Direito civil atual

Debates iniciais sobre distinção para precedentes em formação

Autor

  • Silvano José Gomes Flumignan

    é doutor mestre e bacharel em Direito pela USP professor adjunto da UPE e da Asces/Unita professor permanente do mestrado profissional do Cers ex-pesquisador visitante na Universidade de Ottawa ex-assessor de ministro do STJ procurador do estado de Pernambuco coordenador do Centro de Estudos Jurídicos da PGE-PE e advogado.

19 de julho de 2021, 8h00

O Código de Processo Civil sistematizou os precedentes normativos no Direito brasileiro. Dentro dessa concepção de aplicação de regime jurídico, o legislador previu a importante técnica da distinção (distinguishing) ligada aos precedentes normativos. A distinção é uma técnica que busca comparar os pressupostos de fato e de direito preponderantes para a tese do precedente em relação a um determinado caso concreto. Se os pressupostos forem os mesmos ou, pelo menos, existir grande similitude fática e jurídica, o precedente é adequado àquele caso. Se, por outro lado, os casos não forem similares, haverá inadequação do precedente. A doutrina [1] costuma dedicar seu foco a precedentes já formados diante da previsão do artigo 489, §1º, V e VI, do CPC [2], resta ainda a discussão para precedentes em formação. A distinção para precedentes em formação tem gerado grandes celeumas práticas e vários aspectos doutrinários ainda não foram bem delineados. A partir do artigo 1.037, §9º, do CPC, o legislador disciplinou o procedimento da distinção em relação a precedentes em formação. Pela literalidade das regras previstas, o procedimento seria aplicável aos recursos especiais e extraordinários repetitivos [3]. Da análise dos dispositivos, pelo menos cinco indagações precisam ser respondidas pela doutrina e pela jurisprudência:

ConJur
1) Qual a finalidade do procedimento de distinção para precedentes normativos em formação?

2) O procedimento é aplicável apenas aos recursos especiais e extraordinários repetitivos?

3) Qual a natureza jurídica do ato que determina a suspensão?

4) O ato que determina a suspensão é recorrível?

5) Qual o procedimento previsto pelo legislador?

A resposta à primeira indagação é obtida a partir da leitura conjunta do inciso II com o parágrafo 9º, do artigo 1.037, do CPC. O objetivo da distinção para o precedente em formação é afastar o efeito processual de suspensão do procedimento até a decisão do repetitivo. Como se vê, o incidente somente faz sentido se na decisão de afetação do tema para a formação de precedente existir a determinação de suspensão em algum grau. Caso não seja determinada a suspensão, não há que se falar em distinção e aquele que, eventualmente, requerer em juízo a aplicação do procedimento previsto a partir do artigo 1.037, §9º, do CPC carecerá de interesse jurídico no requerimento. A segunda indagação proposta foi enfrentada no REsp 1846109/SP em relação ao incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR). O acórdão determinou a aplicação do incidente de distinção ao IRDR mesmo sem previsão legislativa expressa [4]. De fato, o CPC criou um microssistema de precedentes e alguns tipos de atos decisórios, em regra, geram repercussões normativas em relação a outros processos. Entre essas hipóteses, destacam-se o incidente de assunção de competência (IAC), o IRDR e os recursos especiais e extraordinários repetitivos. Para todas essas hipóteses, é possível a aplicação do procedimento de distinção previsto nos §§9º-13, do artigo 1.037, ainda que seja por analogia. Aliás, além do referido REsp 1846109/SP, o enunciado 142 da II Jornada de Direito Processual Civil do CJF também prevê a aplicação [5]. A terceira indagação gera a necessidade de um importante enfrentamento que levará, necessariamente, ao debate do quarto questionamento. O ato que determina a suspensão do processo em curso na pendência da decisão da afetação tem conteúdo decisório de acordo com o disposto no artigo 1.037, §8º, do CPC:

"Artigo 1.037, § 8º, do CPC  As partes deverão ser intimadas da decisão de suspensão de seu processo, a ser proferida pelo respectivo juiz ou relator quando informado da decisão a que se refere o inciso II do caput" (grifo do autor).

No entanto, não é esse o entendimento majoritário do STJ. De acordo com a corte superior, o ato que determina a suspensão não teria conteúdo decisório, mesmo o legislador tendo previsão expressa em sentido contrário [6]. O entendimento do STJ é contrário ao Enunciado 81 da I Jornada de Direito Processual Civil do STJ, que prevê o recurso de agravo interno contra a decisão que determina o retorno dos autos ao tribunal de origem quando do ato que determina a suspensão pela afetação de tema para julgamento no formato dos repetitivos [7]. Em verdade, nenhuma das posições, STJ e Enunciado 81 da I Jornada, encontra correspondência na legislação processual civil. Pela previsão textual do CPC, em resposta à quinta indagação, o ato decisório que determina a suspensão é irrecorrível de imediato. Logo, o resultado das decisões do STJ que não conhecem do recurso de agravo interno encontra ressonância na legislação, mas não pelo fundamento lançado nos acórdãos. O ato de suspensão tem conteúdo decisório, mas não é recorrível de imediato. Pela previsão dos §§9º a 13, do artigo 1.037, do CPC, é preciso que a parte, por petição, demonstre a distinção. Essa postulação não tem a natureza de recurso, mas tem o condão de iniciar um incidente. As demais partes integrantes do processo deverão ser intimadas para apresentar manifestação no prazo de cinco dias sobre o requerimento de distinção. Depois da manifestação ou do decurso do prazo, o magistrado competente decidirá sobre a distinção. Dessa última decisão, cabe recurso. O recurso variará a depender do momento em que o processo foi suspenso. Se a suspensão ocorreu no primeiro grau, caberá agravo de instrumento. Se a suspensão ocorreu no âmbito de Tribunal de Justiça, Tribunal Regional Federal, Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal, caberá agravo interno. Assim, não significa que a decisão em relação à suspensão não tem conteúdo decisório. Significa, simplesmente, que ela não é recorrível de imediato. Com essa verificação, em caso de eventual recurso direto contra a decisão de suspensão, poderão ser tomadas duas saídas: não conhecimento do recurso pelo fato de a decisão ser irrecorrível imediatamente ou, pelo princípio da primazia do julgamento do mérito e da fungibilidade das manifestações processuais, converter a peça inaugural do recurso em requerimento de distinção, adotando o procedimento previsto a partir do artigo 1.037, §9º, do CPC.  Ante o exposto, o presente trabalho não tem o condão de esgotar o tema, mas de demonstrar que é preciso um estudo mais aprofundado sobre a distinção para precedentes normativos em formação.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFam).

 


[1] PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. 3ª ed.. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 248 e ss.; NUNES, Dierle; HORTA, André Frederico. Aplicação de precedentes e distinguishing no CPC/2015: Uma breve introdução. In: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de; MACÊDO, Lucas Buril de (Coord.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 310 e ss.; BARREIROS, Lorena Miranda Santos. Estruturação de um sistema de precedentes no Brasil e concretização da igualdade: desafios no contexto de uma sociedade multicultural. In: : DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de; MACÊDO, Lucas Buril de (Coord.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 206 e ss..

[2] "Artigo 489 do CPC – São elementos essenciais da sentença: (…)
§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (…).
V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento".

[3] "artigo 1.037 do CPC -Selecionados os recursos, o relator, no tribunal superior, constatando a presença do pressuposto do caput do artigo 1.036, proferirá decisão de afetação, na qual: (…) II – determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional; (…)
§ 9º Demonstrando distinção entre a questão a ser decidida no processo e aquela a ser julgada no recurso especial ou extraordinário afetado, a parte poderá requerer o prosseguimento do seu processo.
§10. O requerimento a que se refere o § 9º será dirigido:
I – ao juiz, se o processo sobrestado estiver em primeiro grau;
II – ao relator, se o processo sobrestado estiver no tribunal de origem;
III – ao relator do acórdão recorrido, se for sobrestado recurso especial ou recurso extraordinário no tribunal de origem;
IV – ao relator, no tribunal superior, de recurso especial ou de recurso extraordinário cujo processamento houver sido sobrestado.
§ 11. A outra parte deverá ser ouvida sobre o requerimento a que se refere o § 9º, no prazo de 5 (cinco) dias.
§ 12. Reconhecida a distinção no caso:
I – dos incisos I, II e IV do § 10, o próprio juiz ou relator dará prosseguimento ao processo;
II – do inciso III do § 10, o relator comunicará a decisão ao presidente ou ao vice-presidente que houver determinado o sobrestamento, para que o recurso especial ou o recurso extraordinário seja encaminhado ao respectivo tribunal superior, na forma do artigo 1.030, parágrafo único.

§ 13. Da decisão que resolver o requerimento a que se refere o § 9º caberá:
I – agravo de instrumento, se o processo estiver em primeiro grau;
II – agravo interno, se a decisão for de relator".

[4] "(…) 4- O procedimento de alegação de distinção (distinguishing) entre a questão debatida no processo e a questão submetida ao julgamento sob o rito dos recursos repetitivos, previsto no artigo 1.037, §§9º a 13, do novo CPC, aplica-se também ao incidente de resolução de demandas repetitivas – IRDR. 5- Embora situados em espaços topologicamente distintos e de ter havido previsão específica do procedimento de distinção em IRDR no PLC 8.046/2010, posteriormente retirada no Senado Federal, os recursos especiais e extraordinários repetitivos e o IRDR compõem, na forma do artigo 928, I e II, do novo CPC, um microssistema de julgamento de questões repetitivas, devendo o intérprete promover, sempre que possível, a integração entre os dois mecanismos que pertencem ao mesmo sistema de formação de precedentes vinculantes. 6- Os vetores interpretativos que permitirão colmatar as lacunas existentes em cada um desses mecanismos e promover a integração dessas técnicas no microssistema são a inexistência de vedação expressa no texto do novo CPC que inviabilize a integração entre os instrumentos e a inexistência de ofensa a um elemento essencial do respectivo instituto. 7- Na hipótese, não há diferença ontológica e nem tampouco justificativa teórica para tratamento assimétrico entre a alegação de distinção formulada em virtude de afetação para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos e em razão de instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas, pois ambos os requerimentos são formulados após a ordem de suspensão emanada pelo Tribunal, tem por finalidade a retirada da ordem de suspensão de processo que verse sobre questão distinta daquela submetida ao julgamento padronizado e pretendem equalizar a tensão entre os princípios da isonomia e da segurança jurídica, de um lado, e dos princípios da celeridade, economia processual e razoável duração do processo, de outro lado. 8- Considerando que a decisão interlocutória que resolve o pedido de distinção em relação a matéria submetida ao rito dos recursos repetitivos é impugnável imediatamente por agravo de instrumento (artigo 1.037, §13, I, do novo CPC), é igualmente cabível o referido recurso contra a decisão interlocutória que resolve o pedido de distinção em relação a matéria objeto de IRDR". (REsp 1846109/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/12/2019, DJe 13/12/2019)

[5] Enunciado 142 da II Jornada de Direito Processual Civil do CJF. Determinada a suspensão decorrente da admissão do IRDR (artigo 982, I), a alegação de distinção entre a questão jurídica versada em uma demanda em curso e aquela a ser julgada no incidente será veiculada por meio do requerimento previsto no artigo 1.037, §10. Sobre o tema, vide PEIXOTO, Ravi. Comentários ao Enunciado 142. In: KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino; PEIXOTO, Marco Aurélio Ventura; FLUMIGNAN, Silvano José Gomes. (coords.) Enunciados CJF: organizados por assunto, anotados e comentados. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 362 e ss..

[6] "PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA PELO STF. DETERMINAÇÃO DE RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE CARÁTER DECISÓRIO. IRRECORRIBILIDADE DA DECISÃO. (…) 3. Não cabe agravo interno contra decisão que se limita a remeter os autos à Corte local para observância da tese jurídica fixada pelo STF com repercussão geral reconhecida, tendo em vista que se trata de ato desprovido de conteúdo decisório e que não gera prejuízo às partes. 4. Agravo interno não conhecido". (AgInt nos EDcl no REsp 1490177/RS, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 29/04/2020, DJe 05/05/2020).
"PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO INTERPOSTO CONTRA DECISÃO QUE DETERMINOU A DEVOLUÇÃO DOS AUTOS AO TRIBUNAL DE ORIGEM. ADEQUAÇÃO DO ENTENDIMENTO A QUO À ORIENTAÇÃO FIRMADA EM JULGAMENTO DE RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. PROVIDÊNCIA QUE NÃO ENSEJA PREJUÍZO A NENHUMA DAS PARTES. NECESSIDADE DE SE OBSERVAR OS OBJETIVOS DA LEI 11.672/2008.(…) 2. Ademais, na forma da jurisprudência desta Corte, "não é cabível a interposição de agravo interno contra decisão que determina o sobrestamento de recurso especial, até que seja proferida decisão pelo Supremo Tribunal Federal nos autos de recurso extraordinário com repercussão geral, com a determinação de retorno dos autos à origem para que sejam analisados nos moldes dos arts. 1.040 e 1.041 do Código de Processo Civil de 2015" (STJ, AgInt no AREsp 1.254.323/SP, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe de 21/09/2018), salvo se demonstrado, efetivamente, erro ou equívoco, nos termos do artigo 1.037, §§ 9º e 10, do CPC/2015, o que, entretanto, não é o caso dos autos. 3. Agravo Interno não provido". (AgInt no REsp 1911163/RN, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/03/2021, DJe 05/04/2021)

[7] Enunciado 81 do STJ. A devolução dos autos pelo Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal ao tribunal de origem depende de decisão fundamentada, contra a qual cabe agravo na forma do artigo 1.037, § 13, II, do CPC. Sobre o tema, vide DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Comentário ao enunciado 81. In: KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino; PEIXOTO, Marco Aurélio Ventura; FLUMIGNAN, Silvano José Gomes. (coords.) Enunciados CJF: organizados por assunto, anotados e comentados. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 414 e ss..

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