Opinião

Reflexões sobre o perigo de uma abordagem única do Direito

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13 de julho de 2021, 12h11

Em "O Perigo de Uma História Única", Chimamanda Ngozi Adichie nos ensina que é "impossível falar sobre a história única sem falar do poder", isso porque as histórias únicas costumam surgir como versões contadas por quem foi "maior que o outro". Para Chimamanda, quem conta essas histórias únicas, de que maneira o faz e quando o realiza, tudo isso se liga a estruturas de poder e dominação [1].

Essa estratégia de dominar a partir de narrativas não envolve apenas o fato de contar a história de outra pessoa, mas também e especialmente a habilidade de fazer dessa história a "história definitiva dessa pessoa." Ao se propor definitiva, a história única aprisiona e cria estereótipos, o que é muito problemático, já que estereótipos costumam ser incompletos [2].

Pois bem, de que maneira a crítica levantada por Chimamanda pode ser útil para refletir a respeito do ensino jurídico?  

De que forma a incompletude e definitividade da história única podem gerar reflexões proveitosas sobre o ensino do Direito?

Desde já, entendemos que é importantíssimo expor aqui que a nossa ideia com esse escrito não é jamais a de reforçar relativismos, negar a ciência ou propor revisionismo histórico, não é disso que trata este texto.

O que queremos é chamar a atenção para a incompletude e a precariedade das abordagens de conteúdos jurídicos que os externam como definitivos ou que os apresentam como saberes marcados por versões únicas e completas.

O que desejamos é ressaltar que os conteúdos jurídicos possuem, sim, versões e construções teóricas que se consolidaram como dominantes na história, nas instituições e nos precedentes, mas que também carregam consigo outras versões e olhares. Há conteúdos que dominam a seara jurídica no atual recorte de tempo e espaço, mas eles não são os únicos existentes.

Destacamos que as abordagens de diversidade, não estereotipadas, de teoria crítica e não definitivas são importantíssimas para a compreensão do fenômeno jurídico em sua completude. Elas ajudam a entender o Direito em sua pluralidade, no que diz respeito às suas vivências de transformação e, inclusive, no que concerne às suas limitações práticas.

Vamos desdobrar essas ideias em alguns exemplos didáticos?

A nosso ver, o perigo de uma história única atinge a raiz do ensino jurídico no Brasil, fundamentado eminentemente na dogmática do Direito. Essa forma de ver o Direito como sendo algo baseado em dogmas, que muitas vezes são apresentados como verdades absolutas e incontestáveis, tanto que uma premissa básica é a da inegabilidade dos pontos de partida, nos impede de analisar o fenômeno jurídico de forma crítica e, pior, nos aliena quanto ao fato de que o Direito é um instrumento de poder que está a serviço de uma ideologia dominante, no dizer de Gramsci [3]. Essa visão preponderante ainda deslegitima a zetética do Direito, a qual permite justamente alçar novos olhares capazes de adaptar os seus preceitos à evolução da sociedade.

Como se não bastasse, a visão unificada do Direito dificulta a compreensão do fenômeno hermenêutico jurídico tal como ele é, já que, pela teoria tradicional, o ato de interpretar consiste em extrair a norma do texto legislativo, em revelá-la e não em construí-la a partir desse suporte físico ou ponto de partida.

Ora, se tal atividade possuísse natureza meramente extrativa, como explicaríamos as diversas visões existentes ao redor de um mesmo texto legal? Como justificar os debates sobre a existência de uma interpretação mais correta que a outra? A impossibilidade de enxergarmos a multiplicidade da linguagem jurídica como algo que lhe é inerente nos defronta com paradoxos, como os aqui apontados.    

O Direito Penal também não foi poupado. Esse nome, inclusive, reforça a relevância da ideia de pena para essa disciplina. Essa centralidade na figura da pena talvez ocorra porque as versões punitiva e de populismo penal dominaram essa seara por anos. Dominaram ou ainda dominam?

Estudar os crimes e suas sanções é muito importante, mas é extremamente relevante também considerar a existência do abolicionismo penal, do Direito Penal mínimo, da criminologia crítica e da criminologia feminista, por exemplo.

A versão única de um Direito Penal que apresenta crimes, penas e possui uma técnica inabalável e perfeita de interpretação e aplicação desses textos normativos aos casos concretos certamente padecerá de incompletude, dificultando a compreensão do fenômeno social da criminalidade em um país marcado por desigualdades estruturantes gravíssimas, como é o caso do Brasil.

Qual o futuro do Direito Criminal caso ele seja interpretado a partir dessa versão única dominante?

Se mudamos um pouco de foco temático e pensamos em vias de resolução de conflitos, podemos trabalhar com perspectivas retributivas tradicionais, com medidas retributivas que dominaram e ainda dominam o cenário de apuração de ilícitos, mas não devemos jamais esquecer das abordagens restaurativas. Elas existem, são absolutamente relevantes e transformam realidades.

Em se tratando do Direito Administrativo, é possível perceber que existe uma forma histórica, dominante e clássica de tratar do princípio da legalidade. Com o avanço do tempo, diante das transformações vividas pelo Estado e a partir de alguns elementos teóricos pós-positivistas, a crise do princípio da legalidade passou a ser estudada por pesquisadores inúmeros [4]. Nesse sentido, há alguns anos discute-se bastante sobre a juridicidade, seu significado e a relação que trava com a legalidade clássica. Tratar somente da legalidade sem aprofundar a sua crise, a existência da juridicidade e os impactos gerados no Direito Administrativo por essas ideias é exemplo de abordagem incompleta e correspondente a um olhar único do Direito Administrativo. Essa forma única de expor a ideia de legalidade talvez se revele incapaz de permitir ao estudante a compreensão mínima do que se passa, por exemplo, no âmbito do controle judicial da Administração Pública.

Existe no Direito Tributário a narrativa de uma história única que nos ensina que esse é um campo neutro e racional, não devendo ser dialogado com os conceitos de justiça e muito menos ser interpretado como um dos instrumentos de concretização dos valores constitucionais estabelecidos no constitucionalismo de transformação social de 1988. Dessa maneira, o Direito Tributário já é olhado com antipatia por quem não o conhece a fundo. O que é reforçado pela versão contada insistentemente de que o Direito Tributário trata da eterna luta do cidadão para proteger o seu bolso da grande fera faminta — o Fisco — que, a qualquer custo, devora rendimentos.

A história contada — e diuturnamente repassada — de que dispomos de uma altíssima carga tributária predomina nos mais diversos ambientes, desde a academia jurídica à mesa de bar, deslegitimando o poder-dever de arrecadação dos tributos e esquecendo que a união de recursos financeiros dos contribuintes em prol de um fim comum é a base de concretização de todo e qualquer direito. Ainda que essa versão contada possa representar uma das pequenas faces desse ramo do Direito, ela peca por ser reducionista ao explicar o fenômeno tributário apenas a partir da lógica do individualismo racional que busca maximizar o bem-estar pessoal e individual em detrimento da contribuição para a solidariedade financeira que custeia a realização de políticas públicas para todos. Essa solidariedade viabiliza a implementação dos direitos fundamentais contidos na Constituição.

É muito comum escutar tributaristas e pessoas que não são do Direito se insurgindo contra a cobrança de tributos, porque no Brasil temos um índice de retorno sofrível, mas não é comum que seja estabelecida uma consciência crítica em torno da injusta distribuição do ônus fiscal. Isso inflama a população contra o tributo e não difunde a raiz do problema. Se a carga tributária é, aparentemente, alta no Brasil, isso se deve ao fato de recair sobre os ombros de quem menos pode pagar, já que com tantos incentivos fiscais voltados para investimentos financeiros a lógica tributária nacional parece privilegiar a renda obtida com o capital e sobrecarregar os rendimentos auferidos a partir do trabalho.

Assim, vemos se perpetuar no imaginário coletivo a noção de que o "imposto é roubo", justamente porque não se difunde que mesmo para a manutenção dos direitos de liberdade, como a propriedade privada, faz-se necessário o custeio do Estado pelos tributos. É mais rentável reproduzir a ideia de que o Estado age inadequadamente ao cobrar os famigerados tributos, em vez de se enfrentar o problema da regressividade tributária, prevalecendo inalterados os privilégios de classe, raça e gênero em uma sociedade tão desigual e opressora.

Aqui encerramos a nossa exemplificação do que seriam as abordagens únicas do Direito que criticamos a partir deste escrito. Supomos que você que nos lê certamente já as escutou, leu ou assistiu em algum momento de sua formação jurídica. Como teria sido a sua formação se as muitas histórias que importam tivessem sido contadas a você?

Nos lembremos de que "quando rejeitamos a história única, quando percebemos que nunca existe uma história única em lugar nenhum, reavemos uma espécie de paraíso" [5].

E então: que "paraíso" tiraram de você ao lhe contarem uma única versão do Direito?

 


[1] ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

[2] ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

[3] GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Vol. 1. Ed. e trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

[4] JUST, Gustavo. A "crise" do princípio da legalidade do ponto de vista da teoria da interpretação. In: Thiago MARRARA. (Org.). Princípios de direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2012, p. 30-44.

[5] ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Palestra proferida no TED Global 2009. Disponível em: https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=pt-BR. Acesso no dia 26 de junho de 2021.

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