Opinião

O compromisso da advocacia criminal: uma resposta ao ministro Sebastião Reis

Autores

  • Luiz Fernando de Vicente Stoinski

    é advogado criminalista mestrando em filosofia (Unioeste) diretor de prerrogativas profissionais dos advogados na Associação Paranaense dos Advogados Criminalistas (Apacrimi) e associado ao IBCCRIM.

  • Khalil Vieira Proença Aquim

    é advogado criminalista especialista em Direito Penal e em Processo Penal (UniBF) professor de Direito Penal (Faculdade Inspirar) e de Tribunal do Júri (ESA-PR) membro do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

19 de julho de 2021, 13h36

No início do último mês, pulverizou-se em redes sociais um trecho da sessão de julgamento da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça ocorrida no último primeiro de junho. O trecho ocorreu logo após o julgamento do RHC 126.272/MG, em que a corte reconheceu e aplicou o princípio da insignificância num caso penal de furto de dois filés de frango, cujo valor da res furtiva era de R$ 4. Diante disso, o ministro Sebastião Reis, que não compunha o quórum, pediu a palavra para um necessário desabafo:

"Eu participei de uma live na segunda-feira, essas lives que a gente tem participado, e eu fiz um levantamento sobre os processos que têm sido distribuídos às Turmas criminais desse Tribunal. Em 2017 foram 84.256; em 2018 foram 100.760; em 2019 foram 117.159; em 2020 foram 124.276 processos; esse ano, até o dia 31 de abril foram 43.999, ou seja, se triplicarmos isso, né, ou seja, o primeiro quadrimestre, nós vamos chegar a 131.997 processos, ou seja, isso é inviável. Não só, ou seja, é humanamente impossível julgar essa quantidade de processos. Então eu gostaria de aproveitar esse caso específico, que como o doutor Flávio colocou, como o doutor Domingos colocou e como o ministro Rogério Schietti colocou, é um absurdo nós estarmos tendo que julgar um habeas corpus onde se discute insignificância de um furto de quatro reais, ou seja, de um bem no valor de quatro reais. Eu peço, aqui em público, ou seja, a compreensão – e não é só do Ministério Público – porque esse erro acontece, esse volume de processo, ele existe hoje não só em razão do Ministério Público, mas ele existe em razão da advocacia que insiste em teses superadas; do Ministério Público que insiste em teses superadas, todos nós estamos julgando, aqui, agravos regimentais. Eu mesmo já separei um agravo regimental aqui, onde nós vamos discutir a questão da progressão do pacote anticrime, que as duas Turmas do Tribunal já firmaram entendimento. Supremo, a Segunda Turma já firmou entendimento e o Ministério Público Federal insiste em recorrer com agravo regimental das nossas decisões monocráticas. A justiça, ou seja, onde já se viu a quantidade de questões que nós temos que julgar aqui porque os tribunais se recusam a aplicar os nossos entendimentos. E ao mesmo tempo nós temos um sistema político que fica discutindo, ou seja, hoje nós vimos uma notícia de que foi aprovado, né, numa primeira fase, um decreto que aumenta o tempo de prisão de quarenta para cinquenta anos. Eu não vejo uma discussão sobre ressocialização, eu não vejo uma discussão sobre prevenção de crimes, eu só discussão sobre criar novos crimes, aumentar pena, dificultar progressão, ou seja, nós estamos vivendo num mundo completamente irreal, completamente fora da realidade. Nós temos tendo aqui, ou seja, o número de processo está aumentando, cada, ou seja, eu falei de 2017 para 2020 foi de oitenta e quatro mil para cento e vinte e quatro mil, ou seja, não tem lógica isso. É dizer que essa política que nós adotamos ultimamente diminui a criminalidade, é brincadeira. Dizer que o comportamento de nós todos, ou seja, esses atores, chamados atores do processo, está diminuindo a criminalidade, é brincadeira. Nós temos um caminho completamente equivocado, completamente errado. E esse caso que o ministro Schietti acabou de trazer, para mim, é a prova viva disso, ou seja, onde já se viu nós termos, o Superior Tribunal de Justiça perder tempo em julgar um habeas corpus para trancar uma ação por insignificância onde o valor do bem furtado foi quatro reais. Quatro reais! Quanto que se gastou já com esse processo? Eu acho, eu não consigo compreender onde nós vamos chegar. No mundo ideal, talvez 'ah, nós não podemos deixar uma ação dessa passar incólume'. Perfeito, mas num Tribunal onde nós recebemos, nós estamos recebendo cada um está recebendo quarenta, quarenta e cinco habeas corpus por dia. Por dia! Nós vamos receber esse ano, cada um de nós deve receber treze mil processos e nós vamos ficar discutindo um furto de quatro reais? Sinto muito, é só, eu pedi vênia até, eu peço vênia para esse desabafo, mas eu acho que o caso que o ministro Schietti trouxe é perfeito para demonstrar isso tudo, ou seja, há um erro do Ministério Público numa denúncia absurda; há um erro do Tribunal de Justiça de Minas em manter esse processo vivo; só não há um erro do advogado, que na verdade ele está fazendo o papel dele, mas tantos outros advogados tem errado em diversos casos (e nós sabemos disso!). Então é só isso, senhor presidente, o senhor me desculpe, mas é que realmente eu acho que a coisa está chegando num ponto em que eu acho que alguma coisa tem de ser feita para que essa realidade mude, porque do jeito que está não é possível continuar mais" [1].

A fala do ministro foi mais do que necessária ao expor de modo objetivo e claro o reiterado desrespeito às teses firmadas pelas cortes superiores, e o quanto tal desrespeito pelas instituições de primeiro e de segundo graus impacta no volume e, consequentemente, na qualidade do trabalho dos ministros do STJ e do STF.

Não obstante isso, num ponto é necessário divergir. Em dois momentos ao longo de sua fala, o ministro Sebastião Reis critica, além dos representantes da magistratura e do Ministério Público, também os advogados, afirmando: 1) insistirem em teses superadas; e 2) errarem no seu papel.

O artigo 127 da Constituição Federal estabelece o Ministério Público como uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, com incumbência de defesa da ordem jurídica, do regime democrático de direito e dos interesses sociais e individuais coletivos. A mesma redação se extrai do artigo 1º da Lei Orgânica do Ministério Público.

Logo, assentando-se que o MP possui compromisso com a ordem jurídica, tal implica tanto na defesa da Constituição até, por corolário, no acatamento aos posicionamentos jurisprudenciais pacificados pelos tribunais superiores, por garantia de segurança jurídica e aplicabilidade adequada e pacífica das normas vigentes.

Por sua vez, a advocacia tem assento constitucional no artigo 133 da Constituição Federal, que estabelece que o advogado possui função essencial à administração da justiça. Ali, bem como no Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, se confere a imunidade necessária no exercício da advocacia, nos limites da lei. Assim, em que pese esteja evidentemente o advogado vinculado à ordem jurídica na consecução de suas funções, seu compromisso é com a administração da Justiça, notadamente em favor de seu constituinte.

Nesse sentido, excluindo a atuação do advogado na assistência da acusação, no processo penal o seu compromisso é com a defesa. Repise-se que a própria Constituição de 1988, de raízes liberais, estabelece como garantia individual a ampla defesa, com todos os meios e recursos que lhes são inerentes (artigo 5º, inciso LV), assim como também previsto em tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil [2].

Não há no texto constitucional (ou até mesmo em outras normas) um direito à ampla acusação. O processo penal, vale ressaltar, trata dos limites ao poder punitivo estatal, razão pela qual o limite é e deve ser maior para o órgão que exerce a acusação criminal.

Com isso, quer-se dizer que o Ministério Público deve, como asseverado pelo ministro Sebastião Reis, efetivamente respeitar os limites impostos não apenas pela ordem jurídica vigente, mas também pelos entendimentos consolidados pelo STJ e pelo STF dentro de suas competências constitucionalmente estabelecidas. Aos advogados, na defesa de seus constituintes, podem eles arguir todas as teses que, sendo legais e constitucionais, entenderem aplicáveis ao caso penal, ainda que se tratem de teses alegadamente superadas.

Eduardo Couture, nunca é demais lembrar, deixou expresso no quarto mandamento do advogado: "Teu dever é lutar pelo Direito, mas no dia em que encontrares o conflito o direito e a justiça, luta pela justiça". E a própria jurisprudência mostra em exemplos bastante emblemáticos a necessidade de reiteração de teses pela advocacia para o alcance efetivo da Justiça.

O (não) cabimento de Habeas Corpus substitutivo de recurso próprio é um exemplo. Não são raros os casos em que o colegiado não conhece do writ, mas "concede a ordem de ofício". A saída revela o exercício hermenêutico do Judiciário para resolver uma injustiça, a partir de uma ação aparentemente inadequada do advogado.

Outro exemplo que se poderia citar é do posicionamento até poucos meses atrás pacífico dos tribunais superiores sobre ser o artigo 226 do Código de Processo Penal mera recomendação. Por muitos anos a advocacia e as Defensorias Públicas tiveram de insistir em uma tese não acatada para que o Judiciário passasse, paulatinamente, a compreender os riscos do desrespeito da forma prevista pela lei para a realização de um ato tão importante no processo penal, reconhecendo a nulidade do ato realizado em desrespeito às normas legais. Tal mudança emergiu, por sinal, a partir de um Habeas Corpus "de tese superada".

Também as discussões sobre prisão após condenação em segunda instância e as mudanças de entendimento do Supremo Tribunal Federal ocorreram tanto em 2009 quanto em 2016, justamente a partir do julgamento de Habeas Corpus, sendo apenas após isso o STF instado a se manifestar em ações declaratórias de constitucionalidade para pacificar e estabilizar o entendimento.

No entanto, o exemplo mais emblemático do ponto em que divergimos do ministro Sebastião Reis é justamente o tema a partir do qual sua fala emerge: o reconhecimento e a aplicação do princípio da insignificância.

Não havendo previsão normativa expressa, o princípio da insignificância foi construído a partir da doutrina e da jurisprudência. Natural, portanto, que no início os tribunais o rechaçassem. O primeiro caso em que o STF aplicou o princípio a crime patrimonial foi apenas no ano de 2004, há menos de duas décadas, e novamente a partir de um Habeas Corpus [3]. Não fossem pelas reiteradas teses rechaçadas que advogados e advogadas insistem em levar aos tribunais superiores, o Judiciário continuaria a punir os crimes de bagatela, e o entendimento majoritário atual provavelmente seria pela aplicação de uma sanção penal a quem furtou dois steaks no valor de R$ 4.

Advogar, bem disse Felipe Gurjão, é a arte de insistir [4]. Ainda que essa insistência dure décadas para o reconhecimento pelos tribunais, ainda que os tribunais oscilem e regressem a posicionamentos pretéritos. Pois é essa insistência que fomentará o aprimoramento das instituições e da aplicação da lei.

 


[1] Degravação livre. O vídeo com a fala do ministro Sebastião Reis pode ser visto em <https://www.youtube.com/watch?v=22CtouWGUHM>. Acesso em 20 jun. 2021

[2] Convenção Americana de Direitos Humanos, artigo 8°, e Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, artigo 14.

[3] HC 84412, Rel. ministro Celso De Mello, Segunda Turma, j. 19/10/2004.

[4] "Presidentes: um olhar especial sobre a jovem advocacia" – org. Luiz Gabriel Batista Neves. Ed. ESA. Salvador, Bahia. 2015. Pág. 56.

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    é advogado criminalista, mestrando em filosofia (Unioeste), diretor de prerrogativas profissionais dos advogados na Associação Paranaense dos Advogados Criminalistas (Apacrimi) e associado ao IBCCRIM.

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    é advogado criminalista, professor de direito penal na Faculdade Inspirar, especialista em Direito Penal e Processo Penal, membro do Conselho Estadual da Associação Paranaense dos Advogados Criminalistas (Apacrimi) e ex-presidente da Comissão de Advogados Iniciantes da OAB/PR.

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