Opinião

A eficiência na persecução tributária: devedor contumaz x circunstancial

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13 de julho de 2021, 16h04

Nota-se em alguns estados, e mesmo agora vem ganhando força em âmbito federal, o emprego — por parte de autoridades fiscais e, não raras vezes, indiscriminado e injustificado — de medidas draconianas de apoio à cobrança, como a responsabilização pessoal de administradores de pessoas jurídicas e até mesmo a oferta de representações fiscais para fins penais.

Nesse cenário, não é incomum, embora igualmente despropositado e constitucionalmente questionável, que Ministérios Públicos atuem como verdadeiros "órgãos auxiliares de cobrança fiscal", promovendo investigações penais sem nenhuma justa causa para tanto. E, no ponto, estamos a tratar do início da persecução penal de crimes contra a ordem tributária, cujos créditos estão devidamente garantidos por depósito do montante integral, fiança bancária ou apólice de seguro-garantia.

E por que apenas dinheiro, fiança e seguro? Porque são garantias que exprimem a certeza do recebimento integral do crédito tributário, caso o estado saia vitorioso nas teses contrapostas na Justiça [1].

Nessa linha, e antecipando o desfecho desse estudo, é nítida a inaproveitabilidade de ato persecutório quando houver, no juízo cível, o oferecimento de algumas dessas garantias, na medida em que o pagamento a qualquer tempo extingue a punibilidade (artigo 9º, §2º, da Lei 10.684/2003, somado à jurisprudência do STJ [2]  e do STF [3]).

Feita essa breve explanação introdutória, passamos a explicar em detalhes a tese defendida nesse espaço.

Com efeito, o julgamento do RHC 163.334/SC pelo STF deu um passo importante na conceituação de condutas que configuram os crimes tributários a que alude a Lei nº 8.137/90. Naquela oportunidade, assentou-se por maioria a tese: "O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º, II, da Lei nº 8.137/1990".

Embora tenha cumprido papel que melhor competiria à própria lei e demanda ainda complemento normativo para devida qualificação de o que seria um "devedor contumaz", o STF fixou importantes premissas para responsabilização criminal tributária: existência de débito fiscal constituído definitivamente [4], de dolo específico, de apropriação financeira e de contumácia. Ausente qualquer desses requisitos, pois, falece o interesse na persecução criminal.

Não mergulharemos a fundo, por não ser esse nosso propósito e pela ausência de paradigma suficientemente seguro (o PLS 284/2017, que define os requisitos para configuração do devedor contumaz, segue tramitando no Senado [5]), nas distinções entre um contribuinte devedor contumaz (grosso modo, aquele que "deve" por planejamento empresarial de embolsar o tributo e nunca o repassar ao Fisco) e um devedor episódico (aquele que entende que dado tributo não é devido em uma circunstância e disputa correção de tese com o Fisco), mas é preciso reconhecer uma diferença gritante entre ambos, ainda que não na origem, mas em momento secundário: o devedor episódico preocupa-se em defender-se e, ao fim da fase administrativa, oferecer garantia idônea para preservar sua regularidade fiscal (artigo 206, CTN).

Se o contribuinte ganha a discussão, o débito é extinto pela decisão judicial que lhe é favorável, na forma do artigo 156, X, do CTN. E, sem débito (inadimplemento), não há crime para justificar a deflagração ou prosseguimento de processo penal persecutório.

Se o contribuinte perde a discussão, mas o débito estava garantido com dinheiro, fiança ou seguro, essa garantia é executada e, por ser integral, será suficiente à total satisfação e pagamento do crédito tributário. Mais uma vez, portanto, some o débito subjacente — e, com ele, se perde a viabilidade de uma persecução criminal.

Como se percebe, portanto, qualquer que seja o desfecho de um processo tributário integralmente garantido com dinheiro, fiança ou seguro, não há nenhuma utilidade prática em uma investigação ou denúncia criminal para o débito em discussão.

E, no ponto, é preciso mencionar o óbvio: nenhuma prestação estatal é gratuita. O tempo das autoridades e as verbas para sua remuneração e custeio dos órgãos são limitadas. Se um agente público se propõe a algo que não traz benefícios à coletividade, ele onera desnecessariamente os cofres públicos — e não lhe sobram tempo e recursos para atuar visando ao bem comum.

O mesmo argumento consequencialista que serve de fundo para a criminalização do inadimplemento de tributo declarado e não pago, se aplicado à persecução penal da qual tratamos, por coerência, provaria o equívoco. A premissa foi lançada pelo ministro Luiz Fux: "Mas a verdade é que o crime fiscal nada mais é do que a outra face da corrupção: a corrupção desvia dinheiro dos serviços públicos; o crime fiscal impede que sequer exista dinheiro para ser utilizado nesses serviços".

Assumindo a premissa como correta, e trazendo trecho voto do ministro Fachin inspirado em Dworkin ("Assim, e considerando a exigência de integridade e coerência das compreensões da Suprema Corte (artigo 926, CPC), bem como que a jurisprudência deve ser desenvolvida com observância dos capítulos que compõem uma espécie de romance…") para abrir o caminho, temos que a persecução penal de débitos garantidos é inconstitucional sob o prisma da eficiência.

Contudo, para chegar a essa conclusão, voltamos à premissa do ministro Fux para questionar: se o crime fiscal impede a existência do dinheiro, o que dizer do desperdício do dinheiro já existente?

Nesse sentido, a Procuradoria da Fazenda Nacional, com base em estudo sobre o custo das execuções fiscais, editou portaria que permite o não ajuizamento de ações relacionadas a créditos que não compensem os custos. Pergunta-se: existe estudo similar para persecução penal dos crimes a que se referiu o ministro Fux? A obrigatoriedade da ação penal é absoluta para justificar a denúncia mesmo quando o móvel (pretenso inadimplemento) está garantido e eventual conversão em pagamento extinguirá a punibilidade?

Quanto à indispensabilidade da tributação, Cass Sustein e Stephen Holmes, em sua obra "O custo dos direitos", dimensionam a importância da tributação como sustentação do Estado democrático. Logo no preâmbulo trazem um raciocínio relevante: "Afinal de contas, é muito comum que os recursos proporcionados pela coletividade sejam, sem nenhuma razão sólida, direcionados para garantir os direitos de alguns cidadãos em detrimento dos direitos de outros".

Essa escassez de recursos determina, pois, que o Estado aja sempre com eficiência, lançada a princípio constitucional com a reforma administrativa em 1998. Trata-se de uma daquelas expressões de tamanha vagueza que, tal qual o "bem comum" [6], recorre-se à exclusão para identificar o que não é eficiente a afirmar o que é.

Nessa linha, instaurar a persecução criminal pela prática de crime fiscal quando o crédito tributário está integralmente garantido por dinheiro, fiança ou seguro não é eficiente. Os recursos para movimentação da máquina de repressão criminal serão desperdiçados porque o resultado prático, em eventual derrota do contribuinte na esfera cível, será a extinção da punibilidade pelo pagamento.

O combate aos crimes fiscais pode ser realizado dessa forma? Jogando a criança junto com a água suja? [7] A resposta é seguramente negativa.

O voto condutor do acórdão no STF trouxe exemplos de configuração da conduta e, no introito, já afasta a possibilidade típica do crédito garantido: "É esse propósito de manter para si, de se apropriar, de modo sistemático, dos valores cobrados do adquirente da mercadoria ou do serviço, sem a intenção de repassá-los ao Estado, que confere significado à conduta de não recolhimento do tributo". Aquele que oferece garantia integral e idônea não tem propósito de se apropriar de modo sistemático, pela simples razão de que, em eventual vitória do Fisco na seara cível, a garantia será executada e o débito será pago!

É dizer: se o crédito está garantido com dinheiro, fiança ou seguro, será quitado. E se é certo que haverá o pagamento, não há outro desfecho possível: a manutenção da persecução penal é nítida violação ao princípio da eficiência.

O Estado não pode prestigiar a livre iniciativa, os valores sociais do trabalho e o livre acesso ao Judiciário e por outro lado ameaçar com processo penal os contribuintes que, oferecendo garantia integral e idônea, questionem a ação dos entes tributantes. Parafraseando Stolleis [8]: "O STF não pode ex plenitudine potestatis (de seu poder abrangente) revogar um veredicto ou alterá-lo; reorganizar o processo, ou remetê-lo para algum outro tribunal; ou até mesmo explicitamente determinar a interpretação de uma lei".

Partindo-se da premissa constitucional de que Ministérios Públicos são órgãos independentes e que não lhes é dada missão de atuarem como assistentes de cobrança dos Fiscos, em casos como os aqui trabalhados ou bem os MPs cumprem seu papel de modo eficiente — e não promovem persecução criminal diante de débitos tributários integralmente garantidos — ou violam seus desideratos constitucionais e, ao arrepio do ordenamento, prestam-se a um despropósito cujos resultados acabam sendo o de assustar o empresariado e desestimular a economia e, pior, fazê-lo desperdiçando verba pública e energia que poderia ser utilizada na caça a devedores tributários contumazes.

A atuação irrestrita do Ministério Público nas causas fazendárias, vale dizer, foi rechaçada com a interpretação dominante no Superior Tribunal de Justiça, que culminou com a edição do enunciado de Súmula 189. Trazer a persecução penal para as execuções fiscais garantidas, quando se sabe de antemão sua inutilidade, viola o enunciado e a ratio decidendi que prevaleceu no STJ para editar o enunciado. Se há dinheiro, fiança ou seguro a garantir o crédito tributário, o interesse é meramente patrimonial, injustificada, pois, a intervenção do Ministério Público.

Caso contrário, e aceitando-se o argumento utilitarista do voto condutor [9], o contribuinte poderá diferenciar estados que tenham Ministério Público mais propenso a iniciar processo penal a outros que sejam mais cientes de sua missão constitucional.

Isso nos relega ao voluntarismo ministerial e fazendário, fazendo pouco das garantias constitucionais, ao que vale lembrar de Konrad Hesse: "Se, também em tempos difíceis, a Constituição lograr preservar a sua força normativa, então ela configura verdadeira força viva capaz de proteger a vida do Estado contra as desmedidas investidas do arbítrio" [10].

 


[1] Se não há maiores dificuldades no caso do dinheiro, algumas linhas são suficientes para afastar qualquer dúvida a respeito da fiança bancária e do seguro garantia, pois (i) são garantias emitidas por entidades (bancos e seguradoras) autorizadas a funcionar por autarquias federais em ambiente extremamente regulado; (ii) há regulamentação própria da PGFN e maioria  das PGEs sobre o oferecimento dessas garantias (ex.: Portarias PGFN 164/14 e 644/09); (iii) a idoneidade do fiador/segurador é atestada por certidão expedida pelo órgão regulador; e (iv) caso necessário, banco/seguradora são obrigados a depositar o valor afiançado/segurado atualizado — segundo índices do ente público beneficiado — em até 15 dias de sua intimação pelo juízo.

[6] Poderíamos debater a divergência conceitual entre moralistas e positivistas sobre o que seria o bem comum. Esse espaço não comporta tamanha digressão, mas comporta uma exclusão na linha do que Lenio Streck brincou com a professora Italiana em coluna aqui na ConJur.

[8]STOLLEIS, Michael. Interpretação Judicial na Transição do Antigo Regime ao Constitucionalismo. Disponível em : https://seer.ufrgs.br/ppgdir/article/view/52556/35374 acesso em 07/07/2021.

[9] Em Santa Catarina, onde o Tribunal de Justiça reconhece a tipicidade da conduta de não recolhimento de ICMS declarado desde 1996, a inadimplência oficial é de 4,52%. Já no Rio Grande do Sul, estado cujo Tribunal de Justiça não admite a tipicidade da conduta, o inadimplemento de ICMS é de 8,21%. Esses dados representam indício de que aqueles estados em que os contribuintes possuem receio da persecução penal obtém uma efetividade significativamente maior na arrecadação tributária.

[10] Konrad Hesse. A força normativa da Constituição, Porto Alegre: SAFE, 1991, p. 25.

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