Opinião

Não existe abuso do direito à não autoincriminação

Autor

  • Tiago Bunning

    é mestre em Ciências Criminais (PUC-RS) especialista em Direito Penal Econômico (IBCCrim e Coimbra) conselheiro seccional da OAB-MS (2022-2024) advogado e professor.

19 de julho de 2021, 15h08

No último dia 13, o depoimento de Emanuele Medrades (diretora técnica da Precisa) na CPI da Covid-19 foi interrompido por determinação do presidente da comissão, senador Omar Aziz.

O presidente alegou ser necessário esclarecer através de embargos de declaração quais os limites do direito de silêncio da depoente arrolada como testemunha [1], mas que figurava como paciente no HC 204.422/DF, cuja medida liminar foi deferida para garantir o direito ao silêncio sobre os fatos que lhe incriminem, impondo o dever de depor e dizer a verdade quanto aos fatos criminosos nos quais figure como testemunha. 

Após a oposição de dois embargos de declaração apresentados, respectivamente, pela defesa de Emanuele Medrades e pela assessoria jurídica da CPI da Covid-19, o ministro Luiz Fux decidiu que: "Compete à CPI fazer cumprir os regramentos legais e regimentais, estabelecendo, para tanto, as balizas necessárias para que investigados, vítimas e testemunhas possam exercer, nos limites próprios, seus direitos fundamentais, inclusive o direito da não autoincriminação".

Em que pese tenha reconhecido que "o primeiro juízo sobre o conteúdo desse direito compete ao seu próprio titular, a quem cabe a avaliação inicial sobre os impactos da produção de determinada informação sobre a sua própria esfera jurídica", o ministro também registrou que "às Comissões de Parlamentares de Inquérito, como autoridades investidas de poderes judiciais, recai o poder-dever de analisar, à luz de cada caso concreto, a ocorrência de alegado abuso do exercício do direito de não-incriminação".

A decisão coloca em risco a dimensão ética do processo penal de viés acusatório e democrático. O direito à não autoincriminação é uma das maiores conquistas alcançada pelo processo penal de Estados democráticos de Direito, nos quais conforme explica Thiago Bottino: "A obtenção da verdade já não é o objetivo mais importante, já que se garante ao indivíduo que se oponha a essa busca por meio da sua recusa em responder às perguntas de seu interrogatório" [2].

A previsão constitucional do direito ao silêncio (artigo 5o, LXIII da CF) como uma das faces do direito à não autoincriminação que possui previsão convencional e não menos importante (artigo 8.2, "g", da CADH) evidenciam a importância dessa garantia que pertence a qualquer depoente sujeito a algum tipo de imputação em uma investigação ou processo criminal. Aliás, o direito de informação (um dos conteúdos da ampla defesa) em seu aspecto material ou substancial exigindo clareza e transparência acerca da condição do depoente (ou seja, suspeito, investigado, acusado, mero informante ou testemunha), que precisa ser informada com antecedência, permitindo que o sujeito possa preparar a sua defesa e, inclusive, se fazer acompanhar de advogado [3].

Ainda assim, nem sempre isso será suficiente, pois um depoente ouvido na condição de testemunha se compelido — sob pena de ser preso por falso testemunho — a responder alguma pergunta que pretenda silenciar estaria sujeito a sacrificar a garantia de não se autoincriminar (por exemplo: "O que você comeu no almoço?"; a pergunta pode parecer inofensiva, mas imagine que a testemunha almoçou uma carne proveniente da caça de um animal silvestre, o que em tese configuraria a prática do artigo 29 da Lei 9.605/1998).

Por isso é imprescindível reconhecer uma "abertura de dimensão substancial de validade" [4] ao direito ao silêncio, que como garantia fundamental pertence a toda e qualquer pessoa cuja arguição possa lhe acarretar alguma carga de imputação penal, cabendo ao depoente e a sua defesa técnica no momento de sua arguição verificar e avaliar a necessidade de permanecer em silêncio. Afinal, no exemplo citado, somente a testemunha tinha conhecimento de que a pergunta aparentemente inofensiva lhe incriminaria.

Na mesma medida, também cabe ao depoente e à sua defesa escolher os limites do exercício do direito ao silêncio, conforme afirmado há muito tempo por Figueiredo Dias ao reconhecer "que o direito ao silêncio pode ser exercido só parcialmente, sem que então seja legítimo retirar quaisquer conclusões ou presunções da falta de resposta a certas perguntas" [5]. Mais uma vez, é o depoente e a sua defesa técnica que decidirão a quem irá responder e quais as indagações serão respondidas, conforme reconhecido em ambas as turmas do STJ [6].

A cisão do depoimento do arguido entre investigado-testemunha, limitando seu direito ao silêncio apenas à primeira posição, sob pena de falso testemunho em razão do famigerado "abuso" do direito à não autoincriminação, é uma medida artificial e autoritária, na prática poderia conduzir a uma delação premiada indesejada ou a uma confissão forçada. Por isso, é preciso admitir que o direito ao silêncio não depende da condição ou do rótulo que se confere ao depoente, seja ele interrogado como acusado-investigado ou realizada a sua oitiva como testemunha, o que também já foi reconhecido em ambas as turmas do STJ [7].

Em conclusão, não existe abuso do direito à não autoincriminação. Mas, antes que os céticos afirmem que se estaria defendendo o silêncio a qualquer pessoa e em todos os casos, o controle ao exercício do direito ao silêncio pode ser realizado, mas somente a posteriori, caso seja comprovado que o depoente, na qualidade de testemunha, calou-se ou prestou declaração inverídica acerca de fato que não lhe incriminaria e tampouco teria qualquer relação com alguma imputação em seu desfavor.

 


[2] BOTTINO, Thiago. O direito ao silêncio na jurisprudência do STF. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 46.

[3] GIACOMOLLI, Nereu José. Prisões, liberdade e cautelares pessoais: nova formatação a partir de 2020. São Paulo, SP: Marcial Pons, 2020, p. 151.

[4] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 16ª Ed. Editora Saraiva, São Paulo, 2019, p. 447.

[5] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. Primeiro Volume. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora Limitada, 1984, p. 449.

[6] HC 628.224/MG, Rel. ministro Felix Fischer, Quinta Turma, j. 07/12/2020 e REsp 1.825.622/SP, Rel. ministro Rogério Schietti Cruz, Dje 28/10/2020.

[7] AgRg no RHC 100.332/PR, Rel. ministro Felix Fischer, Quinta Turma, j. 30/05/2019 e HC 603.445/ PB, Rel. ministro Antônio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, j. 29/04/2021.

Autores

  • é mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS (bolsista Capes), especialista em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, advogado e professor.

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