Origem do caos

"Lava jato" tirou legitimidade da eleição de 2018, afirma advogada de Lula

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18 de julho de 2021, 7h51

Spacca
A "lava jato" ajudou a enfraquecer as instituições brasileiras, tentou acabar com o direito de defesa no Brasil e suprimiu ilegalmente os direitos de Lula concorrer à Presidência da República em 2018 e dos cidadãos votarem no petista. Dessa maneira, a operação colocou um caráter de ilegitimidade ao pleito, vencido por Jair Bolsonaro, e a tudo o que ocorreu depois dele. É a opinião da advogada Valeska Teixeira Martins, que defende o líder do PT.

"É importante lembrarmos que o ex-presidente Lula foi encarcerado, foi processado por um juiz parcial e teve o direito a concorrer às eleições reconhecido por comitê da Organização das Nações Unidas, além do direito de todos os brasileiros a votar nele. Nós estamos falando de um direito maior, não só o direito individual dele. Ele foi retirado indevidamente das eleições de 2018. Isso já lança um caráter de ilegitimidade às eleições de 2018 e a tudo o que nós estamos vivendo", afirma Valeska, que é sócia do escritório Teixeira Zanin Martins Advogados.

Além disso, a "lava jato" tentou acabar com o direito de defesa no país por meio da figura do advogado colaborador, diz Valeska. "Só teriam lugar os advogados que aceitassem colaborar e coonestar com as práticas da 'lava jato'. O tempo também mostrou que é necessário exercer o direito de defesa e que a advocacia não pode ser um apêndice do Ministério Público", aponta, ressaltando a importância da luta pelas prerrogativas da classe.

Valeska e seu marido, Cristiano Zanin Martins, comandam a defesa de Lula na "lava jato". Nenhum dos dois é criminalista, o que gerou questionamentos de petistas. Contudo, a advogada destaca que os casos do ex-presidente não eram meramente penais, e deveriam ser enfrentados de forma multidisciplinar. As recentes anulações das condenações do político pelo Supremo Tribunal Federal mostraram que a abordagem foi correta, diz.

Em entrevista à ConJur, Valeska Teixeira Martins também comentou o machismo no sistema de Justiça e explicou como o lawfare não é uma tática de direita ou de esquerda.

Leia a entrevista:

ConJur — Como funciona a divisão de tarefas entre a senhora e o seu marido, Cristiano Zanin Martins? Nos casos do Lula, quem cuida de que partes?
Valeska Teixeira Martins —
Nós somos sócios. Entre esposa e marido, tem que ter uma grande sinergia para dar certo, para que o trabalho flua de forma harmoniosa, e isso nós sempre tivemos. Estamos casados há 17 anos. Nós trabalhamos juntos em outros casos, antes de nos casarmos. Depois começamos a trabalhar juntos já no nosso escritório e sempre foi uma parceria igual.

Eu sempre me dediquei mais ao mérito. Venho do mercado de capitais, e o Cristiano é um processualista nato. Desde estagiário, ele é um grande estrategista processual. Ele entende de todas as áreas do Direito, é impressionante, mas é um grande estrategista processual. E nós nos completamos porque dividimos as tarefas. Temos essa visão multidisciplinar de cada caso que nós assumimos, independentemente de um caso criminal ou cível, nós sempre trazemos uma equipe multidisciplinar. E nós dois gostamos muito de estudar as minúcias de cada caso, nos dedicar aos fatos, à investigação dos fatos. É isso que nos move, a adrenalina de conseguir elucidar cada caso, por mais complexo que seja.

ConJur — Nem a senhora nem o Cristiano Zanin são criminalistas. Como foi pegar um caso penal dessa magnitude?
Valeska —
O caso não começa com o criminal. Veja, nós sempre falamos, quando nós explicamos a origem do termo lawfare, que esse caso começa com matérias inverídicas nas principais revistas e alguns jornais impressos, na grande mídia, onde narravam histórias, suspeitas infundadas, histórias inverídicas. A partir de lá, começamos a fazer um filtro e processávamos quem continuava com histórias absolutamente mirabolantes contra o nosso cliente [Lula]. Essas matérias migram depois para processos criminais.

O Sergio Moro inclusive usa uma reportagem do jornal O Globo [de 2010, que dizia que Lula seria dono do tríplex no Guarujá] como prova. Então começa dessa maneira, e há uma solução natural para que nós assumíssemos o caso. Nós conhecíamos todos os fatos, conhecíamos todos os casos. Também foi interessante a confiança que o cliente [Lula] depositou no nosso trabalho. Ele mesmo fala, pela técnica, pela pugnacidade e pela multidisciplinaridade, porque nós sempre tivemos essa visão diferenciada. É isso que traz essa revolução para o processo da "lava jato". Não nos permitiram realizar perícias, e nós vamos em busca de provas. Era isso que o processo demandava, prova de inocência, em todas as áreas. No processo do tríplex nós descobrimos a cessão fiduciária de créditos, fomos atrás das debêntures que lastreavam o empreendimento. Nós fizemos toda essa explicação nos autos. Com relação aos outros processos, nós fizemos perícias com diversos especialistas, fomos à Organização das Nações Unidas. Lula foi o primeiro cidadão brasileiro a alegar violações grosseiras aos Direitos Humanos junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que é uma corte mundial de violações do pacto civil e político dos direitos humanos da ONU. Essa multidisciplinaridade e essa pugnacidade sempre nos pautaram em todos os casos. Isso era necessário para que eu, o Cristiano e todos os colegas do escritório conseguíssemos resolver esse puzzle que tinha lá.

E havia também a necessidade de tradução desse caso, do juridiquês, porque ele despertava tanta paixão e tanto ódio. Nós precisávamos explicar todo o caso para a mídia e traduzir todos esses termos do juridiquês.

ConJur — Setores do PT argumentavam que Lula teria mais chances se defendidos por um criminalista "puro sangue". O que a senhora achou disso?
Valeska —
O problema é que muitas pessoas quiseram opinar sobre uma situação que sequer conheciam. Achavam que, pelo fato de o assunto estar em uma vara criminal, seria resolvido por um criminalista. É um raciocínio muito simplista e ultrapassado. Para nós sempre foi claro que o caso do ex-presidente Lula não era um assunto meramente criminal e que deferia ser enfrentado de forma multidisciplinar e com o suporte de outras áreas do conhecimento. Nós sempre tivemos muita certeza e muita convicção sobre a nossa técnica aplicada aos casos. Casos diferentes demandam técnicas diferentes. Desde 2015, nós evoluímos e aprendemos. É uma técnica, uma estratégia, por isso que nós nos debruçamos sobre esse tema e o estudamos profundamente. Mas a confiança que o nosso cliente [Lula] sempre depositou no nosso trabalho fala por si. É autoexplicativa. Ele sempre nos deu toda liberdade. E isso resultou em um trabalho altamente satisfatório e de certa forma inédito, em que a verdade, da qual nós falávamos desde 2015 e certas pessoas duvidavam, começa a aparecer. O tempo mostrou que estávamos corretos. Fomos nós que vencemos e hoje muita gente está tentando reproduzir o nosso trabalho. Sinceramente acho que essa forma de atuação, multidisciplinar, ativa, investigativa, é a forma moderna de advogar para enfrentar casos complexos e decisivos.

ConJur — A senhora vem falando de lawfare há alguns anos. Em sua opinião, esse conceito foi bem apreendido pelos operadores do Direito e pela população em geral?
Valeska —
O lawfare é o uso estratégico do Direito para deslegitimar alguém. Ele pode se dar no âmbito jurídico e no âmbito político. Não é uma técnica aplicada pela direita contra a esquerda, neoliberalismo contra socialismo, social-democracia. Tem senador republicano [dos EUA] que também é vítima da mesma estratégia, da mesma má utilização do Direito. É importante lembrar que o lawfare não é só uma perseguição política. É algo maior, é uma operação de guerra, com estratégia de guerra, dimensões de guerra. Nós temos todos os elementos que provam que é uma estratégia de guerra. Ela é engendrada sempre em departamentos de Estado ou empresas. É importante lembrar que lawfare não é uma perseguição política, mas uma estratégia muito mais sofisticada e complexa para aniquilar o inimigo.

Todos nós da área do Direito temos que repudiar o lawfare. Porque não adianta pensar que você não é um político e não irá sofrer. Não. A porta de entrada desse tipo de metodologia sempre se dá por empresas. Então estamos falando não só de políticos, mas de funcionários, administradores. Qualquer pessoa pode ser vítima dessa metodologia, um inimigo maior. Então é importante entender, levar a sério para que nós consigamos neutralizar o risco e não sofrer mais esse tipo de metodologia.

O conceito de lawfare não é exclusivo para o caso Lula. O caso foi a inspiração para que eu e Cristiano fossemos fazer uma pesquisa aprofundada sobre o assunto, inclusive com um tempo de imersão nos Estados Unidos, para compreender o fenômeno e desenvolver técnicas de neutralização. O livro conceitual que lançamos no Brasil em 2019 [Lawfare: uma introdução, escrito por Valeska Teixeira Martins, Cristiano Zanin Martins e Rafael Valim] teve o interesse de três outras renomadas editoras ao redor do mundo. Está disponível em Portugal e também em língua espanhola e língua inglesa. Isso significa que há um interesse mundial em relação ao lawfare. O Cristiano esteve pessoalmente com o papa Francisco no ano passado e falou com ele sobre lawfare após o santo padre ter falado sobre o fenômeno em uma homilia. As pessoas estão percebendo que foi criada uma forma de enfrentar adversários, inimigos e concorrentes através do uso estratégico da lei. E que há técnicas e táticas específicas que estão sendo utilizadas, exportadas pelos Estados Unidos. Mostramos esse cenário no livro, que é um verdadeiro alerta sobre o fenômeno. Há referência sobre o lawfare até mesmo em acórdãos recentes do STF. O importante é que desenvolvemos uma forma de neutralizar o lawfare e aplicamos isso nos nossos trabalhos.

ConJur — Como a senhora enxergou as reações internacionais ao caso Lula? Isso teve influência no Brasil, nos julgamentos?
Valeska —
As influências internacionais sempre foram muito positivas. Em 2016 nós fomos à ONU relatar grosseiras violações aos direitos humanos. Fizemos esse trabalho juntamente com Geoffrey Robertson, que é um dos maiores advogados do mundo em matéria de direitos humanos. Foi o primeiro comunicado feito por um cidadão brasileiro ao Comitê de Direitos Humanos da ONU. A partir desse comunicado, houve muito interesse internacional para conhecer o caso do ex-presidente Lula. Eu e Cristiano tivemos convites de juristas e entidades de diversos países para discutirmos o caso. Por exemplo, com o renomado jurista italiano Luigi Ferrajoli, tivemos três reuniões presenciais e participamos com ele de uma audiência no Parlamento de Roma. Após um trabalho intenso, conseguimos obter duas liminares no Comitê de Direitos Humanos da ONU em 2018, algo que mostra a densidade do trabalho que fizemos no plano internacional.

Um dos principais fatos que ensejaram nosso comunicado foi o fato de que a legislação brasileira não diferencia o juiz que produz a investigação e o juiz que julga o mérito. Só essa falha legislativa já é uma grosseira violação aos direitos humanos, porque é impossível o juiz ser imparcial quando conduz a investigação e, sem júri, decide o mérito. Eu acho que nós somos o último país na face da Terra que mantém ainda esse tipo de falha legislativa. É importante nós corrigirmos isso, para que as pessoas não sofram mais com distorções processuais, que levam, ao final, a condenações indevidas, ilegais. Quando ouve essa distorção legislativa, qualquer professor, advogado ao redor do mundo fica chocado. Todos os fatos, documentos e as provas dos autos que nós expusemos ao redor do mundo sempre chocaram muito, porque eram fatos, documentos, não eram versões.

Entendo que todo esse trabalho foi importante também para que, no Brasil, houvesse a compreensão de que estávamos diante grosseiras violações ao devido processo legal e a garantias fundamentais. E também para que houvesse maior compreensão sobre o lawfare que estava sendo praticado pela Lava Jato com a ajuda informal de agências estrangeiras, especialmente dos Estados Unidos.

ConJur — A senhora ressalta que os norte-americanos destinaram R$ 2,5 bilhões para a constituição de uma fundação que teria a ingerência de membros do Ministério Público que, direta ou indiretamente, atuaram na aplicação do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) no Brasil. Por que a "lava jato" quis ajudar o governo dos EUA?
Valeska —
Isso é um fato. houve colaboração informal, isso ficou provado, não só em todas as provas que nós havíamos trazido aos autos, mas depois da nossa análise dos arquivos da operação spoofing, que resultaram em 14 petições perante o Supremo Tribunal Federal. Veja, o FCPA utiliza metodologia de universalização de competência. Essa universalização de competência nunca é fundamentada, nunca é técnica. Eles utilizam negociações, usam o non prosecution agreement [acordo de não persecução], o deferred prosecution agreement [acordo de persecução diferida] e o plea bargain. Todos esses são seguidos de grande pressão junto aos executivos de empresas, de gerentes, contra seus próprios familiares até que a pessoa, obviamente, confessa ou delata algo que ela fez ou até que ela não fez, porque é preciso confirmar a hipótese acusatória. Você não pode relatar o que você sabe que aconteceu, você tem que confirmar a hipótese acusatória. Isso é muito importante porque vai contra o combate à corrupção. A corrupção está aumentando exatamente por falha nessa metodologia de combate à corrupção oriunda do FCPA.

O FCPA traz muitas vantagens. O Department of Justice [Departamento de Justiça dos EUA] fechou um acordo com a Petrobras no valor de US$ 680 milhões, que são R$ 2,5 bilhões, e eles destinaram isso de forma irregular, já foi decidido, para uma fundação que seria gerida pelos procuradores da "lava jato", destinada a combater a corrupção ou os males diretos e indiretos da corrupção. Isso é uma distorção absurda, é algo que não está no nosso ordenamento jurídico. E não é o único caso, existem outros casos na "lava jato". Essa informalidade nas relações internacionais, no compartilhamento de provas, realmente é algo que deve ser entendido por todos, e não só no Brasil. As pessoas ficam sem acesso ao processo, à cadeia de custódia de custódia, se houve ou não houve, sem acesso ao que foi e não foi compartilhado dentro desses acordos internacionais. Todos esses casos têm um avanço tecnológico, uma multidisciplinaridade. A advocacia brasileira e a advocacia internacional precisam começar a lançar mão de todos os meios investigativos e tecnológicos disponíveis hoje para que consigam elucidar e diminuir esse tipo de compartilhamento, que às vezes se dá com interesses pessoais, não tanto interesses de Estado.

ConJur — Já houve algum movimento de países ou da ONU de contestar o FCPA? Porque a norma confere aos EUA praticamente uma jurisdição global.
Valeska —
Quando há investigação, a primeira atitude é conhecer a jurisdição, seja ela via utilização de dólar ou e-mail, encontro nos EUA e tal. O que está acontecendo? Falta expertise judicial sobre os critérios de atração de competência para os EUA, não só ao redor do mundo, mas também nos EUA. A Justiça é negociada. Falta escrutínio judicial sobre os critérios, a começar pela competência. E depois pode-se entrar nas hipóteses acusatórias, como estão sendo utilizadas, mas não se encontram precedentes. Afinal, todo mundo negocia com a Justiça. O Judiciário fica sem possibilidade de revisão, e isso é gravíssimo.

ConJur — A reputação da imprensa, da Polícia Federal, do Ministério Público e da Justiça, na sua avaliação, é melhor hoje que antes da "lava jato" ou não?
Valeska —
Isso é o que nós sempre alegamos, não só nacionalmente, também internacionalmente. A confiança da população no sistema de Justiça é a base da democracia. Sem essa confiança, não tem democracia. A ONU, um pouquinho antes de 2000, começou a perceber a desconfiança da população mundial com relação aos seus Judiciários. E ela criou as Regras de Bangalore, que são regras de comportamento de membros do Judiciário, para passar a ideia de imparcialidade. A ONU cria regras para que todos os magistrados obedeçam as regras de comportamento social, na vida não só pessoal como profissional, para sempre passar a ideia de imparcialidade e de confiança para a população. Em 2019, surge uma nova resolução, que é sobre comportamento digital, mensagens em redes sociais. Eles estão preocupados com esse avanço da desconfiança da população mundial com relação ao Judiciário.

E é exatamente o que nós vemos aqui no Brasil. A operação “lava jato”, o ex-ministro Sergio Moro, membros do Judiciário em conluio com os procuradores da "lava jato", acaba atingindo pessoas do Judiciário que são sérias — magistrados sérios, desembargadores, ministros. Acabam descredibilizando o sistema de Justiça. E isso não atinge só os magistrados, mas também o coração da democracia. Nós precisamos voltar a construir essa confiança, porque a nossa jovem democracia não pode ficar mais combalida do que já está.

ConJur — Na "lava jato" e depois em outras operações, os agentes da persecução penal passaram a atacar advogados para atingir seus clientes. Essa tática funcionou? E qual o impacto dela para a democracia?
Valeska —
Sim. O ataque à advocacia é histórico em estados totalitários, em estados autoritários. E nós somos um mau exemplo de ataque à advocacia. Nós tivemos nossos telefones interceptados ilegalmente, nós tivemos uma série de ações, inclusive falas, notas à imprensa repudiando recursos, tanto no âmbito nacional quanto internacional, às vezes com táticas não tão ortodoxas de condução funcional. O que descobrimos mais recentemente, após o acesso aos arquivos oficiais da operação spoofing, é que esses ataques eram sistematicamente planejados e diversos outros advogados também foram alvo. Ataques escabrosos foram realizados. A "lava jato" tentou acabar com o direito de defesa no país por meio da figura do advogado colaborador. Só teriam lugar os advogados que aceitassem colaborar e coonestar com as práticas da "lava jato". O tempo também mostrou que é necessário exercer o direito de defesa e que a advocacia não pode ser um apêndice do Ministério Público.

Esses episódios nos últimos cinco anos demonstram como nós, advogados, temos que nos unir em defesa das nossas prerrogativas. O advogado é a última trincheira na defesa dos direitos do cidadão. Então precisamos lutar contra decisões de um Estado absolutamente autoritário contra a advocacia. É isso que nós estamos vivendo. O medo que a advocacia sente hoje é real e não pode persistir, senão deixaremos nossos clientes indefesos. Realmente não é fácil quando se é ameaçado constantemente, mas nós temos que ser mais fortes e ressurgir como a última fronteira desse totalitarismo que nós estamos enfrentando. E não só no Brasil, mas em outras partes do mundo também.

ConJur — Qual foi o impacto das mensagens da "vaza jato" nos julgamentos da suspeição de Sergio Moro e da incompetência da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba para julgar Lula?
Valeska —
O Habeas Corpus da suspeição foi impetrado em novembro de 2018. E ele se baseia somente em fatos anteriores àquela data. Começa com a fase investigativa, a condução da investigação, aqueles vazamentos ilegais de conversas e assim por diante até que nós terminamos com a aceitação do cargo de ministro da Justiça do atual presidente Bolsonaro, que foi eleito com o auxílio da “lava jato”, com o auxílio do juiz Sergio Moro. Aquilo, para nós, foi a maior prova de parcialidade que o ex-juiz Sergio Moro poderia dar à sociedade. Então aquele HC se baseia somente nesses fatos.

As mensagens da "vaza jato" não foram levadas aos autos. Elas são, obviamente, chocantes. Revelam uma operação clandestina, de conluio entre magistrado e procuradores, de atos ilegais, de informalidade no trato das provas, no trato do processo. Perseguições. Por exemplo, o Dallagnol tem uma planilha de Excel em que ele está planejando o próximo ano. Ele coloca ali "procurar mais empresas para fazer acordo de leniência". É bem esclarecedor o arquivo, mas as provas daquele HC são contundentes. Elas realmente levaram a esse julgamento [da suspeição de Moro para julgar Lula], que foi correto. Faz justiça ao processo e às injustiças que nós sofremos. Todos nós, nosso cliente, colaboradores, advogados do ex-presidente Lula e pessoas que participaram do processo, chegamos a um processo justo.

ConJur — Como a senhora pensa que será a recepção desse material da "vaza jato" no Supremo? Ainda há certa resistência a ele, certo? E o que pode ser feito com esse material?
Valeska —
Nós ainda estamos com esses processos em aberto. Estamos pensando em como utilizaremos esse material. Nós tivemos acesso a esse material através do Supremo Tribunal Federal, para corroborar as teses diretas e indiretas defendidas pelo ex-presidente Lula e por sua defesa. Nós sempre nos guiamos por essa orientação, e não sairemos dela. Obviamente estamos estudando como essas mensagens podem ser utilizadas. Não só as mensagens como outras provas que também foram descobertas no âmbito da "lava jato". Estão nesse processo de análise, de estudo.

ConJur — Lula ficou preso 580 dias. Depois o Supremo deixou de permitir a execução da pena após condenação em segunda instância. E nesse ano anulou as condenações, declarando a incompetência da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba e a suspeição do ex-juiz Sergio Moro. Lula pode ser indenizado pelo tempo que ficou preso?
Valeska —
É irreparável. Não só os 580 dias, mas todo o processo da “lava jato”, desde a violação da presunção de inocência, que é a principal metodologia através de vazamentos constantes de provas, e hoje nós sabemos que não há nada. Todo esse processo, todo o tempo pessoal dele, o tempo que ele gastava na política. Até hoje seus recursos estão bloqueados. Ele passou 580 dias na prisão. Não pôde sair para ver o enterro do seu irmão, mal pôde sair para ver o enterro do seu neto. São danos e cicatrizes irreparáveis. Nesse momento, ele não pensa em pedir reparação ao Estado, até porque o Estado brasileiro precisa de forças para combater essa grande pandemia. Mas outros processos estão sendo estudados. Como já disse, estamos analisando todas as provas que temos e como utilizaremos isso na defesa, com a final comprovação de que todas as suspeitas levantadas contra ele sempre foram falsas.

ConJur — A Justiça brasileira sofreu uma onda de punitivismo desde o começo da década passada, começando com o julgamento do mensalão e desembocando na “lava jato”. Essa onda acabou?
Valeska —
Nós temos que combater essa grande violação ao julgamento justo, imparcial, que poderia ocorrer pela implementação do juiz das garantias. Isso é importante, pois o sistema atual leva a um excesso de punitivismo. Outro fator é o transplante ilegal de mecanismos de outros países. As pessoas sempre olham o processo penal internacional apontando que em outros países há execução em primeira ou segunda instância, mas sem destacar as garantias processuais que esses outros sistemas têm.

É preciso analisar o processo como um todo. Se o processo começa com respeito às garantias individuais, respeito à defesa, investigando e conseguindo comprovar, denunciando com justa causa, se terá, obviamente, um processo mais curto. Se o processo já começa deficiente, falho tanto no âmbito nacional quanto internacional de garantias, não se pode ter uma execução acelerada, tanto em primeira quanto em segunda instância. É por isso que prevaleceu o entendimento da presunção de inocência, que não pode haver prisão após segunda instância no nosso sistema.

Mas a corrupção é, obviamente, algo que preocupa a todos. É algo que deve ser combatido. Mas o combate à corrupção não pode ser mal utilizado. Essa precipitação por parte do Judiciário em condenar sem um processo justo acaba levando a nulidades processuais insanáveis. E aí, sim, leva a uma sensação de impunidade. Essa sensação de impunidade está levando ao atropelo das garantias fundamentais. Então é importante nós voltarmos ao nosso processo, darmos as garantias fundamentais, o processo justo ao cidadão, desde a fase investigativa. E aí nós temos que nos preocupar, sim, com a punição, que é algo que é necessário, mas não dessa forma transplantada, fora de contexto, ilegal, que está se tornando o nosso processo.

ConJur — Qual foi o impacto da "lava jato" para a democracia brasileira?
Valeska —
Foi enorme. É importante lembrarmos que o ex-presidente Lula foi encarcerado, foi processado por um juiz parcial e teve o direito a concorrer às eleições reconhecido por comitê da ONU, além do direito de todos os brasileiros a votar nele. Nós estamos falando de um direito maior, não só o direito individual dele. Ele foi retirado indevidamente das eleições de 2018. Isso já lança um caráter de ilegitimidade às eleições de 2018 e a tudo o que nós estamos vivendo. A "lava jato" contribuiu para enfraquecer as instituições, sem dúvida alguma. Em algum momento passado a "lava jato" entendeu que era maior que o Judiciário, que era maior que o Ministério Público, que era maior que o Congresso, que o Executivo. Ela contribuiu para a erosão das instituições. É importante que a gente volte e relembre a importância das instituições, a independência dos Poderes, que, afinal de contas, é a base de uma democracia forte.

ConJur — O número de mulheres que a advocacia no Brasil é praticamente equivalente ao de homens. Mas ainda há poucas mulheres nos grandes casos, como na “lava jato”. O sistema de Justiça é machista? Como é sua experiência?
Valeska —
Ainda temos muito a evoluir. Se formos olhar, por exemplo, a composição do Judiciário, são poucas mulheres. O nosso Judiciário também tem que representar a sociedade. Nós devemos, inclusive, esse perfil ao comitê de Direitos Humanos da ONU, porque não há representação da sociedade. Com relação às mulheres, é uma parcela mínima. Basta olhar a composição de todos os tribunais, apesar de haver muitas advogadas mulheres. Penso que no Brasil nós sentimos mais essa questão do preconceito, especialmente com essa onda conservadora que vem nos abatendo. Eu não sentia tanto quanto eu sinto hoje. É importante que todas as mulheres entendam isso, que reconheçam que existe esse retrocesso também entre as mulheres, de todos os níveis, de todas as profissões. Hoje há uma dificuldade maior para as mulheres conseguirem desenvolver suas atividades profissionais.

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