Opinião

Juizados Especiais Cíveis: necessária revisão da jurisprudência

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14 de julho de 2021, 16h06

1) Introdução
A jurisprudência dominante no Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que é opção do autor apresentar sua demanda ao Juizado Especial Cível ou à cara cível competente da Justiça estadual. Essa construção pretoriana, no entanto, data de 24/3/1998 (REsps 151793 e 146189), ou seja, há mais de 20 anos. O fundamento principal dessas decisões foi a falta de estrutura dos novíssimos espaços de litigância e a possibilidade de que não suportassem a demanda, inviabilizando seu funcionamento. Desde então, juízes e Tribunais de Justiça repetem como um mantra: "É opção do autor". Entrementes, considerando a estrutura atual do sistema de juizados no Brasil, entendemos que é preciso revisar essa jurisprudência dominante, definindo-se a competência absoluta de juizados especiais para as causas previstas na Lei 9.099/95.

Neste texto, o objetivo é demonstrar que a fundamentação dos precedentes do Superior Tribunal de Justiça não se sustentam mais e é chegada a hora de novo estudo sobre o papel até então desenvolvido pelos juizados especiais cíveis e, em consequência, revisar a jurisprudência atualmente predominante.

2) Breve história dos juizados no Brasil
A Constituição Federal de 1988, a Constituição Cidadã, estabeleceu a obrigatoriedade da instalação dos juizados especiais em seu artigo 98:

"Artigo 98  A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:
I
Juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau".

Na verdade, precede ao texto constitucional algumas experiências de mediação de conflitos, principalmente na Bahia e Rio Grande do Sul, que resultaram na edição da Lei nº 7.244, de 7 de novembro de 1984, Lei do Juizado Especial de Pequenas Causas.

Com relação à competência, o artigo 1º dessa primeira lei expressamente dispunha que a escolha do processamento nessas novas unidades judiciárias seria "por opção do autor".

"Artigo 1º — Os Juizados Especiais de Pequenas Causas, órgãos da Justiça ordinária, poderão ser criados nos Estados, no Distrito Federal e nos Territórios, para processo e julgamento, por opção do autor, das causas de reduzido valor econômico".

A interpretação literal desse artigo é no sentido de que o legislador fez questão de incluir no texto a opção do autor para ter sua causa processada pelo Juizado de Pequenas Causas ou nas varas cíveis. Sem dúvidas, portanto.

Anos mais tarde, a Lei nº 9099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, praticamente repetiu a redação da antiga lei, mas excluiu a expressão "por opção do autor":

"Artigo 1º — Os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, órgãos da Justiça Ordinária, serão criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para conciliação, processo, julgamento e execução, nas causas de sua competência".

Adiante, o artigo 3º, §3º, da nova lei estabeleceu que a opção pelo procedimento previsto nessa lei importará em renúncia ao crédito excedente ao limite estabelecido neste artigo (40 salários mínimos), excetuada a hipótese de conciliação.

Ora, o que disse o legislador é que o autor poderia optar pelo juizado naquelas causas de valor superior a 40 salários mínimos, desde que renunciasse ao excedente. De outro lado, não se depreende do enunciado da lei que, naquelas causas com valor inferior a 40 salários mínimos, o autor poderia optar pelo juizado ou pela vara cível.

Essa dúvida permaneceu por alguns anos até que, em 1988, passados mais de 20 anos, o STJ decidiu que, em qualquer situação, a opção seria do autor, renunciando, evidentemente, ao excedente nas causas que excedessem 40 salários mínimos. Mais adiante, resgataremos os argumentos dessas decisões para concluir que não mais subsistem.

Retornando aos precedentes legislativos, a Lei nº 10.259, de 12/7/2001, que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça federal, estabeleceu em seu artigo 3º, §3º, que no foro onde estiver instalada vara do juizado especial, a sua competência é absoluta.

Pois bem, concluindo essa breve história legislativa dos juizados especiais em nosso ordenamento, a recente Lei nº 12.153, de 22/12/2009, que criou os Juizados Especiais da Fazenda Pública, estabeleceu em seu artigo 2º, §4º, que no foro onde estiver instalado Juizado Especial da Fazenda Pública a sua competência é absoluta. Ora, vê-se de forma cristalina que o legislador, desta feita, tanto para os juizados federais quanto para os Juizados da Fazenda Pública, fez questão de tornar absoluta a competência dessa nova modalidade de juizados.

Esse é o sentido, portanto, da legislação brasileira acerca da definição da competência dos juizados especiais: a competência absoluta em relação às ações que lhe conferem a lei específica. A interpretação sistemática da Lei 9.099/95, a meu ver, não pode mais seguir linha diversa.

3) A construção jurisprudencial sobre a opção do autor
O Supremo Tribunal Federal, desde sempre, entendeu que esse conflito de competência é matéria infraconstitucional e negou seguimento a recursos neste sentido:

"Recurso. Agravo convertido em Extraordinário. Inadmissibilidade deste. Competência dos juizados especiais. Complexidade da prova. Tema infraconstitucional. Precedentes. Ausência de repercussão geral. Recurso extraordinário não conhecido. Não apresenta repercussão geral recurso extraordinário que, tendo por objeto a competência dos juizados especiais, face à alegação de ser necessária a produção de prova complexa para o deslinde da controvérsia submetida ao Poder Judiciário, versa sobre tema infraconstitucional" (ARE 640671 RG, relator ministro presidente, Tribunal Pleno, julgado em 5/8/2011, DJe-171. Divulgado em 5/9/2011. Publicado em 6/9/2011. Ement Vol-02581-02 PP-00345)

No Superior Tribunal de Justiça, a construção pretoriana acerca da competência dos juizados especiais cíveis e de defesa do consumidor teve início em 1998, três anos após a promulgação da lei, depois que se estabeleceram diversos conflitos negativos de competência entre os juizados especiais e as varas cíveis.

Os julgados precursores sobre a matéria, em tribunais superiores, constam dos Recursos Especiais nº 151.703-RJ, de 24/3/1998, REsp nº 146.189-RJ, de 24/3/1988 e REsp nº 173.205-SP, de 27/4/1999.

Passemos à análise dos fundamentos desses julgados.

— REsp 151.703-RJ: "Juizado especial. Competência. Opção do autor. O ajuizamento da ação perante o juizado especial e uma opção do autor (artigo 3., par. 3., da Lei 9.099/95). Recurso conhecido e provido" (REsp 151.703/RJ, relator ministro Ruy Rosado de Aguiar, 4ª Turma, julgado em 24/3/1998, DJ 8/6/1998, p. 124).

O REsp 151.703-RJ, de relatoria do eminente ministro Ruy Rosado de Aguiar, seguido pelos ministros Barros Monteiro e César Asfor Rocha, julgado em 24/3/1998, teve como recorrente o condomínio do Edifício Torre Charles de Gaulle. Neste REsp, o recorrente defendeu a tese de que o acesso ao juizado especial é opção do autor. Em suas razões, o relator observou que a remessa dos processos em tramitação para os recém-criados juizados especiais resultaria em sobrecarga que inviabilizaria seu funcionamento ao receber uma herança insuportável dos feitos em andamento, o que causaria prejuízo às partes.

A transitoriedade desse entendimento foi observada no acórdão:

"Mais tarde, superada essa fase inicial, é possível e até recomendável que a competência seja absoluta, se até lá não tiver sido transformado o procedimento do juizado em procedimento comum ordinário" [1].

Depreende-se, portanto, que o próprio relator reconheceu a possibilidade de competência absoluta, mas entendeu que o acúmulo de processos poderia inviabilizar o funcionamento dos juizados.

— O REsp 146-189-RJ: "Competência. Ação reparatória de dano causado em acidente de veículos. Vara cível e juizado especial cível. artigo 3., inc. II, da Lei 9.099, de 26/9/95. Ao autor é facultada a opção entre, de um lado, ajuizar a sua demanda no juizado especial, desfrutando de uma via rápida, econômica e desburocratizada, ou, de outro, no juízo comum, utilizando então o procedimento sumário. Recurso especial conhecido, mas improvido" (REsp 146.189/RJ, relator ministro barros monteiro, 4ª Turma, julgado em 24/3/1998, DJ 29/06/1998, p. 196).

O REsp 146.189-RJ, de relatoria do eminente ministro Barros Monteiro, julgado em 24 de março de 1998, seguindo pelos ministros César Asfor Rocha, Ruy Rosado de Aguiar e Sálvio de Figueredo Teixeira, fez referência expressa ao REsp 151.703-RJ com relação à possibilidade de "inviabilização ab initio da nova Justiça".

Em seu voto, o relator também observou o caráter transitório do entendimento e repetiu exatamente a assertiva do ministro Ruy Rosado de Aguiar acerca da possibilidade e recomendação para que, mais tarde, fosse reconhecida a competência absoluta dos juizados [2].

— O Resp 173.205-SP: "Processual civil. Competência. Reintegração de posse de valor não excedente a 40 salários mínimos. Juizado especial. Faculdade do autor. Artigo 3º, § 3º, da lei n. 9.099/95.
O processamento da ação perante o Juizado Especial é opção do autor, que pode, se preferir, ajuizar sua demanda perante a Justiça Comum. Precedentes. Recurso conhecido e provido" (REsp 173.205/SP, relator ministro Cesar Asfor Rocha, 4ª Turma, julgado em 27/4/1999, DJ 14/6/1999, p. 204).

Por fim, o REsp 173.205-SP, de relatoria do ministro César Asfor Rocha, julgado em 27/4/1999, seguido pelos ministros Ruy Rodado de Aguiar, Sálvio de Figueredo Teixeira e Barros Monteiro, fez referência expressa aos acórdãos de 1998 e firmou a jurisprudência seguida até hoje por juízes e tribunais [3].

Depreende-se, portanto que os precedentes citados em abundância delimitaram a competência dos juizados por opção do autor por considerar que o sistema poderia ser inviabilizado com a remessa dos processos em andamento para as novas unidades do Poder Judiciário, embora ressaltando que "mais tarde" esse entendimento poderia ser modificado, e até recomendaram que a competência dos juizados fosse absoluta.

Entendemos, modestamente, que esse "mais tarde" é agora!

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