A democracia, como regime de governo baseada no soberania exercida pelo povo — elegem seus representantes através do voto —, tem como pilares a garantia e o respeito aos direitos fundamentais, como as liberdades de expressão, de religião, de ir e vir, além da participação no ambiente político. Nesse contexto, temos a formação da noção de que a democracia é o governo da maioria, através do princípio majoritário.
Assim, para o efetivo exercício da democracia, há a necessidade de se observar as chamadas condições democráticas, sendo essas explicadas por Ronald Dworkin:
"Democracia significa governo sujeito a condições, as quais poderíamos denominar condições <<democráticas>> de igualdade de posições para todos os cidadãos. Quando as instituições majoritárias fornecem e respeitam as condições democráticas, então, por essa razão, é legítimo que estas instituições sejam aceitas por todos. No entanto, quando não o fazem, ou quando não fornecem ou respeitam suficientemente, então não podem se opor, em nome da democracia, a outros procedimentos que protejam e respeitem melhor essas condições" (Dworkin, 2004, p. 117, traduzido por Souza, 2016, p.4).
Nessa mesma esteira de que a democracia é o governo da maioria, entende-se que ela contém a visão de que os direitos fundamentais são trunfos contra a maioria, na medida em que garante a efetivação e respeito dos direitos da minoria. Assim entende Luigi Ferrajoli:
"Ninguna mayoría política puede disponer de las libertades y de los demás derechos fundamentales: decidir que una persona sea condenada sin pruebas, privada de la libertad personal, de los derechos civiles o políticos o, incluso, dejada morir sin atención o en la indigência" (2009, p. 36) [1].
Daí que a Constituição, ao prever que qualquer ato emanado pelo Legislativo ou pelo Executivo possa sofrer o controle por parte do Judiciário, permitindo que a vontade da maioria — representada pelos representantes eleitos do Executivo e Legislativo — seja submetida ao crivo de um poder que não foi eleito por ela, referenda a ideia de que os direitos fundamentais tem caráter limitador da atuação do Estado, vejamos:
"Percebe-se então que os direitos fundamentais são concebidos como posições jurídicas tão especiais que não podem se encontrar sob o arbítrio da maioria, justamente porque possuem um papel contramajoritário que visa garantir interesses daqueles que, em determinado momento histórico, podem constituir uma minoria" (Marinho e Borges, p.4).
No mesmo sentido, Robert Alexy:
"Uma possível perspectiva ou ideia-guia seria um conceito geral e formal de direitos fundamentais, que pode ser expresso da seguinte forma: direitos fundamentais são posições que são tão importantes que a decisão sobre garanti-las ou não garanti-las não pode ser simplesmente deixada para a maioria parlamentar simples" (2011, p. 446).
Passada essa introdução, e frente à transição política para governos democráticos, aumentou-se a ação das instituições judiciais na gerência da democracia. No Brasil, não foi diferente, o Judiciário, desde os primórdios, tem demonstrado a capacidade de interferência no cenário político, através do controle de constitucionalidade. Assim, ele ganhou, no debate contemporâneo sobre controle judicial de constitucionalidade, a função de "contramajoritário".
De início, há a necessidade de analisar a expressão sobre o aspecto funcional. Assim, a função contramajoritária "resultaria da ampliação das áreas de atuação dos tribunais pela via do poder de revisão judicial de ações legislativas e executivas, baseado na constitucionalização de direitos e dos mecanismos de checks and balances" (Maciel; Koerner, 2002, p. 114) elencados na Constituição como um meio balizador e autorregulador do próprio Estado. Segundo Barroso e Mendonça (2013, p.2-3), informando sobre a função judiciária, temos que:
"O primeiro papel é apelidado, na teoria constitucional, de contramajoritário: em nome da Constituição, da proteção das regras do jogo democrático e dos direitos fundamentais, cabe a ela a atribuição de declarar a inconstitucionalidade de leis (i.e., de decisões majoritárias tomadas pelo Congresso) e de atos do Poder Executivo (cujo chefe foi eleito pela maioria absoluta dos cidadãos). Vale dizer: agentes públicos não eleitos, como juízes e ministros do STF, podem sobrepor a sua razão à dos tradicionais representantes da política majoritária. Daí o termo contramajoritário."
Assim temos que a Constituição, ao prescrever a possibilidade de controle pelo Judiciário dos atos emanados pelo Executivo e pelo Legislativo (que foram tomados de forma majoritária, estes eleitos pelo povo e decisões que foram tomadas representando a maioria que os elegeu), permite, numa visão contramajoritária, a limitação da maioria em favor da Constituição, vejamos:
"O controle judicial de constitucionalidade ainda que contramajoritário consiste em elemento essencial de um Estado Democrático de Direito visto que age contra a vontade da maioria ordinária, mas em favor de uma maioria mais forte representada pela Constituição" (Santos e Arteiro, p.14).
Temos que todo o poder emana do povo, sendo este soberano, ditando as diretrizes através da Constituição, sendo esta suprema e soberana. Assim, todos os poderes devem respeito e obediência aos princípios e valores por ela elencados, cabendo ao Judiciário atuar de forma contramajoritária para corrigir eventuais distorções e abusos praticados pelos outros poderes.
Nesse contexto infere-se que o controle de constitucionalidade é um instituto que garante a supremacia constitucional como excelência (Dantas, 2001, p. 9), assegurando os anseios das minorias diante da vontade ou omissão das maiorias.
"Assim, considerando-se tal característica instrumental e de garantia da constitucionalidade que o caracteriza, o controle de constitucionalidade opera como instituição assecuratória das minorias vencidas e da própria democracia, protegendo e corrigindo imperfeições do próprio sistema democrático representativo majoritário" (Sgarbossa et al., 2011, p.145).
A partir da experiência contemporânea do exercício do controle de constitucionalidade no Brasil, é adequado caracterizar o Poder Judiciário brasileiro como "contramajoritário", na medida em que a própria Constituição atribui a ele a função de assegurar a eficácia dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo historicamente consagrados, em um processo de limitação da vontade majoritária, levando-se em conta a vontade da Constituição, seja em casos de ação ou em casos de omissão.
Além de ser "contramajoritário", o controle de constitucionalidade é democrático, garantindo a participação de todos no processo na medida de suas peculiaridades. Vejamos:
"Portanto pode-se inferir que o controle judicial de constitucionalidade das leis, sem embargo de ser contramajoritário — pois frequentemente realizará sua função obstaculizando a vontade majoritária — não é antidemocrático, senão instrumento garantidor da própria noção de democracia ou corretivo de seu caráter contramajoritário. Tal conclusão evidencia, inclusive, que o fato de ser feito por instituições que não representam a vontade da maioria, em lugar de ser grave defeito de legitimidade, como alguns parecem querer fazer crer, faz com que o instituto esteja mais apto ainda a desempenhar suas funções, ainda que contra a vontade majoritária ou fictamente reputada como tal, em função da representação" (Sgarbossa et al., 2011, p.147).
Assim, coerente também é a conclusão de que é devida a caracterização do Judiciário como "contramajoritário" na medida em que, no exercício do controle de constitucionalidade, os seus componentes gozam do benefício da vitaliciedade, reduzindo assim a possibilidade de pressão política (evitando distorções em um ambiente de comoção social), podendo efetivar a proteção das minorias.
"Ademais, partindo-se da premissa de que o controle de constitucionalidade das leis pode operar como um instrumento protetor das minorias políticas, como visto, seria uma vez mais absurdo deixar esta proteção sob a incumbência de órgãos eleitos por um processo deliberativo majoritário, os quais parecem melhor vocacionados à representação política das maiorias do que à proteção das minorias. Paralelamente, justamente em razão de serem eleitos, é natural que estes órgãos estejam muito mais sujeitos a pressões da opinião pública, e, assim, sejam mais suscetíveis a concretizar os clamores populares feitos em momentos de comoção pública, ainda que em clara contrariedade ao texto constitucional" (Sgarbossa et al., 2011, p.149).
Nisso, "esse contexto de uma presença mais efetiva do direito cria, como consequência lógica, um processo de Judicialização de demandas sociais, preocupadas com a concretização do amplo elenco de Direitos Fundamentais" (Vieira, 2009, P.45).
Barroso argumenta que a Carta Política de 1988 trouxe inúmeras matérias que antes eram tratadas pelo "processo político majoritário e para a legislação ordinária" (2012, p.24). Assim, matérias que antes ficavam restritas ao Legislativo e ao Executivo podem ser judicializadas e levadas ao conhecimento do Poder Judiciário, "na medida em que uma questão — seja um direito individual, uma prestação estatal ou um fim público — é disciplinada em uma norma constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica" (2012, p.24).
A opção do controle de constitucionalidade permite a judicialização da vida, que foi uma opção que lentamente foi sendo formada, pois "limitou-se ela a cumprir, de modo estrito, o seu papel constitucional, em conformidade com o desenho institucional vigente" (Barroso, 2012, p. 25), diante de ações ou omissões da vontade majoritária.
Referências bibliográficas
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2011.
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. (Syn) thesis, v. 5, n. 1, p. 23-32, 2012.
BARROSO, Luís Roberto; MENDONÇA, Eduardo. STF entre seus papéis contramajoritário e representativo. Revista Consultor Jurídico. 3 jan. 2013. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-jan-03/retrospectiva-2012-stf-entre-papeis-contramajoritario-representativo>. Acesso em 11 set. 2016.
DANTAS, Ivo. O valor da Constituição: do controle de constitucionalidade como garantia da supralegalidade constitucional. 2. ed., rev. e aumen. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
DWORKIN, Ronald. La construcción de La nación, el constitucionalismo y la democracia. In: KOH, Harol Hongju; Slye, Ronald C. Democracia deliberativa y derechos humanos. 1. ed. Barcelona: Gedisa, 2004.
FERRAJOLI, Luigi. Derechos Fundamentales. In: L. FERRAJOLI, Los fundamentos de los derechos fundamentales (pp. 19-56). Madri: Trotta, 2009.
MARINHO, Sérgio Augusto Lima; BORGES, Alexandre Walmott. O Papel contramajoritário dos Direitos Fundamentais e o dever do Poder Judiciário Brasileiro perante omissões legislativas. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=8ee30f15c1c633d3>, Acesso em 11 set. 2016.
MACIEL, Débora Alves; KOERNER, A. Sentidos da Judicialização da Política: Duas análises. Lua Nova, n.º 57, 2002.
SANTOS, Bruna Izídio de Castro; ARTEIRO, Rodrigo Lemos. O princípio contramajoritário como mecanismo regulamentador da soberania. Disponível em: < http://eventos.uenp.edu.br/sid/publicacao/artigos/8.pdf>. Acesso em 11 set. 2016.
SGARBOSSA, Luís Fernando et al. Uma crítica à objeção contramajoritária ao controle judicial de constitucionalidade. X Simpósio Nacional de Direito Constitucional — ABDConst. Curitiba, 24-26 maio 2012. Disponível em: <http://abdconst.com.br/anais2/ObjecaoLuis.pdf>. Acesso em: 11 set. 2016.
SOUZA, Clarissa Abrantes. O papel contramajoritário do Supremo Tribunal Federal e a efetivação dos direitos fundamentais. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 abr. 2016. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.55583&seo=1>. Acesso em: 11 set. 2016.
VIEIRA, José Ribas. Verso e Reverso: a judicialização da política e o ativismo judicial no Brasil. Revista Estação Científica. Juiz de Fora, V.01, no. 04, outubro/novembro de 2009. Disponível em: <http://portal.estacio.br/media/2654368/artigo%203%20revisado.pdf>. Acesso em: 15 set. 2016.
[1] "Nenhuma maioria política pode dispor das liberdades e dos demais direitos fundamentais: decidir que uma pessoa seja condenada sem provas, privada de sua liberdade pessoal, dos direitos civis ou políticos, nem deixar alguém morrer sem atenção ou em indigência" (tradução MARINHO e BORGES, p.4).