Controvérsias Jurídicas

Ação sem justa causa pode ser crime

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

15 de julho de 2021, 8h02

A Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019) trouxe maior responsabilidade aos órgãos de controle no momento da instauração do inquérito civil, penal ou administrativo, ou do oferecimento da ação penal ou de improbidade. A inexistência de adequada reprimenda para persecuções abusivas fez com que uma enxurrada de demandas ineptas batesse inutilmente às portas do Judiciário, sobrecarregando os já assoberbados serviços judiciais e elevando o alto custo da Justiça. Em muitos casos, mesmo prevendo a absoluta inviabilidade de sua aventura persecutória ou processual, o autor não se importava com os riscos, em autêntico dolo eventual, confiando na impunidade de seu excesso e desfrutando de sua injusta projeção às custas da honra alheia.

Estabeleceu a lei, em seu art. 30, a seguinte conduta típica: "Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente. Pena detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa."

A revogada Lei do Abuso de Autoridade (Lei  4.898/1965), conhecida por sua inutilidade, não previa nenhum tipo penal semelhante. Trata-se, portanto, de novatio legis incriminadora, que, por força do princípio da irretroatividade da lei penal (CF, art. 5º, XL), somente incidirá sobre as condutas praticadas a partir de 25 de janeiro de 2020[1], não alcançando ações pretéritas.

 Trata-se de crime próprio, cujo sujeito ativo deve ser necessariamente agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos poderes da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, compreendendo, mas não se limitando a autoridades policiais, membros do Ministério Público e procuradores das três esferas federativas.[2]

O crime se classifica como unissubjetivo ou de concurso eventual, podendo ser cometido por um ou mais sujeitos. No que toca ao particular, embora não possa ser autor, uma vez que se trata de crime próprio, nada impede que responda como partícipe, se tiver auxiliado, induzido ou instigado o autor principal. Exige-se apenas, que tenha ciência das elementares do crime do qual participou. O extraneus não pode ser autor direto do crime em comento, mas pode responder como partícipe.

Na hipótese de o particular induzir o agente público a erro, fazendo-o dar início à persecução penal, civil ou administrativa contra alguém que sabe ser inocente, responderá por denunciação caluniosa (CP, art. 339). Quanto ao agente público, não haverá crime, tendo em vista que não foi prevista a modalidade culposa para o abuso de autoridade.

O crime é de dupla subjetividade, atingindo mais de um sujeito passivo. O principal é a pessoa que tem sua honra, reputação e imagem maculadas pelo início da persecução desarrazoada. Sujeito passivo secundário é o Estado que tem sua credibilidade, moralidade e respeitabilidade vulneradas pelo ato abusivo.

A persecução tem início com o primeiro ato oficial de investigação civil, criminal ou administrativa, dividindo-se em persecução extrajudicial (investigação) e judicial (oferecimento da ação).

A falta de justa causa consiste na ausência de elemento indiciário do crime ou sua autoria. Exclui o interesse de agir, diante da inexistência de substrato capaz de gerar probabilidade de sucesso da demanda. Assim, para ser recebida, a inicial deve vir acompanhada de lastro probatório da idoneidade e verossimilhança da acusação, bem como de narrativa não imaginária.[3]

Indício, originário do latim indiccum (prova descoberta) é todo elemento objetivo e concreto, a partir do qual, mediante raciocínio indutivo (do particular para o geral) obtém-se a conclusão daquilo que provavelmente pode ter acontecido.[4]

Ação sem fundamento é a baseada em ilações, ou seja, que decorre de um achismo dissimulado em retórica vazia e saltos mentais, sem embasamento em elementos sólidos e concretos. Decorre de pura criação mental, à qual se fornece aparência de veracidade a partir de sofismas ou frases sem correspondência na prova idônea.

O crime é punido a título de dolo, sendo admissível o dolo eventual na sua primeira parte, e somente dolo direto na segunda. É possível que o autor ingresse com a ação sem ter certeza, mas aceitando o risco da ausência da justa causa, embora na segunda parte seja imprescindível que tenha ciência inequívoca da inocência da vítima. Necessário também o elemento subjetivo do tipo, consistente na finalidade especial de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal, o chamado animus abutendi (cf. art. 1º, § 1º).

Não há incompatibilidade do dolo eventual com o elemento subjetivo do tipo, pois nada impede que o agente atue de modo temerário, aceitando o risco da ausência de justa causa, apenas porque deseja prejudicar a vítima ou obter algum proveito pessoal, como fama efêmera. É o caso, por exemplo, do autor, que ciente da fragilidade do contexto probatório, a ponto de não conseguir descrever os fatos com lógica e objetividade, decide prosseguir com a propositura de uma ação penal, aceitando o risco de provocar grandes danos à imagem da vítima, apenas para satisfazer seu interesse pessoal de não sofrer o desgaste com um arquivamento impopular. Nesse ponto, a lei pune a irresponsabilidade dos covardes.

Embora não admitida a modalidade culposa, pode configurar falta grave disciplinar. Em caso de falta funcional, a autoridade competente e o órgão correcional deverão ser devidamente cientificados com vistas à apuração e consequente responsabilização do agente público infrator.

Eventual divergência na interpretação da lei ou avaliação de fatos e provas não configura crime (art. 1º, § 2º), chamada por Ruy Barbosa de delito de hermenêutica. Aqui, está presente a boa-fé excludente do dolo.

Trata-se de tipo misto alternativo ou conteúdo variado, no qual mesmo que o agente pratique mais de uma conduta descrita no tipo, responderá por um só crime, desde que todos sejam realizados dentro de um mesmo contexto fático.

O crime é formal, consumando-se com o mero oferecimento da ação dolosamente infundada ou o consciente início da injusta persecução penal, civil ou administrativa. Cuida-se de conduta plurissubsistente, na qual os atos executórios podem ser fracionados, sendo cabível, portanto, a figura do conatus ou tentativa.

O crime do artigo 30, é apenado com detenção de 01 a 04 anos e multa, aplicando-se o rito procedimental previsto nos artigos 513 a 518 do CPP, as penas restritivas de direito previstas no artigo 5º da Lei[5], o regime inicial aberto ou semiaberto e o Acordo de Não Persecução Penal[6]. Não sendo possível o ANPP, é cabível a propositura do sursis processual previsto no art. 89 da Lei n. 9.099/1995[7]. Todos os crimes da lei 13.869/19 são de ação penal pública incondicionada.

Em virtude do Princípio da independência de instâncias as penas previstas na Lei nº 13.869/2019 devem ser aplicadas independentemente das sanções de natureza civil ou administrativa. Apesar disso, quando a existência do fato ou a autoria já estiverem decididas pelo juízo criminal, não mais poderão ser questionadas nas esferas civil e administrativa.

   Resta agora aplicar a lei e reprimir desvios de conduta que prejudicam, além da vítima, a credibilidade das Instituições e a confiança da população na seriedade da Justiça.

 


[1] O art. 30 da Lei foi vetado pelo presidente da República e o veto foi rejeitado pelo Congresso Nacional em 27 de setembro de 2019, entrando em vigor após a vacatio legis de 120 dias, em 25/01/2020.

[2] CAPEZ, Legislação Penal Especial,16ª edição, Saraiva, 2021, pág.113.

[3] CAPEZ, Curso de Processo Penal,28ª edição, Saraiva, 2021, pág.164.

[4] Disponível no link: https://www.dicio.com.br/indicio/

[5] Lei 13869/19: Art. 5º.  As penas restritivas de direitos substitutivas das privativas de liberdade previstas nesta Lei são: I – prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas;  II – suspensão do exercício do cargo, da função ou do mandato, pelo prazo de 1 (um) a 6 (seis) meses, com a perda dos vencimentos e das vantagens; Parágrafo único. As penas restritivas de direitos podem ser aplicadas autônoma ou cumulativamente.

[6] Nesse sentido, Código de Processo Penal, artigo 28-A: “28-A do Código de Processo Penal, em não sendo caso de arquivamento da investigação, se o investigado tiver confessado a prática da infração penal sem violência ou grave ameaça, e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal”.

[7] Lei 9.099/95: “Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena(…)”.

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