Opinião

A condução coercitiva para interrogatório travestida de prisão temporária

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15 de julho de 2021, 9h17

Com a espetacularização das investigações conduzidas pelos órgãos nacionais de persecução penal, ilegalidades vêm sendo praticadas a granel dos direitos e das garantias individuais dos investigados, e isso inclui a ilícita adoção da condução coercitiva para interrogatório travestida de prisão temporária.

Em sua coluna na ConJur, o professor e advogado Pierpaolo Cruz Bottini já fez considerações importantíssimas sobre o tema, inclusive no sentido de demonstrar que a prisão temporária em nada se assemelha com a condução coercitiva para interrogatório [1].

Sabe-se que, quando do julgamento das ADPFs 395 e 444, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do artigo 260 do Código de Processo Penal (CPP) pela violação à liberdade (artigo 5º, caput, da CF), à presunção de inocência (artigo 5º, inciso LVII, da CF) e à não autoincriminação (artigo 5º, inciso LXIII, da CF).

Ainda que decretada de uma forma velada — in casu sob os lençóis do instituto da prisão temporária —, a condução coercitiva para interrogatório continuará sendo uma ilegalidade, consoante o que acertadamente assentou o nosso pretório excelso.

Mas, afinal, como identificar que uma prisão temporária foi decretada com o escopo de meramente conduzir o investigado a interrogatório?

Entendemos que, se após o cumprimento do mandado de prisão temporária o investigado for imediatamente submetido a interrogatório, estar-se-á diante de uma prisão temporária que foi decretada para tão só coletar o interrogatório do investigado, sobretudo se inexistir intimação prévia para essa finalidade.

É comum que, nesse quadro, a liberdade do investigado esteja condicionada à renúncia do direito constitucional ao silêncio (artigo 5º, inciso LXIII, da CF).

Importante ponderar que a adoção dessa manobra ilegal faz com que o investigado não consiga exercer o seu direito facultativo de sequer se fazer presente fisicamente no ato do interrogatório.

Embora a jurisprudência selecionada não cite categoricamente o tema ora em exame, os nossos tribunais pátrios não se eximem de reconhecer a ilegalidade de prisões temporárias que foram decretadas para colher o interrogatório do investigado, a saber:

"HABEAS CORPUS CONTRA DECISÃO QUE DECRETOU PRISÃO TEMPORÁRIA. PACIENTE INDICIADO POR FORMAÇÃO DE QUADRILHA, CORRUPÇÃO DE MENORES E APOLOGIA AO CRIME. DIVULGAÇÃO DE VÍDEO NA INTERNET EM QUE O PACIENTE E OUTROS AGENTES, PORTANDO ARMAS DE FOGO, CANTAM MÚSICAS QUE FAZEM APOLOGIA AO CRIME, NA PRESENÇA DE MENORES DE IDADE. PRISÃO TEMPORÁRIA DECRETADA, A PEDIDO DA AUTORIDADE POLICIAL, SEM FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. ORDEM CONCEDIDA PARA REVOGAR A PRISÃO TEMPORÁRIA. 1  A prisão temporária não pode ser decretada ao simples fundamento de que o interrogatório do indiciado é imprescindível para as investigações policiais e a prisão é necessária para auxiliar no cumprimento de diligências, tais como a localização das armas que apareceram no vídeo divulgado na internet. O interrogatório é uma faculdade, podendo o indiciado fazer uso, se lhe for conveniente, do direito de permanecer calado. Quanto à apreensão das armas, existe procedimento específico, independentemente da prisão do indiciado. Assim, a prisão temporária não pode ser decretada sob a mera justificativa de que a polícia precisa ouvir o indiciado e localizar as armas. Ademais, verifica-se nos autos que o paciente tem bons antecedentes e residência fixa, podendo, em liberdade, responder às imputações que lhe estão sendo feitas. 2  Habeas Corpus admitido e ordem concedida, para revogar a decisão que decretou a prisão temporária do paciente, confirmando a liminar deferida [2].
(…) EMENTA: HABEAS CORPUS
 HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO  PRISÃO TEMPORÁRIA  DECRETO CAUTELAR SEM FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA  MERAS CONJECTURAS  CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO
 ORDEM CONCEDIDA. A finalidade da prisão temporária é sempre a oportunização de meios que garantam a realização da investigação policial. Qualquer fim que não vise exclusivamente a atividade investigativa inquisitorial não é legítimo para justificar a medida. Todavia, dentre estes meios investigativos, não se inclui o corpo do sujeito da investigação. Logo, a prisão temporária não poderá ter como justificativa a necessidade de a autoridade policial obter o interrogatório do investigado ou demovê-lo da ideia de negar sua participação no fato investigado. O investigado é detentor de direitos e garantias e não pode ser tratado como objeto da investigação policial. De igual maneira, eventual temor de destruição de provas deve vir acompanhado de base empírica concreta. É necessário a indicação da prova passível de ser destruída pelo agente. Ordem concedida" [3].

Malgrado possivelmente a representação pela prisão temporária e a decisão judicial que vier a decretá-la nada falem sobre esse objetivo velado — de conduzir o investigado a interrogatório —, cabe ao patrono impugnar esse quadro de ilicitude, seja através de Habeas Corpus ou/e reclamação dirigida ao Supremo Tribunal Federal, à guisa de preservar, nesta última via processual, o que foi assentado nas ADPFs 395 e 444.

 


[2] TJ/DF, HC nº 0015217-05.2009.8.07.0000, Relator: Desembargador Roberval Casemiro Belinati, 2ª Turma Criminal, data de julgamento: 19/11/2009, data de Publicação: DJE 13/01/2010, p. 271.

[3] TJ/MT, HC nº 1010311-26.2018.8.11.0000, Relator: Desembargador Paulo da Cunha, 1ª Câmara Criminal, data de julgamento: 18/12/2018, data de Publicação: DJE 22/01/2019.

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