Diário de Classe

O fim da História e o populismo

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17 de julho de 2021, 8h00

Um paradoxo. De um lado, a democracia brasileira apresenta-se como aquele espaço conflitivo e de indeterminação como de resto devem ser, excetuando-se as regras (claras) que permitem o jogo institucional todas as democracias saudáveis. Nela estão abrigadas as narrativas responsáveis por uma série de políticas de sucesso, como aquelas de abertura econômica, estabilização monetária e, mais recentemente, inclusão social. Por outro lado, nela também estão contraditórios e pouco efetivos sistemas de controle de corrupção e de "eficácia institucional" em diversos campos, gerando, não de hoje, uma espécie de base popular não apenas sistematicamente descontente, mas pior suscetível à sedução de discursos políticos à margem das instituições e, por isso mesmo, considerados populistas. Já tratei disso aqui, aqui e com Clarissa Tassinari aqui, mas penso poder avançar a uma percepção ainda mais pessimista, ensaiando ideias a partir de argumentos político-filosóficos.

Sigamos, nesse sentido, a partir da cena contemporânea, em boa medida delimitada por esse mesmo discurso sedutor — e possível a partir da combinação entre democracia e insatisfações, agudizadas por um sempre presente indivíduo da modernidade e sua vontade de poder. Esse caldo todo parece cada vez mais distante do ideal democrático bem refletido no "poder sem rosto" ou no "poder como um lugar vazio" de que fala Claude Lefort [1]. Claro. O esfacelamento institucional incluindo aí os partidos políticos e suas agendas representativas cada vez mais opacas e as tipicamente populistas tentativas de aniquilação do "inimigo"  sejam as espelhadas nas tais "elites brancas", como em um passado não muito distante já se disse, ou sejam aquelas bem representadas naquilo que tão abstratamente se nomina como "comunistas", como a contemporaneidade não nos cansa de lembrar a vagueza desse assombro dão forma a esse estado de coisas: o poder, que em alguma medida já desprende-se da política, privatizando espaços públicos na contramão do conceito de política de Francis Wolf [2], passa a associar-se à imagem do líder. "Tem rosto", portanto, e seja à esquerda ou à direita da arena política pode flertar com o indeterminado, aproximando perigosamente suas narrativas daquelas de traço totalitário, sobretudo verificadas na primeira metade do século 20, em que a liderança já sequer identificava-se com o Estado (l'État c’est moi), mas, sim, com a própria sociedade (la société c’est moi[3].

Intuo que nos limites que fazem destas linhas mais um esboço político-filosófico que o saldo de esforço estritamente acadêmico polarizações e radicalismos como os verificados, não de hoje, no Brasil, são sugestivos desse cenário, ampliado em projeção geométrica na velocidade das redes. O "poder sem rosto" da horizontalidade democrática não é mais o "poder dos muitos inominados", mas, sim, o "poder dos propositalmente anônimos" para os quais, irremediavelmente, a democracia falhou.

O líder encarna justamente esse "sentimento", desfazendo-se, entretanto, da arquitetura partidária e de sua agenda reivindicativa, de suas plataformas e do grupo em torno das ideias que emprestam unidade à sigla, para encarnar o desejo de eventuais maiorias eleitorais que se pressupõem representativas de todo tecido social.

Essa "pretensão hegemônica" não é, claro, original. Mas frente a um "fim da História" [4] imaginado a partir da corrosão dessas mesmas ambições, atualíssimos ingredientes parecem reorganizar no fio do tempo o debate que não tem, na verdade, fim: longe das romantizações típicas de um passado recente, as redes não são as "ágoras hi-tec", menos ainda o indiscutível canal para colocar transparentemente o poder público em público, alusivamente a uma das  promessas não cumpridas elencadas por Bobbio [5]. Vai negativamente além. Longe da idealidade, as tais "ágoras" formaram o abrigo ideal àquele sujeito da modernidade que, no limite, não mais assujeita o mundo a partir de suas subjetivas cosmovisões, mas, sim, de suas muito íntimas vontades em ligação direta com a pretensa liderança, ciosa dos dividendos políticos ofertados pelo desvelar do "sentimento nacional".

Como se vê, nessa engrenagem não apenas cada vez mais possível, mas também mais robusta no avançar do século 21, a estrutura política sedimentada nos partidos e seus ideários plurais e representativos vai pouco a pouco desfazendo-se. Ocorre que, como bem lembra, mais uma vez, Lefort, afirmar o lugar do poder como um lugar vazio não significa afirmar a aniquilação do próprio poder. A democracia horizontaliza mas não elimina esse mesmo poder. Isso significa que o enferrujamento das siglas os núcleos de poder a projetar alternância nas democracias pressupõe sua substituição: saem da arena os partidos como entidades representativas, e entram rostos como a encarnação desse pretencioso sentimento nacional formado não apenas pela "voz das ruas", mas, sobretudo por uma contemporânea "voz das redes". O século 21 e suas peculiaridades tecnocomunicacionais, cada vez mais velozes, tende a ser muito por isso e no risco corrido dessas projeções o século dos populismos [6].

Em paralelo ao tom pessimista anunciado de início e até aqui observado, a boa notícia é que, diante da tentação populista cada vez mais sólida, não poderão desaparecer suas condições de possibilidade, como de resto é a própria democracia. Há aí algo de evidente: discursos demagógicos e, em alguns casos, também fortemente contrários ao pacto (re)fundante do país, orientados à obtenção de vantagens eleitorais ao procurar espelhar demandas institucionalmente não atendidas, só fazem sentido em ambientes democráticos. Por outro lado, diante da emergência dessa não apenas possível como, no mais, provável coexistência entre fenômeno e forma políticos, questiona-se a qualidade da democracia no futuro.

Essa é a questão em aberto.

Que o tempo, enfim, nos diga algo sobre isso.

 


[1] LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre a democracia, revolução e liberdade. Tradução de Eliane Souza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

[2] WOLFF, Francis. A invenção da política. In: NOVAES, Adauto (Org.). A crise do Estado-nação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

[3] "Nas últimas linhas de sua obra sobre Stalin, que a morte não lhe permitiu acabar, Trotski ousou escrever: 'L'État c'est moi!' é quase uma fórmula liberal em comparação com as realidades do regime totalitário de Stalin. Luís XIV se identificava apenas com o Estado. Os papas de Roma se identificavam ao mesmo tempo com o Estado e a Igreja, mas somente durante as épocas do poder temporal. O Estado totalitário vai muito além do césaro-papismo, pois abarca a economia inteira do país. Diferentemente do Rei-Sol, Stalin pode dizer a justo título: 'La Société c’est moi'". LEFORT, Claude. A invenção democrática. Os limites da dominação totalitária. 3.ed. rev. e atual. Tradução de Isabel Loureiro e Maria Leonor Loureiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 89.

[4] Em alusão à famosa proposição de Francis Fucuyama, sinteticamente expressa na ideia de que o capitalismo e a própria democracia constituiriam o último degrau da história da humanidade. FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

[5] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

[6] Embora por razões nem sempre convergentes, o argumento vai no mesmo sentido de ROSANVALLON, Pierre. El siglo del populismo: Historia, teoría, crítica. Tradução de Irene Agoff. Galaxia Gutenberg, S.L., 2020.

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  • Brave

    é doutor em Direito Público pela Unisinos, em estágio pós-doutoral na mesma instituição (Capes PNPD) e membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos) e da Rede Estado & Constituição.

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