aponta a professora Rachel Sztajn em sua obra "Direitos do Paciente" que a autonomia é a prerrogativa para que as pessoas decidam sobre a própria vida livres de coerção [6].

A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, assinada pelo Brasil no ano de 2005, tem como um dos principais princípios a autonomia e responsabilidade individual, com a orientação aos Estados signatários de respeito à autonomia individual na tomada de decisões, conforme artigo 5º desta carta [7].

Além disso, não se pode ignorar a vulnerabilidade da mulher nas relações conjugais e a existência de um imaginário cultural que impõe a maternidade e procriação às mulheres quando em relação conjugal, de modo que se mostra extremamente necessária a análise e a intervenção ética através do reconhecimento e aplicação de princípios compensatórios dessa vulnerabilidade social das mulheres [8].

No plano internacional, a conferência das Nações Unidas realizada no Cairo no ano de 1994 traz como direito humano fundamental o exercício da sexualidade plena e do planejamento reprodutivo, cabendo aos Estados a implementação de políticas de saúde da reprodução com a oferta ampla de serviços de saúde sexual e reprodutiva, tendo em vista o direito de decidir livremente de cada cidadão e a necessidade de que o Estado não empreenda recursos de coerção na tomada dessas decisões individuais no âmbito do planejamento reprodutivo [9].

De forma ainda assertiva no que tange à justiça e equidade de gênero, a Conferência de Pequim, realizada em 1995, endossa ainda mais a necessidade de políticas públicas que observem a igualdade dos direitos entre homens e mulheres e que promovam políticas que erradiquem a coação, discriminação e as diversas formas de violência contra as mulheres, para que as mulheres exerçam, de forma livre e autônoma, a sexualidade e a procriação [10].

No plano interno, se o próprio dispositivo constitucional prevê no artigo 226, §7º, que as instituições estatais estão impedidas de qualquer forma de coerção no exercício desse direito, verifica-se clara afronta ao texto constitucional em a norma infraconstitucional restringir o acesso à esterilização voluntária e exigir autorização que ultrapassa a autonomia dos indivíduos.

A restrição ao acesso à esterilização voluntária, com a necessidade de autorização do cônjuge, afronta o princípio da dignidade humana, insculpido no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, tendo em vista que a dignidade corresponde e só se efetiva com a autonomia e a liberdade individual, através do direito de cada indivíduo de fazer suas escolhas existenciais sem coerção [11].

Por fim, há clara violação à igualdade de gênero como direito fundamental previsto no artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal, tendo em vista que somente a mulher suportará o ônus da gestação, de modo que só se pode falar em igualdade plena de gênero se às mulheres for assegurada a autonomia individual na decisão sobre as intervenções que recairão ou não sobre os seus corpos.

Portanto, a autonomia e a luta pelo direito à livre decisão são indissociáveis, na medida em que a busca pela igualdade de gênero percorre a necessidade de que a autonomia plena das mulheres seja um dos mecanismos de redução da opressão social, sendo inclusive garantido pelo artigo 5º, caput, da Constituição Federal a igualdade de todos perante a lei e a liberdade individual enquanto direito fundamental consolidado.


[1] Assessor-sênior do Fundo da ONU para a População, Unfpa, Elizeu Chaves, explica a importância deste tema; este ano, marca-se o 50º aniversário da Conferência Internacional de Direitos Humanos que, pela primeira vez, considerou este recurso como um direito humano. Disponível em https://news.un.org/pt/interview/2018/07/1630721.

[3] COSTA, Ana Maria. Planejamento familiar no Brasil. Revista Bioética do Conselho Federal de Medicina, 2009. V. 4, n. 2. Disponível em: https://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/issue/view/28

[4] SANTOS, Julio Cesar dos; FREITAS, Patricia Martins de. Planejamento familiar na perspectiva do desenvolvimento. Revista Ciência & Saúde Coletiva, 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/VMbQP9cjTm6YSLRYzJpkGHL/?lang=pt

[5] GARRAFA, Volnei. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Revista Bioética. 2005. V. 13, n.1. Disponível em: https://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/issue/view/8.

[6] SZTAJN R. Reflexões sobre consentimento informado. In: Azevedo AV, Ligiera WR, coordenadores. Op. cit. p. 173 – 90,  apud PAZINATTO, Marcia Maria. Rev. Bioética, 2019. A relação médico-paciente na perspectiva da Recomendação CFM 1/2016. Ver. Bioética, 2019. 27 (2). Disponível em https://doi.org/10.1590/1983-80422019272305.

[7] Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf.

[8] DINIZ, Debora, GUILHEM, Dirce. O que é Bioética. 1ª Ed. Ed. Brasiliense, São Paulo, 2002.

[9] Conferência das Nações Unidas sobre população e desenvolvimento, Cairo, 1994. Princípio 8. Disponível em: http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf.

[10] Conferência Mundial sobre a Mulher, Pequim, 1995, princípios 15 e 96. Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/declaracao_beijing.pdf.

[11] BARROSO, Luís Roberto. A judicialização da vida. 2ª Reimpressão – Belo Horizonte: Fórum, 2018, pág. 211.

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  • Brave

    é advogada especializada em Direito Médico e da Saúde, pós-graduanda em Políticas Públicas y Justiça de Género pelo Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais e pesquisadora em Bioética.

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