Opinião

Marketing licitatório de produto, inexequibilidade e a nova Lei de Licitações

Autor

  • Laércio José Loureiro dos Santos

    é mestre em Direito pela PUC-SP procurador municipal e autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª ed. Dialética 2023 — no prelo) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (coord.: Marcelo Figueiredo Ed. Juspodivm 2023).

14 de julho de 2021, 6h04

Tema marcado pela aridez de casos práticos é o da inexequibilidade da proposta feita pelo licitante. Tanto a nova Lei de Licitações quanto a provecta Lei Federal nº 8.666/93 tratam laconicamente o tema, que tem algum parâmetro objetivo apenas quando se trata da licitação de obra.

A nova Lei de Licitações indica em três oportunidades o tema da inexequibilidade, mantendo o silêncio eloquente.

Uma delas é a indicação no âmbito dos objetivos gerais da licitação.

Assim:

"Artigo 11  O processo licitatório tem por objetivos:
(…)
III
 evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos" (grifo do autor).

Noutro artigo, o novo códex licitatório indica:

"Artigo 59  Serão desclassificadas as propostas que:
(…)
III  apresentarem preços inexequíveis ou permanecerem acima do orçamento estimado para a contratação;" (grifo do autor).

E, finalmente, define (apenas para obras) o que seria preço inexequível no mesmo artigo 59:

"(…)
§4º No caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% do valor orçado pela Administração".

A maior autoridade doutrinária em licitações no país (Marçal Justen Filho) ensina em sua obra sobre licitações deste ano (Editora RT, página 742) que não se trata de presunção absoluta, mas meramente relativa, inobstante a taxatividade da lei quanto ao percentual de 75% do valor do orçamento do poder público.

Assim:

"33.1) O descabimento da tese da presunção absoluta
Não é cabível admitir a tese de que seriam desclassificadas, de modo inevitável, as propostas de valor inferior a 75% do orçado. Essa orientação, que configuraria uma presunção absoluta de inexequibilidade, equivaleria à reintrodução no sistema jurídico brasileiro da licitação de preço-base" (grifo no original).

Dessa forma, não há critério objetivo o suficiente para a configuração do preço inexequível, nem mesmo no caso de obras.

No caso de produtos e serviços, então, sequer há uma presunção relativa do que seria inexequível. O laconismo foi erigido a regra legal quando se trata de inexequibilidade de produtos ou serviços.

O melhor norte a ser seguido é o do efetivo cumprimento do contrato por parte do particular. O objetivo central da vedação ao preço inexequível é evitar a ruína do princípio da continuidade do serviço público.

Reforça tal hermenêutica o fato de que a nova lei vincula (em duas oportunidades) a vedação do preço inexequível e do superfaturamento de forma conjunta nos mesmos incisos dos respectivos artigos.

Ou seja, a ruína do princípio da continuidade do serviço público (em razão dos preços exorbitantes ou inexistência do produto/serviço) é a essência da regra do preço inexequível.

Aliás, pedimos licença para afirmar que a nomenclatura mais adequada e pedagógica não seria "preço inexequível" mas "contrato de cumprimento impossível".

Um determinado valor de tarifa de pedágio é viável para uma empresa com capital elevado, mas não é exequível por uma empresa de reduzido capital. A exequibilidade é muito mais do contrato do que do preço.

Os custos são variáveis e não há parâmetro legal que obrigue o particular a utilizar uma planilha específica de custos. A planilha de custos é uma ferramenta de trabalho do particular, e não uma obrigação legal e vinculante. A livre concorrência é que estabelecerá a planilha viável em determinado mercado, e não uma regra legal ou a imposição do poder público.

Ademais, o risco da atividade é inerente à livre iniciativa, sendo responsabilidade sua (e não do poder público) a governança que garanta sua própria sobrevivência.

Reforça tal entendimento o fato de que a atividade privada somente pode ter seu sigilo quebrado por ordem judicial ou ter seu sigilo compartilhado entre autoridades tributárias. A apuração de exequibilidade da proposta não é fundamento para que a Administração Pública possa imiscuir-se nas entranhas da iniciativa privada como poderia fazer no caso de ilicitudes.

Vamos pensar numa hipótese muito próxima da realidade, que poderá ilustrar o tema em debate.

Digamos que uma grande empresa de alimentos queira oferecer produtos a preços baixos como estratégia de marketing para que o produto fique conhecido.

Seria interessante  por exemplo  oferecer alimentos especiais em hospitais universitários que atuam na formação dos profissionais de saúde.

Qual seria a ilicitude em incluir como estratégia de marketing a venda de produtos a preço de custo?

Seria irrelevante do ponto de vista da planilha de custos da empresa e traria melhores retornos do que custosos comerciais no horário nobre da televisão.

Qual seria a regra jurídica a proibir tal comportamento da empresa que assume seus riscos dentro da lógica da livre iniciativa?

Pensamos que não há tal proibição, salvo para aqueles que pretendam criar um "capitalismo de Estado" em que o "Grande Irmão" pudesse adentrar em qualquer entranha ou intimidade das empresas privadas, transformando-se em sócio compulsório.

Pelo princípio da legalidade dirigido ao cidadão (artigo 5º, II), tudo aquilo que não é vedado está implicitamente permitido.

Por outro lado, a Administração Pública somente pode fazer o que a lei expressamente determina (artigo 37, caput, da CF), e não há sequer previsão expressa do seria preço inexequível, tampouco a proibição de venda como estratégia de marketing.

Porém, o produto tem de ter a efetiva entrega ao poder público que o adquire. Essa é a razão de ser da regra que proíbe a oferta de produto a preço inexequível, e não o custo individual do produto a ser oferecido ao poder público.

Alguém poderia objetar que isso favoreceria a concentração de mercado prevista como algo a ser evitado e princípio geral no artigo 47, III, e no artigo 40, §2º, III, da nova lei das licitações.

Tal regra, porém, deve ser interpretada de forma sistemática no interior da própria licitação e não como autorização ao arbítrio. O parcelamento do objeto nos termos da Súmula 247 do Tribunal de Contas da União (TCU) que prevê a licitação por item e a oferta a vários licitantes é a maneira lícita de evitar-se a concentração de mercado e  ao mesmo tempo  obter a oferta mais vantajosa.

Não é papel do poder público, porém, fazer as vezes do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) fiscalizando algo além de suas forças em evidente incompetência legal para tanto.

Ademais, o próprio Cade autoriza fusões e certa concentração de mercado tendo como justificativa a concorrência da nova empresa criada com os grandes capitais internacionais, mostrando que  nem sempre  a concentração é vedada ou algo maléfico à economia.

Assim, em razão do princípio da legalidade do artigo 5º, II, do princípio da legalidade do artigo 37, caput, da CF, das regras de competência quanto ao poder de coibir concentrações de mercado e, ainda, tendo como hermenêutica que o preço inexequível é, necessariamente, aquele que afete o princípio da continuidade do serviço público, o "marketing licitatório de produto" é prática licita, possível e consentânea com a busca da proposta mais vantajosa pela Administração Pública.

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