Observatório constitucional

Julgamento do RE nº 714.139 indica ampla revisão da seletividade no ICMS

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17 de julho de 2021, 8h00

Os preparativos para a despedida do ministro Marco Aurélio do Supremo Tribunal Federal incluíram o julgamento de, ao menos, um importante caso em matéria tributária em que o ministro provavelmente não ficará isolado — o RE nº 714.139, Tema 745 da sistemática da repercussão geral. A questão em debate é aparentemente simples, mas poderá redefinir os limites da política fiscal praticada pelos estados em matéria de ICMS e afetar significativamente suas finanças.

O que se discute no recurso é a validade da previsão contida na legislação de ICMS de Santa Catarina que fixa para operações com energia elétrica e comunicação alíquota de 25%, superior à aplicável à generalidade das operações internas naquele estado, que é de 17%. Pretende o contribuinte que se lhe reconheça o direito de recolher o imposto mediante a aplicação da alíquota de 17%, ao fundamento de que esse é o percentual utilizado para tributar operações com outras mercadorias menos essenciais do que a energia elétrica. Os fundamentos jurídicos da controvérsia estão no princípio da isonomia tributária e na seletividade, técnica prevista no artigo 155, §2º, inciso III, da Constituição Federal, que determina que o ICMS "poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços".

O feito foi submetido a julgamento virtual em 5/2/2021, com voto do relator ministro Marco Aurélio, pelo provimento do recurso. Entendeu o ministro que, embora a seletividade, no caso do ICMS, não seja obrigatória, uma vez adotada pela lei estadual, só se pode admitir que a carga tributária seja estabelecida na razão inversa da essencialidade da mercadoria. Ou seja, poderia o legislador ter utilizado uma única alíquota para todas as mercadorias tributadas. Mas se optou por percentuais diferentes para operações com mercadorias diversas, o tributo aplicável à energia elétrica deve obrigatoriamente ser menor do que o incidente nas operações com mercadorias menos essenciais.

O raciocínio é simples e claro. Para o relator não importa sequer quem é o contribuinte ou consumidor final. "Adotada a seletividade, o critério não pode ser outro senão a essencialidade", diz ele em seu voto. Mesmo a previsão de alíquota reduzida (12%) para "operações com energia elétrica de consumo domiciliar, até os primeiros 150 Kw" e para "operações com energia elétrica destinada a produtor rural e cooperativas rurais redistribuidoras, na parte que não exceder a 500 Kw (…) mensais por produtor rural", não seria suficiente para afastar a inconstitucionalidade apontada na legislação estadual (Lei nº 10.297/1996).

Para fins de repercussão geral, o ministro Marco Aurélio propôs a seguinte tese:

"Adotada, pelo legislador estadual, a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços".

Na sessão de julgamento virtual, divergiu parcialmente o ministro Alexandre de Moraes, para dar parcial provimento ao recurso do contribuinte e afastar a alíquota de 25% incidente sobre os serviços de comunicação, aplicando-se a mesma alíquota do ICMS adotada pelo estado de Santa Catarina para as mercadorias e serviços em geral (artigo 19, I, da Lei nº 10.297/1996). Seu voto enfrenta a questão da seletividade de maneira um pouco mais ampla, ao consignar que "ente tributante pode aplicar alíquotas diferenciadas em razão da capacidade contributiva do consumidor, do volume de energia consumido e/ou da destinação do bem". No entanto, "(a) estipulação de alíquota majorada para os serviços de telecomunicação, sem adequada justificativa, ofende o princípio da seletividade do ICMS".

A sessão de julgamento virtual foi interrompida por pedido de vista do ministro Dias Toffoli, devolvido em 17/2/2021, acompanhando o relator tanto no mérito quanto na tese proposta pelo decano, Marco Aurélio. Propôs, contudo, que se modulasse a eficácia da decisão "estipulando que ela produza efeitos a partir do início do próximo exercício financeiro, ressalvando as ações ajuizadas até a véspera da publicação da ata do julgamento do mérito". Também acompanhou o relator a ministra Cármen Lúcia. Pediu, então, vista dos autos o ministro Gilmar Mendes.

Segundo a maioria que até aqui vai se formando, para os produtos essenciais, como é o caso da energia elétrica, a alíquota de ICMS não pode ser superior à alíquota interna geral do imposto, independentemente da condição econômica do consumidor. Isso já está claro. O que talvez ainda não tenha ficado evidente é a importância desse julgamento para a política fiscal dos estados e para a jurisprudência do STF.

As implicações do julgamento vão muito além do estado de Santa Catarina e não se limitam apenas às operações com energia elétrica e comunicação, tampouco ao ICMS. O mesmo raciocínio parece aplicável facilmente às operações com combustíveis, que, aliás, submetem-se à mesma alíquota ora em debate na Lei estadual nº 10.297/1996. Abre-se espaço ainda para discussão judicial da graduação de carga fiscal em um sem-número de operações com outras tantas mercadorias cujo grau de essencialidade poderá vir a ser questionado em juízo.

A mesma tese é cabível também para questionar os agravamentos e as reduções previstas na legislação do IPI, imposto para o qual a seletividade é obrigatória (artigo 153, §3º, I, da Constituição Federal). Um exemplo disso está no recente julgamento do RE 606.314, relator ministro Roberto Barroso, em que se discutia a alíquota de IPI incidente sobre garrafões, garrafas e tampas plásticas.

Nesse quadro, há pelo menos três bons motivos para se chamar atenção para o julgamento em curso, tanto do ponto de vista da jurisdição constitucional tributária quanto das finanças públicas estaduais.

O primeiro é a própria fundamentação adotada e a leitura, até certo ponto, restritiva que alguns votos pretendem aplicar no tocante à fixação de alíquotas em matéria de ICMS. A prevalecer o voto do relator ministro Marco Aurélio, a graduação da alíquota do imposto deverá levar em conta apenas o coeficiente de essencialidade das mercadorias oneradas, vedadas considerações de outros elementos relativos à condição econômica do sujeito passivo. As características do contribuinte, se pessoa física ou jurídica, consumidor de pequeno ou grande porte, urbano ou rural, seriam elementos estranhos à graduação da carga fiscal do ICMS sobre energia e comunicação.

Em certa medida, essa forma de enxergar o uso de alíquotas seletivas em matéria de ICMS parece mais restritiva do que a usualmente adotada pelo Plenário do STF, que, em julgamentos recentes, admitiu o uso de alíquotas progressivas, com base no princípio da igualdade tributária, mesmo à falta de previsão constitucional expressa. Foi o que se decidiu e.g. no caso do ITCMD (RE 562.045, relator ministro Ricardo Lewandowski, relatora para acórdão: ministra Cármen Lúcia, julgado em 6/2/2013, Tema 21 da repercussão geral [1]) e, antes, no caso da contribuição de iluminação pública (RE 573.675, relator ministro Ricardo Lewandowski, julgado em 25/3/2009), apenas para citar dois exemplos.

É certo que, no caso do ICMS, temos previsão constitucional específica. Resta saber se a previsão de que se graduem as alíquotas em função da essencialidade estaria a afastar qualquer outro critério de graduação de alíquotas, ainda que para redução da carga fiscal devida, como, aliás, previa a legislação de Santa Catarina. É lícito ao estados aplicarem e.g. tratamento diferenciado aos consumidores de baixa renda? A seletividade em função da essencialidade no ICMS obriga que se aplique alíquota reduzida para todos os consumidores?

O segundo motivo está na maneira como um julgamento aparentemente simples — simpático, até — pode ampliar os próprios limites da atuação do STF em matéria de controle (de constitucionalidade) da política fiscal. A prevalecer o entendimento de que energia, comunicação e combustíveis não podem suportar carga fiscal em patamar superior ao das operações em geral, abre-se um considerável espaço para se submeter à Corte Constitucional um sem-número de demandas envolvendo essencialidade de mercadorias e produtos e alíquotas de ICMS e IPI. O fundamento serve para questionar tanto as cargas fiscais agravadas quanto as reduzidas.

Amplia-se, dessa forma, o espaço de controle de constitucionalidade material das normas tributárias extrafiscais, isto é, aquelas em que se verifica o emprego dos tributos para funções outras diversas da arrecadação. Nos poucos julgados em que a temática galgou a corte, os debates ficaram quase sempre circunscritos a aspectos de inconstitucionalidade formal, sem avançar no conteúdo das leis — mormente as de benefícios fiscais [2] — nem considerar a aplicação do controle de proporcionalidade à matéria. Na jurisprudência do STF, a extrafiscalidade é não raro tomada como um espaço de maior discricionariedade para a política fiscal a ser entabulada pelo legislador.

Doravante, é possível que o tribunal se torne mais permeável a debates dessa ordem, seja em matéria de ICMS, seja mais amplamente, em quaisquer hipóteses em que se discutam incentivos ou agravamentos tributários de natureza extrafiscal [3]. A ampliação da esfera do controle judicial caminha no sentido inverso ao espaço deixado à discricionariedade legislativa na elaboração da política fiscal estadual.

O terceiro motivo é o significativo impacto na arrecadação dos estados-membros que a redução da alíquota, nas hipóteses em debate, certamente causará. Não nos referimos ao natural efeito que todo caso tributário em que sai vencedor o contribuinte tende a gerar para a arrecadação pública, notadamente aqueles em que se postula a não incidência de tributo ou a redução de carga fiscal. É obvio que as finanças públicas serão, em maior ou menor medida, afetadas por decisões assim. E isso, de ordinário, não deve ser razão para modulação de efeitos, tampouco para julgamento de mérito.

No caso em tela, no entanto, a adoção de alíquotas majoradas para mercadorias essenciais, com demanda pouco elástica, como e.g. combustíveis, energia e comunicação, é medida de política fiscal adotada de forma ampla pelos mais diversos estados-membros. Vale dizer, o imposto incidente sobre energia e combustíveis é curiosamente essencial para as finanças estaduais tanto quanto a mercadoria tributada é para o bem-estar dos consumidores.

A propósito, é preciso lembrar que o ICMS não é exatamente um único imposto. São vários, enfeixados numa mesma competência, com regime jurídico similar, mais por razões de ordem política e histórica do que exclusivamente lógicas. A arrecadação estadual não é dependente das vendas de perfumes ou biscoitos recheados, e.g., como é das operações com energia elétrica ou combustíveis. E essa é uma realidade fática que não se pode ignorar.

Todas essas razões nos levam a afirmar que o caso submetido ao STF não é nada simples. Reduzir, por decisão judicial, o ICMS incidente sobre energia e comunicação certamente representará um alento momentâneo para uma significativa parcela dos contribuintes não alcançados por benefícios concedidos à população de baixa renda. Mas o julgamento traz consigo muito mais do que isso. Deverá também obrigar uma ampla revisão da política fiscal adotada até hoje pelos estados-membros em matéria de ICMS e provavelmente elevará ao tribunal uma ampla gama de questionamentos em torno da essencialidade de mercadorias e produtos em matéria de ICMS e IPI nos próximos anos.

 


[1] Tese fixada: "É constitucional a fixação de alíquota progressiva para o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação — ITCD".

[3] Sobre o conceito de "extrafiscalidade" e os parâmetros de controle das normas extrafiscais: CORREIA NETO, Celso de Barros. O Avesso do Tributo: incentivos e renúncias fiscais no direito brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Almedina, 2016.

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  • Brave

    é doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), consultor legislativo da Câmara dos Deputados, advogado, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público, diretor-geral da Câmara dos Deputados e autor dos livros "O Avesso do Tributo" e "Os Impostos e o Estado de Direito".

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