Opinião

Justiça penal da humilhação: o emprego de algemas

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17 de julho de 2021, 15h14

As algemas, historicamente, são símbolo de castigo e de humilhação dos infratores da lei. Foram criadas e empregadas, primariamente, com esse intuito, e só secundariamente para garantir a ordem e a segurança públicas.

O emprego de algemas ainda não conta com um marco normativo, não obstante a Lei de Execução Penal dizer que "o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal" (artigo 199). A LEP é anterior à Constituição Federal, e portanto, atualmente, a matéria deve ser regulada por lei, dado que a competência para legislar sobre direitos individuais cabe exclusivamente ao Poder Legislativo (CF, artigo 68, §1º, II). E o emprego de algemas constitui claramente uma limitação constitucional ao direito de liberdade do cidadão, afetando frontalmente garantias constitucionais.

Embora existam vários projetos no Congresso Nacional, até agora nada foi aprovado. Isso porque os nossos legisladores só agem diante de casuísmos e de casos rumorosos explorados pela mídia. Não há uma política legislativa para tratar com racionalidade científica temas que, cronicamente, afetam a nossa sociedade.

Inexiste no Código de Processo Penal um artigo específico sobre o uso de algemas, mas extrai-se do artigo 284, quando diz que "não será permitido o uso de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso", o lastro para fundamentar o emprego de algemas nas hipóteses de resistência ou de fuga. E a doutrina ainda se socorre do artigo 292: "Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas".

O Código de Processo Penal Militar autoriza o emprego de algemas nos mesmos moldes do processo penal comum: "O emprego da força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto, subscrito pelo executor e pelas testemunhas" (artigo 234). Todavia, não autoriza o uso delas quanto se tratar de autoridades, cujo rol vem taxativamente previsto no artigo 242: ministros de Estado, governadores ou interventores de estados ou territórios, o governador do Distrito Federal, seus respectivos secretários e chefes de polícia, membros do Congresso Nacional, dos Conselhos da União e das Assembleias Legislativas dos estados, magistrados, oficiais das Forças Armadas, das polícias e dos Corpos de Bombeiros etc.

Esse marco normativo do processo penal militar fere claramente o princípio constitucional da isonomia ao dispensar privilégios a determinados indivíduos por conta exclusivamente do exercício de alguma função pública ou por pertencer a determinada classe social, ou ainda por nível econômico. O que vai aferir (e justificar) a necessidade ou não do emprego de algemas são as "circunstâncias fáticas", seja para impedir a fuga ou conter a violência da pessoa que está sendo presa, e não uma pretensa "intangibilidade de autoridade".

Como já decidiu a nossa Suprema Corte (HC nº 89.429-1/RO), "não obstante a omissão legislativa, a utilização de algemas não pode ser arbitrária, uma vez que a forma juridicamente válida do seu uso pode ser inferida a partir da interpretação dos princípios jurídicos vigentes, especialmente o princípio da proporcionalidade". E mais, como consta na ementa: "O uso legítimo de algemas não é arbitrário, sendo de natureza excepcional, a ser adotado nos casos e com as finalidades de impedir, prevenir ou dificultar a fuga ou reação indevida do preso, desde que haja fundada suspeita ou justificado receio de que tanto venha a ocorrer, e para evitar agressão do preso contra os próprios policiais, contra terceiros ou contra si mesmo. O emprego dessa medida tem como balizamento jurídico necessário os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade".

Em 2008, o STF editou a Súmula Vinculante nº 11 com o seguinte teor: "Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado". 

O objetivo da súmula não foi obstar o uso de algemas, mas evitar o abuso, impedindo que sejam empregadas de forma humilhante, espalhafatosa ou teatral. Por ela, as algemas só podem ser usadas em três hipóteses excepcionais: resistência à ordem de prisão legal, fundado receio de fuga do preso e agressão por parte deste ou de terceiros.

Diante da nebulosidade e da marcada subjetividade da locução sumular "fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia", a pessoa presa deve ser algemada por uma conduta concreta que indique periculosidade ou apenas pela natureza do crime cometido (assalto a mão armada, sequestro, homicídio etc.)? A periculosidade deve ser apreciada no caso concreto e não apenas pelo crime praticado. Se fôssemos nos guiar por fórmulas prévias, todos os presos deveriam ser algemados, pois o status libertatis é inerente a todo ser humano e ninguém entrega passivamente a sua liberdade sem alimentar o desejo, implícito ou explícito, de fugir.

O uso de algemas é medida visceralmente constrangedora (física e psicologicamente), mesmo que nas situações legítimas, por isso sua aplicação deve ser excepcionalíssima, assim como a prisão também é medida excepcional na vida de uma pessoa (tanto que cercada de inúmeras garantias). Quando o ato de algemar (instrumento da força) não tem uma justificação racional (fim específico de garantir a segurança, de preservar a integridade física dos condutores ou do preso), a medida, além de vexatória, é odiosa e absolutamente reprovável, pura demonstração de prepotência ou exibicionismo, violando a norma constitucional que diz que ninguém será submetido a tortura ou a tratamento degradante, humilhante. Além disso, caracteriza-se como crime de abuso de autoridade (Lei nº 13.869, de 05.09.2019, artigo 13, II: "Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a: II- submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei"). Em hipótese alguma as algemas podem ser usadas como forma de punição ou de humilhação, mas apenas para conter momentaneamente aquele que está sendo custodiado.

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    é promotor de Justiça, mestre em Direito pela Universidade de Coimbra, especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ, membro do Conselho Editorial da Revista Jurídica do Ministério Público do Amazonas.

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