Opinião

Quem tem medo do Tema 1010 do Superior Tribunal de Justiça?

Autor

  • Paulo de Bessa Antunes

    é detentor da edição 2022 do Prêmio Elisabeth Haub de Direito Ambiental e Diplomacia professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros e ex-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

15 de julho de 2021, 12h08

O Superior Tribunal de Justiça firmou jurisprudência em relação ao artigo 4º, caput, I, "a", "b", "c", "d" e "e", conforme consta do enunciado do Tema 1010: "Na vigência do novo Código Florestal (Lei nº 12.651/2012), a extensão não edificável nas Áreas de Preservação Permanente de qualquer curso d’água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo seu artigo 4º, caput, inciso I, alíneas a, b, c, d e e, a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade". Tal decisão causou grande inquietação em alguns setores, sendo a crítica fundada em tese no sentido de que em áreas urbanas consolidadas há de se aplicar a Lei nº 6.766, de 19/12/1979, em cujo artigo 4º, III, há determinação de reserva obrigatória de área não edificável de, no mínimo, 15 metros de cada lado. Discute-se, também, que a matéria deveria estar submetida aos planos diretores que seriam os instrumentos jurídicos mais adequados para tratar a questão.

A matéria exige reflexão. Incialmente, cabe observar que o parágrafo único do artigo 2º da Lei nº 4.771/1965 [1] não encontra similar na Lei nº 12.651/2012, sendo certo que o Plano Diretor municipal só é mencionado em relação às áreas verdes urbanas (artigos 3º, XX, e 19). Quanto às áreas de preservação permanente, o artigo 4º da Lei nº 12.651/2012 deu tratamento igual sejam elas urbanas ou rurais. Pessoalmente, entendo a medida inadequada, haja vista que a realidade da urbe não se confunde com a da campanha. Contudo, há de se observar que as áreas de preservação permanente, ex vi lege, não são permanentes, muito menos de preservação, haja vista o grande número de exceções legalmente admitidos. Que o leitor não se perca pela leitura. Como se sabe, preservação é a utilização indireta dos recursos naturais e permanente tem o significado de perene. As APPs não ostentam tais características, devido ao grande número de exceções que abrigam, repita-se.

Com efeito, o artigo 8º da Lei nº 12.651/2012 admite a intervenção ou supressão de APP nas "hipóteses de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental". As hipóteses de utilidade pública abrangem: 1) as atividades de segurança nacional e proteção sanitária; 2) as obras de infraestrutura destinadas às concessões e aos serviços públicos de transporte, sistema viário, inclusive aquele necessário aos parcelamentos de solo urbano aprovados pelos municípios, saneamento, energia, telecomunicações, radiodifusão, bem como mineração, exceto, neste último caso, a extração de areia, argila, saibro e cascalho; 3) atividades e obras de defesa civil; 4) atividades que comprovadamente proporcionem melhorias na proteção das funções ambientais referidas no inciso II do artigo 4º; e 5) outras atividades similares devidamente caracterizadas e motivadas em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto, definidas em ato do chefe do Poder Executivo federal;

As hipóteses de interesse social englobam sete itens, inclusive "outras atividades similares devidamente caracterizadas e motivadas em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional à atividade proposta, definidas em ato do Chefe do Poder Executivo federal" (artigo 4º, IX) Nas atividades de baixo impacto ambiental estão compreendidos, nada mais, nada menos do que 11 itens que chegam até mesmo a "outras ações ou atividades similares, reconhecidas como eventuais e de baixo impacto ambiental em ato do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) ou dos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente" (artigo 4º, X).

Assim, é evidente que há uma amplíssima possibilidade de intervenção, ou mesmo supressão de APP sempre que haja interesse coletivo envolvido, merecendo destaque o fato de que há um largo espectro de discricionariedade para a definição de "outras ações ou atividades similares" por parte do poder executivo. Seria ilegítimo e inverídico se afirmar que as APP impedem atividades econômicas relevantes.

Logo, não há de se estranhar o conteúdo do Tema 1010 do STJ que, evidentemente, limitou-se a dizer o óbvio: o artigo 4º da Lei nº 12.651/2012 é aplicável desde a sua publicação. As áreas não edificantes estabelecidas pela Lei nº 6.766/1979 não se confundem com áreas de preservação permanente, até mesmo porque as APP não são necessariamente não edificantes, como visto acima. A natureza das áreas não edificantes da Lei nº 6766/1979 é protetiva, seja dos imóveis do loteamento, seja dos cursos d'água. Elas podem, ou não, estar compreendidas no interior de APP. Por outro lado, o tema não é nada além de uma consolidação da jurisprudência do STJ que, desde algum tempo vem se firmado no mesmo sentido apontado.

A discussão sobre APP em áreas urbanas é muito relevante, devendo ser distinguidas, no mínimo, duas situações, sendo: 1) aquela em que já existem construções em afastamento menor do que 30 metros dos cursos d'água, com ampla ocupação da área, como é comum em várias cidades, inclusive com a existência de ruas às margens de rios etc. Em tais hipóteses, não há de se falar em áreas de preservação permanente, até mesmo devido ao fato da inexistência da função ambiental que é condição essencial para a sua definição (Lei nº 12.651/2021, artigo 3º, II); e 2) aquela referente a áreas de expansão urbana, nas quais não existam edificações e a ocupação seja nova. Nesses casos, o Tema 1010 não deixa margem a dúvida em relação ao afastamento a ser observado.

Além disso, é importante ressaltar que o agravamento da chamada crise climática, efetivamente tem implicado no aumento de enchentes, chuvas torrenciais e outros fenômenos com gravíssimas repercussões sociais. Nesse sentido, a decisão do STJ serve como um balizador a ser adotado nacionalmente, com vistas a evitar futuras tragédias, sendo certo que a própria Lei nº 12.651/2012 está baseada em compromissos com a estabilização do clima. O Tema 1010 é um importante ponto de equilíbrio da questão relativa às APPs urbanas. Aliás, no particular, há de se observar que a Lei nº 12.651/2012, não é código florestal, portanto, não há, em princípio, contradição em tratar de áreas urbanas. O que o STJ fez foi, apenas, dar uma interpretação razoável à norma legal e dissipar incertezas. Registre-se, por fim, que o tribunal superior não determinou demolições ou medidas de força contra construções que, eventualmente, possam ter sido erigidas, a partir de 2012, desde que ao amparo de algum ato administrativo ou normativo legal à época da construção. Cuida-se de questão casuística que não pode ser generalizada, até mesmo diante do teor do §3º do artigo 19 do Decreto nº 6.514/2008 [2], comprovada a boa-fé.

O Tema 1010 é importante, pois definiu matéria fundamental para a proteção da diversidade biológica, de bens e pessoas e deu um norte seguro aos investimentos futuros que não mais ficaram sujeitos a variações jurisprudenciais frequentes.

 


[1] "Artigo 2° – Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas: …Parágrafo único. No caso de áreas urbanas, assim entendidas as compreendidas nos perímetros urbanos definidos por lei municipal, e nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, em todo o território abrangido, observar-se-á o disposto nos respectivos planos diretores e leis de uso do solo, respeitados os princípios e limites a que se refere este artigo".

[2] "Artigo 19 – A sanção de demolição de obra poderá ser aplicada pela autoridade ambiental, após o contraditório e ampla defesa, quando: …. § 3º Não será aplicada a penalidade de demolição quando, mediante laudo técnico, for comprovado que o desfazimento poderá trazer piores impactos ambientais que sua manutenção, caso em que a autoridade ambiental, mediante decisão fundamentada, deverá, sem prejuízo das demais sanções cabíveis, impor as medidas necessárias à cessação e mitigação do dano ambiental, observada a legislação em vigor".

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    é professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), ex-presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental (Ubaa).

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