Licitações e Contratos

Fusões, aquisições, cisões e a nova Lei de Licitações

Autor

  • Jonas Lima

    é sócio de Jonas Lima Advocacia especialista em Direito Público pelo IDP especialista em compliance regulatório pela Universidade da Pensilvânia ex-assessor da Presidência da República (CGU).

16 de julho de 2021, 8h00

A Lei nº 14.133/2021 trouxe mudanças para o ambiente de fusões, aquisições e cisões de empresas em relação a licitações e contratos administrativos, flexibilizando pontos, mas impondo regramentos adicionais em outros.

Spacca
O processo de due diligence para operações societárias não se limitará às tradicionais verificações contábeis, trabalhistas, fiscais, regulatórias, de contencioso e eventual concentração de mercado concorrencial, mas deverá considerar novos aspectos, sem prejuízo das oportunidades de negócios advindas da lei.

As mudanças se estenderão ainda a gestores públicos, pois minutas de editais precisarão de ajustes, assim como a gestão contratual.

Mas antes de adentrar esses temas é importante rever algumas questões de operações societárias.

A Lei nº 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas) estabelece o seguinte:

"Artigo 219  Extingue-se a companhia:
(…)
II – pela incorporação ou fusão, e pela cisão com versão de todo o patrimônio em outras sociedades.
(…)
Artigo 227 
A incorporação é a operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações.
(…)
Artigo 228 
A fusão é a operação pela qual se unem duas ou mais sociedades para formar sociedade nova, que lhes sucederá em todos os direitos e obrigações.
(…)
Artigo 229 
A cisão é a operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a versão.
§1º. Sem prejuízo do disposto no artigo 233, a sociedade que absorver parcela do patrimônio da companhia cindida sucede a esta nos direitos e obrigações relacionados no ato da cisão; no caso de cisão com extinção, as sociedades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida sucederão a esta, na proporção dos patrimônios líquidos transferidos, nos direitos e obrigações não relacionados.
(…)
Artigo 233 
Na cisão com extinção da companhia cindida, as sociedades que absorverem parcelas do seu patrimônio responderão solidariamente pelas obrigações da companhia extinta. A companhia cindida que subsistir e as que absorverem parcelas do seu patrimônio responderão solidariamente pelas obrigações da primeira anteriores à cisão".

Já o Código Civil estabelece:

"Artigo 1.116  Na incorporação, uma ou várias sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações, devendo todas aprová-la, na forma estabelecida para os respectivos tipos.
(…)
Artigo 1.118 
Aprovados os atos da incorporação, a incorporadora declarará extinta a incorporada, e promoverá a respectiva averbação no registro próprio.
Artigo 1.119 
A fusão determina a extinção das sociedades que se unem, para formar sociedade nova, que a elas sucederá nos direitos e obrigações".

Quanto à cisão, face à ausência de maior detalhamento no Código Civil, volta-se à Lei nº 6.404/76, com seus dispositivos já mencionados.

Tais normas de Direito Privado são consideradas nos contratos administrativos em face do artigo 89 da Lei nº 14.133/2021, que assim dispõe:

"Os contratos de que trata esta Lei regular-se-ão pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, e a eles serão aplicados, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado".

Feitas tais considerações, cumpre lembrar que o artigo 78 da Lei nº 8.666/93 estabelecia previsão expressa sobre fusão, cisão e incorporação com relação a contratos administrativos:

"Artigo 78  Constituem motivo para rescisão do contrato: (…) VI – a subcontratação total ou parcial do seu objeto, a associação do contratado com outrem, a cessão ou transferência, total ou parcial, bem como a fusão, cisão ou incorporação, não admitidas no edital e no contrato".

Mas a Lei nº 14.133/2021 não trouxe dispositivo equivalente, embora com base na "antiga lei" o Tribunal de Contas da União (TCU) tenha firmado posição pela execução de contrato mesmo diante das operações societárias, considerando o interesse público contra a suspensão de serviços ou fornecimentos.

Até os Acórdãos nºs 1108/2003 e 1245/2004, do Plenário, o tribunal admitia a continuidade de contrato desde que atendidos, cumulativamente, os seguintes requisitos: "I) a possibilidade estar prevista no edital e no contrato, nos termos do artigo 79, inciso VI, da Lei 8.666/1993; II) serem observados, pela nova empresa, os requisitos de habilitação estabelecidos no artigo 27 da Lei 8.666/1993, originalmente previstos na licitação; e III) serem mantidas as condições definidas no contrato original". E nos Acórdãos nºs 113/2006, 2.071/2006 e 634/2007 admitiu a possibilidade de continuidade contratual ainda que não prevista expressamente no edital e no contrato.

Posteriormente, com o Acórdão nº 2.641/2010 – Plenário reafirmou a desnecessidade de que o edital e o contrato tivessem regra sobre a possibilidade de alteração societária da contratada para que o contrato prosseguisse, desde que o edital ou contrato não a vedassem, fosse por fusão, incorporação ou cisão, ressaltando ser essencial aferir se a eventual reestruturação societária prejudicaria a execução do contrato ou os princípios da Administração Pública.

Com isso, vários contratos foram aditivados e publicados nos diários oficiais com alteração da titularidade de empresas contratadas, inclusive incorporadas que haviam sofrido aplicação de sanção de inidoneidade e outras "herdando" atestados de capacidade técnico-operacional em seu próprio nome, vez que atestado é um ativo, como qualquer outro, possui valor e não se confunde com questões de penalidades administrativas.

Mas determinadas empresas incorreram na falha de existência de sócios comuns, o que chamou atenção de entes de controle.

Isso causou desconfiança sobre operações legítimas, como as de transferência de titularidade em contratos administrativos por mudança na estrutura societária da empresa em cisão parcial, que não prejudica a continuidade de contrato administrativo, até porque a cisão é muito motivada por separação de nichos de mercado, como vendas e serviços por empresas distintas.

Então, alguns gestores passaram a não aceitar alterações de razão social e CNPJ em aditivos como os de prorrogações contratuais e alteração da titularidade da contratada, mas outros gestores continuaram admitindo o procedimento, que é amparado em lei, bastando que não se tenha burla às normas e aos princípios e se tenha garantida da execução contratual nos moldes de origem.

Mas o conflito de entendimentos surgiu quanto à prática ilícita de manobras para contornar as sanções aplicadas a empresas em licitações e contratos, quando sobreveio o alerta de respeito ao artigo 5º, inciso XLV, da Constituição Federal, que prevê que "nenhuma pena passará da pessoa do condenado" (a sucessão de empresa sancionada não poderia prejudicar direitos da sucessora), de modo que essa dialética se desenvolveu e incluindo no contexto o princípio da moralidade, do artigo 37, caput, da Carta Magna, a ser também considerado.

E o Superior Tribunal de Justiça passou a alertar que "a constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar à aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída" e que Administração Pública pode, "em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular" (RMS 15.166-BA, 2ª Turma – DJ 01/08/2003).

Já o Tribunal de Contas da União passou a ressaltar a possibilidade de se "estender a inidoneidade para licitar com a Administração Pública Federal às futuras sociedades que forem constituídas com o mesmo objeto social e composta pelo mesmo quadro societário daquelas fraudadoras" (TCU, Acórdão 1209/2009-Plenário).

Esses leading cases de matéria hoje bastante conhecida, contra a permanência de mesmos sócios de empresas sancionadas e operações societárias precisam ser revisitados em face do contexto da nova Lei de Licitações, pois ao mesmo tempo em que se trata de lei capaz de dotar toda a Administração de maiores instrumentos de compliance e imposições de novas responsabilidades, o novo texto não impede a "herança" de contratos e atestados de capacidade técnica e nem de licenças e outros atos de regulação pelas empresas sucessoras.

Assim, se deve adentrar efetivamente nas mudanças trazidas pela Lei nº 14.133/2021 em relação às matérias tratadas com luz sobre deveres, obrigações, possibilidades e responsabilidades.

Primeiramente, convêm notar algumas vedações que precisam ser consideradas para aqueles que pretendem expansão de mercado no setor público, via operações societárias, mas precisarão de cautela redobrada no processo de due diligence.

"Artigo 14  Não poderão disputar licitação ou participar da execução de contrato, direta ou indiretamente:
(…)
IV – aquele que mantenha vínculo de natureza técnica, comercial, econômica, financeira, trabalhista ou civil com dirigente do órgão ou entidade contratante ou com agente público que desempenhe função na licitação ou atue na fiscalização ou na gestão do contrato, ou que deles seja cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, devendo essa proibição constar expressamente do edital de licitação;

V – empresas controladoras, controladas ou coligadas, nos termos da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, concorrendo entre si;
VI – pessoa física ou jurídica que, nos 5 (cinco) anos anteriores à divulgação do edital, tenha sido condenada judicialmente, com trânsito em julgado, por exploração de trabalho infantil, por submissão de trabalhadores a condições análogas às de escravo ou por contratação de adolescentes nos casos vedados pela legislação trabalhista.

§1º. O impedimento de que trata o inciso III do caput deste artigo será também aplicado ao licitante que atue em substituição a outra pessoa, física ou jurídica, com o intuito de burlar a efetividade da sanção a ela aplicada, inclusive a sua controladora, controlada ou coligada, desde que devidamente comprovado o ilícito ou a utilização fraudulenta da personalidade jurídica do licitante".

Não se pode fazer qualquer operação societária sem ter em vista essas normas acima elencadas.

Mas existem outras portas a oportunidades inéditas a serem consideradas no âmbito da nova lei de Licitações, com a possibilidade de substituição de consorciado de contrato em andamento, nos termos do artigo 15, §5º, da nova lei, o que é um atrativo para operações societárias para se juntar isso à inclusão em contratos ativos, especialmente, na área de engenharia, onde consórcios irão gerar atestações técnicas em nome de quem constar no histórico.

Não será ilícito, portanto, que uma empresa faça incorporação ou fusão com outra apenas para aumentar sua qualificação para ter espaço a mais no nicho de substituição de consorciados de obras públicas, por exemplo, desde que se respeite as diretrizes da nova lei.

De outro lado, também com aparente flexibilização, a nova lei não mais trouxe dispositivo como aquele do artigo 78, inciso VI, da Lei nº 8.666/93, que estabelecia como hipótese de rescisão contratual a fusão, cisão ou incorporação não admitidas no edital e no contrato, o que é uma inovação, um avanço louvável, reduzindo interferência estatal na atividade privada da empresa.

Mas ainda consta no artigo 137, inciso III, da nova lei a hipótese de extinção de contrato em face de alteração social ou modificação da finalidade ou da estrutura da empresa que restrinja sua capacidade de concluir o contrato, uma adaptação do antigo artigo 78, inciso XI, da Lei nº 8.666/93, coerente com a jurisprudência pacificada sobre a matéria, tendo em foco a capacidade da empresa de bem prosseguir o contrato, até pelo interesse público contra paralisações, sem esquecer do princípio do consequencialismo que foi incorporado aos artigos 5º e 147 da nova lei, a equilibrar decisões de rescisões contratuais e nulidades com possibilidade de medidas saneadoras.

Enquanto pelos dispositivos acima as situações parecem ter ficado mais flexíveis, um outro lado da lei é de maior rigor, como se evidencia do seu artigo 160, aqui transcrito com destaques:

"Artigo 160  A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, e, nesse caso, todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica serão estendidos aos seus administradores e sócios com poderes de administração, a pessoa jurídica sucessora ou a empresa do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado, observados, em todos os casos, o contraditório, a ampla defesa e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia".

Portanto, uma lei com maior grau de segurança para a Administração Pública contra confusão patrimonial ou manobras de empresas sancionadas, sendo notável a séria advertência sobre o grau de responsabilidade agora expresso para os administradores não sócios, o que é alerta a ser considerado, pois não havia algo dessa natureza na lei anterior.

De todo modo, para não haver violações às garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, a parte final do referido dispositivo legal, felizmente, trouxe uma previsão de que a empresa tenha o exercício dessas garantias no processo.

Uma outra questão a ser considerada ao se operar fusão, aquisição ou cisão é o novo registro de histórico no cadastro de fornecedor da empresa, nos termos dos artigos 88, §4º, e 36, §3º, da nova lei, ou seja, importante que se considere o "desempenho pretérito" da empresa em contratos públicos, pois isso passará a ser contado em eventual pontuação técnica nas futuras licitações.

Ante o exposto, a nova Lei de Licitações tem pontos louváveis de flexibilização e governança, para a Administração Pública e os licitantes, mas cautelas adicionais precisarão ser adotadas em todos os processos de fusões, aquisições e cisões de empresas que possuem negócios com o governo, pois as questões não serão apenas de identificação de riscos e passivos ocultos, mas um enorme leque de situações a serem consideradas em conjunto.

Autores

  • é advogado especialista em licitações e contratos, pós-graduado em Direito Público pelo IDP e Compliance Regulatório pela Universidade da Pensilvânia e sócio do escritório Jonas Lima Sociedade de Advocacia.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!