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Opinião: A prescrição e o artigo 3º da Lei nº 14.010/2020

20 de julho de 2021, 19h18

Por Demétrio Beck da Silva Giannakos

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Os autores, em outras oportunidades, já trouxeram ao debate alguns casos de Direito Privado que foram afetados diretamente pela pandemia da Covid-19: "Pode o juiz arbitrar redução de aluguel dispensando prova?" [1] e "Mensalidades escolares e proporcionalidade. Qual proporcionalidade?" [2].

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Pode o leitor se perguntar: mas qual a relação desses casos com o artigo 3º da Lei nº 14.010/2020 (Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia da Covid-19) [3]? A resposta é simples: certamente, a apreciação judicial acerca do dispositivo legal.

Vamos ao ponto: o referido dispositivo de lei dispõe o seguinte:

"Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020".

O seu parágrafo primeiro, por sua vez, legisla da seguinte forma:

"Este artigo não se aplica enquanto perdurarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional".

O legislador parece ter sido claro: as situações jurídicas que possuem prazos prescricionais ou decadenciais em curso até o dia 10/6/2020 terão seus prazos suspensos ou impedidos até o dia 31/10/2020. Tal disposição, por óbvio, é passível de críticas e comentários. Porém, como se sabe, a lei (qualquer lei) possui limites de aplicação judicial e, nesse caso, não nos parece muito aberta à interpretações.

Recentemente, a 23ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento do Recurso de Apelação nº 1005546-97.2020.8.26.0590, ao dissertar sobre o prazo prescricional de notas fiscais vencidas nos dias 1º e 3/7/2015, à luz do artigo 206, §5º, inciso I, do Código Civil (prazo de cinco anos), posicionou-se contrária à suspensão do prazo prescricional no caso concreto, sob o  seguinte argumento: "Isto porque, em meio a uma fase de pandemia que gerou caos econômico, a intenção do legislador era de resguardar situações financeira dificultadas pela própria pandemia, o que não se verifica no presente caso, uma vez que a autora se manteve inerte por cinco anos e pretende agora se beneficiar de suspensão iniciada no mês de junho/2020, ou seja, um mês antes de se consumar a prescrição da sua pretensão". Após, citando doutrina, o tribunal afirma o seguinte: "(…) É viável restringir o sentido do artigo 3º da Lei do RJET com o objetivo de estabelecer que a paralisação prevista nesse preceito transitório se destina a proteger apenas os prudentes titulares, os quais só não exigiram a satisfação de seus direitos até final de outubro de 2020 em virtude dos transtornos causados pela pandemia".

Vejamos.

Ao que parece, o dispositivo legal não imputa às partes o ônus de provar o "grau de prudência" do titular do direito (nesse caso, credor). Pelo contrário, ele é taxativo em suspender os prazos prescricionais ou decadenciais de forma geral, independentemente da análise da suposta "prudência" do autor.

O que importa, aqui, é discutir os limites "de correção" que possui o Judiciário. Se a lei não é "boa", isso não quer dizer que o judiciário possa a "reescrever". Existem formas de não aplicação de uma lei (aqui). Fora disso, a lei se torna de aplicação obrigatória. Ônus da democracia. Dizendo de outro modo, não nos parece correto que a doutrina e, consequentemente, o Judiciário, imputem ao dispositivo legal sentido inexistente no seu texto.

Com isso, voltamos à velha indagação: qual é o limite interpretativa da lei? Nesse caso, a própria lei. Não podemos fazer interpretações extensivas, dando existência a coisas que não existem.

Ademais, de que forma será provada a "prudência" do autor? Qual é o critério para comprovar se, efetivamente, a pandemia não impediu o ajuizamento da ação dentro do prazo prescricional? De quem será esse ônus probatório?

Vamos além.

E nos casos em que o Judiciário não exigir do autor esse grau de "prudência"? Como a doutrina resolverá essa situação? Ou seja, duas partes, com ações semelhantes, ajuízam ações na mesma comarca e um juiz aplica o artigo 3º da Lei nº 14.010/2020 e o outro não. Como será solucionada essa situação?

Não é desarrazoado afirmar, assim, que esse tipo de interpretação abre um leque perigoso e que, consequentemente, causa alto grau de discricionariedade, pois o que é "prudente" para um juiz pode não ser para o outro.

Novamente, atentemos sempre para o que as leis dizem e quais os seus limites de aplicação. A norma é sempre o produto da interpretação do texto, diz Müller. Porém, a norma não pode fazer um novo texto.

 


[3] A interessante questão nos foi posta pelo professor Juliano Puchalski Teixeira, da Unisinos-RS.