Embargos Culturais

René David e 'Os grandes sistemas do direito contemporâneo'

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

18 de julho de 2021, 8h00

O Direito Comparado se propõe também a resolver problemas práticos, socorrendo profissionais e negócios. O conhecimento de outros direitos pode calibrar opções de investimentos e interesses de trabalho. A multiplicação das relações reforça a importância do Direito Comparado. A inserção das empresas em novos mercados exige que o empresário conheça os modelos normativos com os quais terá que se relacionar. Estudo prévio de ordenamentos jurídicos locais tem importância muito grande, que ultrapassa ao próprio conhecimento da língua e de rudimentos das culturas locais.

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À margem dos direitos locais surgem também práticas comerciais e empresariais legitimadas por Direito Negocial que transcende aos direitos estatais. Revive-se uma lex mercatoria, exemplo de Direito Transnacional das Transações, como sintoma de ordem jurídica global que se desenvolve independentemente dos ordenamentos estatais. Esses são assuntos que fixam o pano de fundo do Direito Comparado, disciplina (ou método, segundo alguns) que tem em René David um dos mais importantes expoentes.

René David (1906-1990) desponta como a mais recorrente referência no assunto, ao longo do século 20. Nasceu em Paris, faleceu em Aix-em-Provence. Lecionou em Grenoble e depois em Paris. Ao longo da Segunda Guerra Mundial foi prisioneiro dos alemães e lutou na resistência francesa. É o prestigiadíssimo autor de "Os grandes sistemas do direito contemporâneo" e de "O direito inglês", livros que comentarei em duas intervenções nestes Embargos Culturais.

Comecemos com "Os grandes sistemas do direito contemporâneo". Contamos em português com uma competentíssima tradução de Hermínio A. Carvalho, em publicação da Martins Fontes. O livro se divide em quatro partes. René David concebeu metodologicamente grupos de famílias jurídicas, que dividiu em famílias de common law, de origem romano-germânica, bem como famílias jurídicas centradas em concepções religiosas, a exemplo do Direito muçulmano, do Direito da Índia e dos Direitos do extremo-oriente (China e Japão); discutiu também uma família que denominou de Direitos socialistas. Esse Direito já não mais subsiste.

No fim do livro há um anexo interessante de informação bibliográfica, com indicações de guias, revistas, obras de introdução, enciclopédias, coletâneas, centros, bibliotecas e cursos. De fato, são informações hoje de função histórica, de reminiscências, dado que a edição original seja da década de 1960. Há, inclusive, uma longa parte sobre Direitos socialistas, com enfoque nos Direitos da Rússia e de outros países que viveram essa experiência. É uma parte substancialmente histórica.

René David foi um importante sistematizador do common law. Na síntese de René David o common law origina-se das decisões dos juízes ingleses da alta idade média, desenvolvendo-se sistematicamente a partir do século 17. Também é conhecido por mostrar-se como um Direito não escrito. Sua origem judicial frequentemente o opõe ao Direito da tradição escrita e estatutária que informa os modelos do continente europeu.

O common law nasceu na Inglaterra e desenvolveu-se em outros lugares marcados pela presença inglesa, nomeadamente nos Estados Unidos (embora no estado da Luisiana conviva com a tradição codificada francesa), no Canadá (em que pese conviver com a linhagem francesa que triunfou no Quebec), na Austrália, na Nova Zelândia, na Índia e em alguns modelos africanos, como decorrência da ocupação imperialista do século 19.

A expressão common law designa, originariamente, um Direito comum inglês, a contrário de costumes e tradições locais. Juízes ligados ao rei distribuíam justiça pelo país, com estrito respeito ao precedente e com alguma discricionariedade. A presença dos juízes representantes do rei junto às comunidades era mecanismo de exercício do poder real, em detrimento de autoridades feudais que proliferam ao longo da ilha. O common law consiste no mais antigo Direito nacional conhecido na Europa.

René David tratou também do sistema romano-germânico, com foco em seu vínculo com o Direito romano. Esse modelo acompanhou a história de Roma e distinguiu-se ao longo das várias formatações políticas pelas quais passou a chamada cidade eterna. Alcançou a idade média e no ocidente ganhou prestígio nas universidades, tornando-se um Direito marcadamente culto. Associa-se aos direitos locais e informa um Direito de comerciantes, a lex mercatoria.

No oriente foi de certa forma codificado por Justiniano, que no século VI d.C. teria determinado a recompilação dos textos-base que compõem a tradição do Direito romano. Ressurgiu no romantismo, fascinou alemães e franceses, estruturou as codificações modernas, associou-se ao raciocínio positivista e persistiu rejuvenescido em vários locais do mundo, da França ao Brasil, do Japão à Argentina.

René David estimulou o estudo do Direito muçulmano. Tratou das bases imutáveis do Direito islâmico, e seu fundo teológico. O sistema normativo islâmico acompanha o muçulmano independentemente da topografia do poder secular. Não se trata de Direito de feição política, limitado a um grupo que vive sob mesma autoridade civil. Porque se pulveriza em vários países, dispersos por Oriente Médio, norte da África e Ásia, o Direito islâmico propicia pluralismos jurídicos. Pode variar, embora a Sharia seja seu ponto nuclear comum.

O Direito islâmico radica na cultura de povo que habitava a península oeste da Ásia Meridional. A partir do século 7 essa região presenciou o surgimento do islamismo. A Arábia pré-islâmica ainda não era unificada, possuía religião politeísta, tendo a Caaba (em Meca) como templo sagrado. Os habitantes da região dedicavam-se ao comércio externo de especiarias. Havia relações comerciais internas entre os beduínos do deserto e os habitantes dos centros urbanos, como Meca e Iatreb. A unificação política deu-se simultaneamente à unificação religiosa, empreendida sob a liderança do profeta Maomé. Concebeu-se religião sincrética, fatalista e monoteísta, consubstanciada no Alcorão. Após a unificação, conheceu-se rápido processo de expansão.

O Direito islâmico decorre da religião pregada pelo profeta Maomé. Centra-se no conceito de Sharia, que prescreve ao crente o que pode e o que não pode ser feito. Complementa-se pelo Figh, que aponta caminhos a serem tomados, a partir das prescrições da Sharia. Essa última, literalmente, indica o caminho para onde a água corre, ou a senda para ser seguida. Trata-se do Direito islâmico em sua forma canônica, marcado pela totalidade dos ensinamentos do profeta Maomé. É uma doutrina de obrigações. Considerações jurídicas relativas a direitos individuais assumem posto secundário. É comando supremo a percepção de avaliação religiosa em relação aos negócios da vida humana.

A Sharia prevê circunstâncias e atitudes obrigatórias ou proibidas. Entre os dois extremos há atitudes recomendáveis de serem implementadas, aconselháveis para serem evitadas e indiferentes à Sharia. Exemplificando, as cinco preces diárias são mandatórias, o vinho é proibido, as preces adicionais são recomendadas, alguns peixes não são recomendados e viagens de avião são indiferentes para a orientação jurídico-religiosa clássica.

René David ainda discorreu sobre as linhas gerais do Direito chinês. O Direito chinês tem fundo originariamente religioso, baseia-se nos ensinamentos de Confúcio. Centra-se em alguns rituais, chamados de li, posteriormente acrescidos de regulamentos mais específicos, impostos pelo imperador e por seus mandarins, especialmente em matéria penal, chamados de fa. Os dois conceitos originários, li e fa, formam o núcleo do Direito chinês. O li indica a necessidade de comportamento apropriado em relação à posição social da pessoa. O nobre que se guiava segundo Confúcio, e que se via como um homem superior, dizia-se com o comportamento pautado pelo princípio do li, código que não se aplicava à plebe. Essa última era guiada pelo fa, que instituía recompensas e punições.

Em relação aos Direitos que denominou de orientais, René David também tratou do Direito japonês, especialmente no sentido de que foi influenciado pelo Direito chinês. De presença religiosa mais ostensivamente budista, o Japão, no entanto, implementou cisões entre li e fa, especialmente porque sob controle de imperador e dos senhores feudais, que formavam a importante classe do shogunato. O Japão resistiu a influências ocidentais, de modo sistemático, até a segunda metade do século 19, quando em 1853 forçou-se a abertura das fronteiras.

Após a Segunda Guerra Mundial é marcante no Japão a influência dos Direitos ocidentais. René David profetizou que o progresso das ideias democráticas e a intensificação das relações com o estrangeiro provocariam entre os japoneses a ideia de reino de Direito como condição necessária para o alcance de um reino de justiça.

"Os grandes sistemas do direito contemporâneo" é um exuberante livro de cultura jurídica, que nos remete a um tempo em que advogados, juízes, professores de Direito, procuradores, defensores, promotores, éramos muito mais rigorosos para com nossas opções de leitura.

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