Direto do Carf

Revisão do despacho decisório: Carf entre o Direito Tributário e o Administrativo

Autor

  • Thais de Laurentiis

    é advogada sócia do escritório Rivitti e Dias Advogados doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP (com período na Sciences Po/Paris) especialista pelo Ibet graduada pela Faculdade de Direito da USP árbitra no CBMA professora do mestrado profissional do IBDT professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária e ex-conselheira titular do Carf na 1ª e da 3ª Seção de Julgamento.

14 de julho de 2021, 8h00

O processo administrativo fiscal (PAF), destinado precipuamente a reger a determinação e exigência dos créditos tributários, é ricamente disciplinado pelo Decreto 70.235/72, que mesmo sendo anterior à Constituição Federal de 1988, é capaz de assegurar aos contribuintes o contraditório e a ampla defesa determinados pelo seu artigo 5º, LV. Embora tal diploma normativo seja passível de melhorias [1], supre a falta de um regramento sistematizado em nível de legislação complementar, uma vez que a proposta nesse sentido acabou não sendo trazida para o texto aprovado do Código Tributário Nacional (CTN).

Spacca
Apesar de não trazer uma disciplina completa a respeito do PAF, o CTN apresenta regras fundamentais que estabelecem limites à atuação das autoridades administrativas no exercício do poder/dever de revisão do lançamento tributário, as quais, portanto, são diuturnamente trazidas ao âmbito do PAF: os artigos 146 e 149 [2]. Enquanto o primeiro trata de impossibilidade de alteração de critério jurídico adotado no lançamento tributário; o segundo aborda as hipóteses em que o lançamento pode ser efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa.

Daí já é possível depreender o início da problemática tratada na coluna deste semana: tanto o Decreto 70.235/72 quanto o CTN cuidam, a princípio, tão somente dos limites da atuação da autoridade tributária em processos iniciados a partir de um lançamento tributário. Enquanto isso, como é consabido, o mesmo PAF aplica-se também a processos que se iniciam a partir de pedidos de restituição/ressarcimento/compensação (cf. artigo 135 da IN 1.717/2017).

Exsurge, então, a seguinte dúvida: os limites à revisão do lançamento tributário, estipulados pelos artigos 146 e 149 do CTN, devem mutilar o direito das autoridades fiscais de corrigirem despachos decisórios exarados para não homologar ou homologar parcialmente créditos tributários requeridos pelos contribuintes em processos de sua iniciativa?

A dúvida aparece para os casos em que o despacho revisor é prejudicial ao contribuinte. Nas hipóteses em que demonstrado erro de fato no preenchimento de declaração que seja favorável ao contribuinte, a própria Receita Federal já se manifestou no sentido do cabimento da emissão de novo despacho, revendo a não homologação anterior, com base no artigo 149 do CTN (Parecer Normativo Cosit nº 8, de 3/9/2014).

A questão fica palpitante quando se lembra que no âmbito federal, o PAF (Decreto 70.235/72) é arrematado pela Lei nº 9.784/99. Ambos os regimes, especial e geral, respectivamente, são complementares e merecem leitura e interpretação conjugada [3].

A aplicação subsidiária da Lei nº 9.784/99 ao PAF é expressa, sendo amplamente aceita pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Assim, "é possível afirmar que salvo dispositivos de índole estritamente procedimental, todas as normas veiculadas pela Lei nº 9.784/99 são aplicáveis ao processo administrativo fiscal federal" [4].

Pois bem. O artigo 53 da Lei nº 9.784/99, dando efetividade ao princípio da autotutela que rege a Administração Pública, impõe que ela deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade. No caso de invalidação de ato do qual decorram efeitos favoráveis ao administrado, decai no prazo de cinco anos o direito de a Administração fazê-lo (artigo 54). Muito embora haja atualmente vozes na doutrina apontado para a necessidade de reavaliação desse paradigma da livre anulação dos atos administrativos [5], nesse sentido consagrou-se a jurisprudência dos tribunais superiores, espelhada nas Súmulas 473 [6] e 346 [7] do STF.

Percebe-se que a disciplina trazida pela Lei nº 9.784/99 é muito mais branda do que o CTN, em termos de limitação ao direito de a Administração revisitar seus próprios atos.

Segundo sua inteligência, verificado qualquer descompasso entre o ato administrativo (despacho decisório a respeito de pedido de crédito, no caso) e os dizeres da lei, este será passível de alteração dentro do prazo quinquenal. Não se fala em vedação a alteração de critério jurídico (como o artigo 146 do CTN); tampouco em situações restritas de revisão atinentes a incorreções ou omissões decorrentes de atos do sujeito passivo (artigo 149 do CTN).

Eis aí o dilema enfrentado pelo Carf ao analisar a questão, devendo decidir se aplica por interpretação extensiva os dizeres do CTN que versam sobre lançamento tributário aos processos de restituição/ressarcimento/compensação, ou se aplica unicamente a disciplina da Lei nº 9.784/99 para tais casos. Vale dizer, deve-se decidir se o mais adequado é levar em conta a natureza tributária do crédito pleiteado pelos contribuintes, ainda que isso implique em uma leitura larga das normas jurídicas; ou se o aspecto fundamental é tratar-se o despacho decisório de um ato administrativo, o qual é específica e claramente regido pela Lei nº 9.784/99. Numa síntese: prevalece o Direito Tributário ou o Direito Administrativo?

Em análise da jurisprudência do Carf, podemos organizar cinco grupos de decisões a respeito do tema.

No primeiro deles existe um afastamento categórico da aplicação do artigo 146 e 149 do CTN aos processos de iniciativa do contribuinte, a partir da aplicação do princípio da autotutela e no dever da Administração Pública de anular os atos ilegais (Súmula STF nº 473 e artigo 53 da Lei 9781/1999), estabelecendo que o limite seria o prazo de cinco anos para tanto (Acórdãos nº 3401-003.878 [8], 3201-007.164 [9] e 9303-008.801), bem como a competência da DRF para a emissão do despacho revisor (Acórdão nº  3401-005.799) [10].

Dentro desse primeiro grupo, vemos alguns pontos interessantes para sustentar a escolha feita pelos julgadores. No Acórdão nº 3201­004.922, o voto vencedor aborda a impropriedade de se falar em reformatio in pejus: "O fato aqui não é de reforma para pior, mas de controle da legalidade – o poder de autotutela da Administração Pública de rever seus próprios atos quando eivados de vícios de legalidade". Já o Acórdão nº 1301-004.602 frisa que a atuação dos órgãos de julgamento administrativo é distinta a depender da origem do processo. "No lançamento, aprecia-se se o ato é válido ou não, no sentido de se tornar definitivo ou é retirado do mundo jurídico. O efeito do acórdão é constitutivo negativo. Nos casos de restituição/compensação, o efeito do acórdão é declaratório". Em minucioso voto sobre os clássicos fundamentos sobre a teoria dos atos administrativo, o Acórdão nº 204-02.300, vai ao caso concreto para apontar quão "absurda" era a interpretação adotada no despacho decisório inicial, o que o maculava com vício inconvalidável de ilegalidade, devendo ser extirpado do ordenamento jurídico com efeitos ex tunc.

O segundo grupo de decisões parte do pressuposto que seria possível a aplicação do artigo 146 do CTN em processos de ressarcimento, mas, diante das particularidades dos processos que analisaram, entenderam que não havia alteração de critério jurídico que impedisse a edição do despacho revisor (e.g. Acórdão 3403-000.886 [11]). Foram assim, no mesmo sentido do entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, a teor do REsp 1.445.763. Ainda nesse grupo, cabe colocar o Acórdão 3301-004.693, que entendeu ser aplicável o artigo 149 do CTN para a revisão do despacho decisório, mas no sentido de convalidar o procedimento de revisão ocorrido no caso (para reduzir o direito creditório anteriormente reconhecido), o qual derivou do fato do Dacon conter equívocos, levando a Administração a exarar um primeiro despacho decisório com homologação de crédito por erro de fato.

Por sua vez, o terceiro grupo de decisões (Acórdão 1803002.340; Acórdão nº 1302-001.762; Acórdão nº 3201-003.041; Acórdão nº 1301-004.200) distingue duas situações: 1) a superação de questão prejudicial do despacho decisório por decisão proferida pelos órgãos de julgamento do PAF (a qual deve dar lugar a novo ato administrativo pela DRF, acerca de existência, suficiência e disponibilidade do crédito pleiteado); 2) da alteração do critério jurídico.

Em muitas oportunidades esse julgamento é oriundo do bom emprego da Súmula Carf nº 84, a qual determina que o pagamento indevido ou a maior a título de estimativa caracteriza indébito na data de seu recolhimento, sendo passível de restituição ou compensação, a qual supera o motivo da não homologação do despacho decisório original.  Falecendo a instância recursal de competência para avaliar a certeza a liquidez do crédito tributário em caráter originário, determina-se que o processo retorne à unidade de origem para examinar o mérito do pedido, nos termos do artigo 170 do CTN, intimando, inclusive, o contribuinte a trazer os documentos que entender necessários para comprovação do indébito.

Na hipótese em que é afastada uma preliminar de decadência utilizada como motivo do despacho decisório original, aplica-se a mesma lógica (Acórdão 302-35.943).

O quarto grupo de decisões é formado por acórdãos que aplicaram o artigo 146 do CTN para os processos de restituição / ressarcimento / compensação.

Contudo, em uma leitura atenta das decisões, percebe-se que a aplicação do referido dispositivo não foi no sentido de impedir uma revisão de ato administrativo pela DRF (proibir a emissão de um segundo despacho decisório, revisor do primeiro, que era mais benéfico ao contribuinte), mas, sim, de impedir que as instâncias julgadoras modifiquem os fundamentos jurídicos adotados pelo despacho decisório para manterem a negativa do direito creditório pleiteado.

É o que restou consignado nos Acórdãos 3301-009.520, 3301-007.321 e 3401-002.668, sendo que desse último destacamos a seguinte passagem: "(…) A decisão de piso modificou por completo os critérios jurídicos do despacho decisório, que em momento algum tratou as compensações apresentadas pelo contribuinte como não declaradas, mas sim, a par de tomá-las como válidas, procedeu à sua homologação parcial, em decorrência da glosa dos créditos ora combatida. Então, se a instância recorrida entendia equivocado o procedimento da unidade preparadora, competia-lhe anular o despacho decisório exarado para que outro fosse produzido, não ela própria, através da decisão, alterar os fundamentos jurídicos do ato administrativo original (despacho decisório), o que não é permitido pelo art. 146 do Código Tributário Nacional".

Houve, portanto, uma aplicação clássica dos dizeres do 146 do CTN para despacho decisório no âmbito do processo administrativo, impedindo que decisões da DRJ inovem o critério jurídico adotado pela autoridade fiscal de origem, ferindo a competência, o direito ao contraditório e à ampla defesa que regem o PAF (artigo 59, incisos I e II do Decreto nº 70.235/72).

Finalmente, o quinto "grupo", na realidade, é composto por um único acórdão, de nº 1401-001.487. Esse foi o singular precedente encontrado no sentido de limitar a revisão de ofício do despacho decisório, em prejuízo do contribuinte, pelas regras do CTnº Sua ementa é esclarecedora sobre as razões de decidir: "Uma vez publicado um Despacho Decisório que homologa totalmente a compensação, extinguindo, portanto, o crédito tributário por inteiro, não é possível voltar atrás para publicar um novo Despacho Decisório que homologa apenas parte da compensação e extingue, então, apenas parcialmente o crédito tributário. Havendo publicação de homologação de compensação, extinto está o crédito e preclusa qualquer nova tentativa de examiná-lo, salvo no caso de nulidade do primeiro Despacho Decisório. É, portanto, nulo o segundo Despacho Decisório".

Pela jurisprudência analisada nesta oportunidade, podemos concluir que o Carf tem admitido a invocação do artigo 146 do CTN para impedir alteração de critério jurídico pela decisão administrativa em relação aos motivos utilizados pelo despacho decisório acerca de pedido de crédito do contribuinte. De outro lado, a orientação majoritária é no sentido de não utilizar tal limitação (ou as do artigo 149 do CTN) para impedir a revisão do despacho decisório pela própria autoridade fiscal (revisão de ofício), sendo aplicado para tais casos a disciplina comum do processo administrativo traçada pelo artigo 53 da Lei nº 9.784/99, podendo a Administração exercer seu poder de autotutela para controlar a legalidade de seus atos, mesmo em prejuízo do contribuinte. Nesse cabo de guerra, tem vencido o princípio geral de direito administrativo, o que nos leva a recordar da antiga mas atual proposta Hely Lopes Meirelles [12] para a formulação de uma teoria geral do processo administrativo, sendo o processo administrativo fiscal espécie desse gênero e, por isso, submetido aos seus princípios gerais.

 


[1] Vide os bens colocados esforços do projeto "Diagnóstico do Contencioso Tributário Nacional" promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pela Receita Federal em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID: https://www.cnj.jus.br/acordo-com-receita-federal-permitira-diagnostico-sobre-contencioso-tributario/.

[2] Sobre o tema, já pudemos nos manifestar no seguinte artigo acadêmico: DELIGNE, Maysa de Sá Pittondo. LAURENTIIS, Thaís de. Alteração de critério jurídico e a jurisprudência do Carf. In: Análise crítica da jurisprudência do Carf. FERNANDES, Rodrigo Mineiro. GODOI, Marciano Seabra de. MURICI, Gustavo Lanna. RODRIGUES, Raphael Silva. (orgs.). Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019. pp. 367-385.

[3] MARINS, James. O Direito Processual Tributário. 5. ed. São Paulo: Dialética, 2010, p. 233.

[4] ROCHA, Sérgio André. Processo administrativo fiscal – Controle administrativo do lançamento tributário. São Paulo: Almedina, 2018, p. 346.

[5] Por todos, ver ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 461.

[6] "A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial."

[7] "A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos."

[8] Esse acórdão foi proferido pelo voto de qualidade, destacando-se o voto do Relator no sentido da impossibilidade de se revisar o despacho decisório eletrônico.

[9] Igualmente esse julgado se deu pelo voto de qualidade.

[10] A decisão salienta que o novo despacho decorreu de uma diligência requerida pela DRJ, mas quem fez foi a DRF, então não houve problema com relação a competência. Cita o artigo 18, §3º do PAF, que entende aplicar-se plenamente aos pedidos de ressarcimento/declaração de compensação. Ainda sobre a questão da competência, ver o Acórdão nº  3401005.935.

[11] A decisão afasta a aplicação do artigo 146 não porque não caberia em despacho decisório, mas sim porque se pretendia a impossibilidade de alteração de critério fora do ínterim de um processo administrativo fiscal. 

[12] Direito Administrativo Brasileiro, 34ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 707.

Autores

  • Brave

    é conselheira titular e vice-presidente da 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção do Carf, árbitra no Centro Brasileiro de Mediação a Arbitragem (CBMA), doutoranda e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), este cursado conjuntamente no Institut d`Études Politiques de Paris (SciencesPo), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributário (Ibet) e professora de Direito Tributário e Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária.

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